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Chumbo Grosso: especialistas confirmam que escória de chumbo expõe população a riscos

Amostra coletada pelo CORREIO aponta alto índice de chumbo no subsolo da cidade: 'Muito acima do limite', diz bióloga

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Alexandre Lyrio

Publicado em 22 de setembro de 2019 às 06:02

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Em um pote de plástico comum colocamos mais ou menos 200g do material escuro e granulado. Entre o calçamento de pedra e o subsolo da Rua do Amparo, no Centro de Santo Amaro, foi fácil identificar o que seria a escória de chumbo. Ainda mais com a ajuda do professor da Faculdade de Medicina da Ufba, Fernando Carvalho, que nos acompanhou na segunda visita à cidade. “Toda essa camada granulada aí é escória. Nem precisa fazer análise. O solo aqui é todo contaminado”, afirmou. O CORREIO flagrou que obra da prefeitura de Santo Amaro desenterra resíduo tóxico de chumbo.  Foto: Arisson Marinho/CORREIO Apesar de o especialista não enxergar necessidade de confirmação, o CORREIO submeteu a amostra a testes no Laboratório de Metrologia Química e Biológica do Senai Cimatec, em Lauro de Freitas. O relatório expedido detectou a presença de 16.700 mg/kg de chumbo no material. O índice supera em 5.566% o Valor Orientador de Qualidade do Solo Para Presença de Substâncias Químicas (300 mg/kg). Para cádmio, detectou-se a presença de 33,9 mg/kg na amostra analisada, quando o limite permitido é de 8 mg/kg.

“O valor para chumbo é absurdo. Está muito acima do limite. Não há dúvida de que esse material pode contaminar as pessoas, os animais, as crianças, enfim”, afirmou Kátia Góes Macedo de Oliveira, bióloga do Cimatec. O método de espectrometria de absorção atômica confirmou que a obra de infraestrutura realizada pela prefeitura expõe trabalhadores e população a riscos. A bióloga chama a atenção que o estudo encomendado pelo CORREIO foi feito em apenas uma amostra, o que o diferencia de um estudo científico. Mas, diante do problema histórico de ruas pavimentadas com escória, a intenção era confirmar que a obra do município traz de volta à superfície material contaminado. Foto: Reprodução A especialista cita um estudo da Universidade Federal da Bahia (Ufba) sobre contaminação por metais pesados. Assinado por Tainara Santana Rabelo, o artigo apresenta uma tabela sobre contaminação no mundo todo. “O maior valor encontrado foi de 18,5 mil mg/kg para chumbo na Grécia. O valor encontrado na amostra que vocês trouxeram chega perto do maior valor encontrado no mundo”, comparou Kátia. Mas, independente da quantidade de chumbo apontada em amostras, diversos estudos e especialistas apontam Santo Amaro como a cidade mais atingida por chumbo, pela extensão e a proporção que o problema tomou na cidade do Recôncavo.

Efeitos É difícil saber quais os riscos de a obra contaminar as pessoas, já que cada organismo reage de uma forma aos metais pesados. O que se conhece bem são os efeitos do chumbo no corpo humano. Os especialistas ouvidos pelo CORREIO afirmam que, em um local que sofre com a contaminação por chumbo há tanto tempo, uma obra como essa expõe ainda mais a população. “Os efeitos da exposição e da contaminação são inúmeros. O chumbo tem um efeito neurológico que impede o desenvolvimento intelectual e cognitivo. O metal não é absorvido pelo organismo. A alta exposição, principalmente de maneira contínua, causa irritabilidade, cefaléia, tremor muscular, alucinações, perda da memória e da capacidade de concentração. Esse sintomas podem progredir até o delírio, convulsões, paralisias e coma”, explica Tânia Tavares, professora da Faculdade de Química da Ufba.

“Ao fazer qualquer tipo de construção de estrada, dutos, esgotamento sanitário, qualquer instalação de cabos, é importante lembrar que tem escória. Então, não se pode abrir e deixar aberto. Tem que abrir, fazer e fechar. Depois abrir de novo, fazer e fechar. Não tem como remover aquilo tudo, mas tem como se ter cuidado com o manuseio”, afirma Tânia. Ela explica que uma obra não deve amontoar os resíduos contaminados na rua, já que as pessoas acabam entrando em contato. “Aquilo ali está sendo levado pelo vento para dentro das casas das pessoas. O que está acontecendo hoje é a exposição dos moradores aos resíduos por mais de um mês. A prefeitura abriu a cidade toda”, alerta Tânia.

Uma médica da Secretaria Municipal de Saúde, que preferiu não se identificar, ponderou que é preciso diferenciar a população exposta da que foi contaminada com o passar das décadas. “A exposta tem contato com a escória de alguma forma, por meio de obras, na época da atuação da fábrica, enquanto as vítimas do chumbo foram contaminadas pelo metal, que são os ex-funcionários e as famílias”, disse a médica, que trabalhou na elaboração do Protocolo de Vigilância e Atenção à Saúde da População Exposta a Chumbo, Cádmio, Cobre e Zinco em Santo Amaro. “O que pode acontecer é que, a depender do grau de exposição, uma pessoa pode chegar à fase de contaminação, a exemplo dos funcionários ou de quem morava vizinho à fábrica e inalava maior quantidade da fumaça que saía pela chaminé”.

A preocupação de médicos e químicos tem origem no histórico de contaminação do município. O próprio protocolo do chumbo, elaborado por membros do Ministério da Saúde, Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) e Secretaria de Saúde de Santo Amaro, estimou que 3 mil pessoas foram contaminadas. Entre eles estariam ± 1.200 ex-trabalhadores da Plumbum, ± 1.220 famílias vizinhas à fábrica e 150 moradores da população consumidora de moluscos, em especial as famílias de pescadores da colônia de Caieiras, além de “outros trabalhadores expostos e suas famílias”.

Mapa apontou contaminados em um raio de 500 metros Estudos sistemáticos realizados pelos professores Fernando Carvalho e Tânia Tavares apontaram presença de chumbo e cádmio em um raio de 500 metros da antiga Cobrac, atual Plumbum. Um mapa apontava que, quanto mais próximo da fábrica, maiores os índices dos metais pesados. Além dos organismos das pessoas, esses resíduos estavam (e ainda estão) no ar, no solo, nas águas do Rio Subaé, nas plantas, enfim, até mesmo nas roupas. “Nós vimos que tinham crianças que estavam com valores acima dos considerados seguros. Isso era início dos anos 80”, disse Tânia. Hoje, afirma a especialista, o índice recomendável pela Organização Mundial de Saúde para chumbo no corpo humano é zero. Foto: Reprodução “Naquela época, eles levavam as roupas de trabalho para as esposas lavarem. Aquilo estava contaminado por escória. Quando divulgamos essas informações, comunicamos também à empresa, que poderia tomar as medidas cabíveis para amenizar esses problemas e reagir espontaneamente. Enviamos, também, para várias secretarias de governo. Ou seja: todo mundo ficou sabendo que aquilo era nocivo”, lembrou Tânia. Segundo os estudos, o Rio Subaé e, consequentemente, a população ribeirinha, acabaram também contaminados.

Centro de Tratamento Em 2010, a Justiça determinou a criação de um centro de tratamento para acompanhamento das vítimas do chumbo. O projeto do centro consta no próprio protocolo. “Mas, isso nunca se tornou realidade. É preciso que essa população seja acompanhada”, alerta Tânia. Mais recentemente, após a decisão judicial que determinou que a empresa pagasse 10% do seu faturamento bruto anual para reparar danos ambientais e humanos, a Secretaria de Saúde do município reiniciou os trabalhos previstos no protocolo.

Nesse momento, portanto, Santo Amaro vive o contrassenso de realizar uma obra que expõe a população e, ao mesmo tempo, tirar do papel o projeto do centro de tratamento. Tornar o centro realidade, aliás, seria questão de honra para o atual secretário de saúde do município. Santamarense, João Militão tem um irmão contaminado por chumbo.

“O que ficou para Santo Amaro foi a escória, a contaminação e a dívida social. Meu irmão trabalhava na fábrica, no forno, e levava o macacão pra casa, pra minha mãe lavar. Eu também jogava muita bola sobre a escória na rua, sobre o massapê, até descalço. Tomei banho no Subaé, que recebia parte da poluição. Então, é bem provável que toda a cidade tenha recebido essa herança. Eu quero sair daqui [da Secretaria] e deixar as coisas arrumadas”, disse Militão, que recriou o grupo de trabalho para colocar em prática o protocolo do chumbo. Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO Para isso, porém, o secretário diz que se faz necessária uma ação articulada. “O município não pode resolver sozinho. Precisamos de ajuda estadual e Federal”. O irmão do secretário tem problema de visão causados pelo chumbo. “O chumbo leva a problemas renais crônicos, um dos maiores índices do estado da Bahia está aqui em Santo Amaro, além de doenças ósseas, hipertensão, diabetes, e outros casos de deformações genéticas”, explicou. O problema é sempre comprovar a correlação entre a doença e a exposição ao metal. “Por isso o centro é importante e a gente espera que nos próximos meses ele esteja funcionando”.

Hoje, estudiosos afirmam que a população de Santo Amaro continua sofrendo com doenças. Tanto as pessoas que já eram contaminadas nos anos 80 quanto a população mais nova (leia no próximo domingo como viveram e vivem os sobreviventes). “Todos ali precisam de atenção e redução da exposição ao chumbo”, acredita o médico da Ufba, Fernando Carvalho. Entre os anos 1980 e 1985, ocorreu o período de maior pressão popular e da mídia, quando Caetano Veloso compôs Purificar o Subaé. Um imenso filtro chegou a ser instalado na chaminé da fábrica, mas não resolveu o problema.

“Alguns cuidados foram tomados, como molhar a escória para o vento não levar o material pelo ar, mas nada que fosse uma solução definitiva. Pavimentar a cidade foi uma forma de se livrar do problema”, acredita. Segundo o pesquisador, na área da empresa ainda existe um depósito que contém escória, cerca de ⅔ das 500 mil toneladas deixadas para trás. O restante está no subsolo da cidade, com a pavimentação. Por determinação da Justiça, a área da fábrica foi isolada, mas, em diversos pontos, sequer há cerca.

O CORREIO publica a partir de hoje um especial sobre o chumbo de Santo Amaro, um problema que há décadas atinge a cidade do Recôncavo. Neste e nos dois próximos domingos (29 de setembro e 6 de outubro), vamos denunciar a mais recente exposição ao metal pesado sofrida pela população e mostraremos como viveram e morreram os mais de 3 mil santamarensens com sequelas causadas por chumbo, cádmio e outros metais pesados.