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Criador da agricultora sintrópica acredita que o ser-humano chegou numa posição de não poder mais querer; leia entrevista completa
Fernanda Santana
Publicado em 18 de outubro de 2020 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Ernst Gotsch, 72 anos, repete frequentemente: “Chegamos na posição de não poder querer”. O suíço criou a chamada agricultura sintrópica, baseada no equilíbrio entre o meio ambiente e as plantações. “Cada um de nós sabe o que é certo, mas não queremos pagar o preço”, justifica a respeito da nossa inventada impossibilidade de poder desejar. Seu Ernesto, como é conhecido em Piraí do Norte, no Sul da Bahia, onde mora desde os anos 80, vive para mostrar que precisamos voltar a querer o “bom e o certo” – e pagar o preço disso.
O nome cheio de consoantes - Ernst –, o Seu Ernesto ganhou em 1948, em Raperswilen, nordeste suíço. Quando jovem, trabalhava com melhoramento genético numa estatal do país. No final dos anos 70, conheceu o Brasil, a convite de um aluno, e ficou adoecido ao ver o cenário de destruição das áreas agrícolas. Mas por que melhorar as plantas? Foi o que ele começou a se perguntar. “Em vez de adaptar as plantar, decidi criar agrossistemas em que as plantas se sintam bem”, diz Ernst, em entrevista feita por telechamada.
Ele estava em sua fazenda, a Olhos D’Água, onde as plantações de cacau, por exemplo, são vizinhas da Mata Atlântica preservada - sistema agroflorestal típico da agricultura sintrópica, que ainda não encontra muita ressonância na Bahia, diz Ernst. Mas, no mesmo Sul do estado, iniciativas como a de agricultores de Ilhéus, que plantam cacau à sombra de árvores nativas da Mata Atlântica - conhecido como "Cabruca" - simbolizam um caminho possível.
Há pouco mais de duas décadas, Ernst, que passava os dias enfurnado nas plantações para aprender a tornar a fazenda produtiva, mas preservada, recebeu a visita de técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que tinham viajado os 314 quilômetros que separam Salvador de Piraí do Norte depois de se surpreenderem ao ver imagens áreas da região. Havia tanto uma área agrícola produtiva quanto uma floresta densa. O produtor, ao ser perguntado sobre o que os visitantes consideravam um grande feito, disse apenas que tinha passado a ouvir o que a natureza tinha a dizer.
O agricultor, que é cientista de formação, relembrou sua trajetória, em entrevista ao CORREIO, para conversar sobre temas como a humanidade, os mitos inventados para que os seres humanos achem que não podem querer – ter uma alimentação saudável é um dos pontos destacados por Ernst -, as desigualdades que impedem que todos tenham escolha e ainda como a falta de escuta nos empurra para o que ele chama de “tragédia”.“A gente fecha os olhos e não quer saber de nada porque é mais fácil”, opina.A tragédia da qual fala Ernst é, segundo ele, histórica, repetida por quase todas as civilizações, o que que me fez perguntar: “Então se os erros parecem ser os mesmos erros sempre, é um karma?”. Ao que ele responde: “Se o erro for karma, é um karma construído, cada um constrói seu karma todos os dias. As pessoas têm escolhas mínimas todos os dias. A questão é que eu não quero pagar o preço”, responde. Quais são os seus? Ele ajuda a desvendar.
Que humanidade foi essa que nos trouxe até este ponto? Por que a depredação se tornou tão atrativa ao ser humano? O ser humano, que é um animal de estepe, apareceu na última época glacial, no período mais seco. Com o fim dessa época, 88% dos lugares então habitados por ele se transformaram em florestas. Então ele, o ser humano, desesperadamente, ao invés de buscar um nicho para ser útil dentro do novo ecossistema, decidiu se afastar da floresta e faz isso até hoje. No Brasil, há muitos entusiastas disso e existem até políticas para incentivar isso. Todo mundo está envolvido nessa manutenção do afastamento. Seria um trabalho, no meu ver, e uma decisão, de formar ecossistemas naturais e originais. No mundo inteiro, iríamos para a floresta. Tudo que é deserto hoje em dia foi criado pelo ser humano, tanto o Saara, o Atacama, o Deserto Australiano nos últimos 2,5 mil anos.
Mas não foi isso que aconteceu e isso foi uma coisa civilizatória. Todas as civilizações conhecidas fizeram o mesmo trajeto, mesmo aqueles que elogiamos e festejamos hoje, como os maias, se afastaram das florestas e repetiram os erros. Pense também nos incas, gregos, romanos, também, seja o que for, sempre foi a mesma coisa: afastar a floresta e produzir poucos cultivos. Isso ajuda para concentrar poder e, hoje em dia, está bem claro. Quem domina as sementes domina as farmacêuticas, domina a indústria da alimentação. É uma forma de controle e exploração do ser humano, concentrado. Isso não é nada mais que uma forma de concentrar poder.
Essa falta de capacidade de ver, escutar e entender a natureza tem muito a ver com tragédia. Quando a gente comete um erro, há duas possibilidades: se arrepender e pagar pelo erro e melhorar, o que é um preço; ou fingir e mentir que está tudo bem, está tudo bom. Mas, quanto mais estou construindo essas fantasias de mentiras, me delimito.
E quais dessas duas possibilidades estamos seguindo? Nós conhecemos algumas das falas. “Ah, isso aqui não bem assim, é fingimento, é mentira”. Mas na medida que eu acredito nisso, e faço assim, eu já me delimito, eu perco a liberdade cada vez mais. Quanto mais eu estou construindo aquelas fantasias de mentiras, quanto mais delimito, quanto mais eu viro escravo daquilo, do sistema, ele me mete numa caixa em que eu não posso me mexer. Chegamos na posição de não mais poder querer. A gente não pode sair disso. Somos animais, somos filhos desse próprio planeta, e tudo é feito para funcionar, mas nos afastamos. Então, quando um ser se afasta do lugar, ele erra, e perde cada vez mais a liberdade de poder querer. No final, ele fica inteiro escravo das consequências do que ele fez.
O homem trabalha para suicídio, com outras palavras. Essa é a tragédia da humanidade moderna que caminha para o colapso. A humanidade, na história, sempre fez isso, mesmo há 12 mil anos antes de cristo. Começou regionalmente, depois continentalmente, e sempre entraram em colapso. Pense no Império Romano, pense no Império Inca, no Império Chinês. No final, a civilização sempre entra em colapso e todas vezes a humanidade fez a mesma coisa, se concentrando em grandes cidades, o que tem a ver com poder, mas é uma estratégia para suicídio.
Hoje em dia, fazemos isso globalmente, mas sempre cometendo os mesmos erros. A humanidade buscou se organizar sempre em grandes cidades, sempre caminhou para o suicídio. A pessoa que mora na cidade não sabe mais como cultivar a comida, não sabe mais como organizar água, tudo é artificial e alheio da realidade.
Então, se os erros parecem ser os mesmos erros sempre, é um karma? Eu vejo isso como uma lógica da tragédia, da tragédia grega antiga. Se você estuda essas tragédias gregas antigas, você vê que os escritores, não importa quem foi, já trazem isso. No quinto livro de Moisés, escrito na Babilônia, está colocado: todos nós sabemos, cada um de nós sabe o que é certo e o que é bom, mas não queremos pagar preço. É biológico ou covardia? Eu diria que é uma covardia de cada um de nós. Se eu decido, cada um decide, "eu vou fazer aquilo que eu sei que é bom", que eu sinto que é bom, eu saio do contexto, e, naquele momento, começo a ser ridicularizado, e ninguém quer ser ridicularizado. Ninguém quer ser maluco, todo mundo quer ser parte do conjunto. É tão bacana ter uma posição dentro desse conjunto.
A partir do momento que eu começo a realizar que eu sei que é certo, que é bom, eu não posso participar de muitas daquelas coisas. Não posso mais jogar lixo na rua, não posso mais puxar descarga sem ignorar o fato de que a merda vai para o rio. Eu tenho que trabalhar para melhorar, eu tenho que pagar o preço disso. Eu não posso mais comprar aquilo que é vendido no supermercado. Ah, mas então, vai vir a pergunta: “Você é caboclo?”. “Não, não, eu sou isso, aquilo".
Nós, na sociedade, temos isso muito forte, o mais baixo da hierarquia é o agricultor, que não presta para nada, que é caboclo. Se o erro for karma, é um karma construído. Cada um constrói seu karma todos os dias. As pessoas têm escolhas mínimas todos os dias. Têm descuidos: "Ah, eu sou casado, tenho filho, não tenho como fazer isso, aquilo, eu não posso". Não, provavelmente poderia, a questão é que eu não quero pagar o preço.
Em que ponto os próprios agricultores repetem esses erros diretamente com a terra, ao atear fogo para iniciar novas fases de plantação? É cultura, são tradições que replicam, são lógicas que se replicam. Se eu queimo aqui, eu tenho uma facilidade, eu posso cultivar. Se não, tenho que gastar muito mais energia. É aquela visão de curto prazo que está em cima de todos nós. A falta de ética também. A falta da realização de uma base filosófica também é um ponto. Essa falha, esse comportamento, é vertical e horizontal. Em toda a população existe, são muitos poucos os que agem. Eles vão para igreja, vão estudar, mas não aplicam o que é bom, na prática. Ernst produz em áreas próximas a florestas (Foto: Iberê Périssé/Divulgação) E do outro lado, por que você acha que o agronegócio, muitas vezes, fecha os olhos para essa possibilidade de produzir de uma nova forma, menos danosa ao meio ambiente? Eu, por casualidade, tenho trabalhado com grandes produtores. Esses são produtores que trabalham em pelo menos 500 hectares. A colocação deles é a seguinte, e bem clara. Eu vou citar um dos produtores, que produz 250 mil toneladas de cereais, por ano, e leite. Numa palestra que ele deu na Espanha, ele disse: “Os meus filhos não querem saber de agricultura, e minha esposa também”. E agora? Como vamos resolver isso? Vamos parar de buscar culpados. Nós temos que formar novos agricultores, nós temos que pegar na mão das pessoas. Você vai para a escola e não aprende. Você aprende a castrar os bois, ouve que tem agrotóxico, tem que ser assim e tem que ser daquela forma.
Eu estava, por casualidade, também, no Xingu, e lá tem muitas reservas e estão queimando em todo canto. Tem uma parte que alega que é culpa do agronegócio e o agronegócio alega que são os índios. Mas é cultura, todo mundo faz, só que, de acordo com o seu próprio ponto de vista. Em vez de olharmos para nós e procurarmos as respostas, olhamos para o outro e culpamos o outro. O outro se tornou nossa alternativa. Aquele que não participa, na verdade acha que não participa porque vai no churrasco e come soja, que tem usado bastante agrotóxico também. Mas essa pessoa não mostra como fazer melhor, ele culpa e se acha bom. Não sou a favor de buscar culpados, mas sim de buscar decisões.
Veja, fulano, Pedro, Maria, Paulo, todo mundo pode fazer e a partir daquele momento, da decisão de fazer, muito vai impactar.
No momento, temos conseguido avançar em algum ponto, no sentido de nos ver como parte do todo, ou continuamos submersos na ideia de que somos mais inteligentes? Existem umas luzes na ciência moderna. Recentemente, vi uma pesquisa feita nos Estados Unidos que bactérias sabem interpretar o que você deseja, o que você pensa. Ou seja, são muito mais sensíveis que a gente, e têm capacidade de comunicar isso. Com outras palavras, todos os seres humanos, todas as gerações, de todas as espécies, aparecem equipados para se comunicar uns com os outros. Não importa se é ser humano, vírus, bactérias, todos estão equipados para se comunicar com todos os outros. Fazemos parte de um sistema inteligente, não somos os sistemas inteligentes. A partir daquele momento que isso entrar em ação, no nosso dia a dia, se compreendermos isso, podemos mudar. Ainda tenho essa esperança que possamos mudar.
Nossa racionalidade é o grande lance para nos acharmos mais inteligentes que o sistema inteligente como um todo? Olha, é o nosso modo de pensar unilateral, racional e analítico, que nos tem levado para essa calamidade. Nós todos temos dois lados no cérebro, o direito e o esquerdo. O lado esquerdo é responsável por realizar o pensamento racional e analítico. O direito realiza o pensamento "a-racional"; não irracional, "a-racional". A gente descartou esse lado. A gente não confia nele. Está dito: escuta, seja atento ao que você sonha, porque aquele sonho entra no seu pensamento, seja atento ao seu pensamento porque o pensamento cria seu desejo, seja atento ao seu desejo porque seu desejo se transforma em sua ação, e seja atento a sua ação porque ela se transforma no seu caráter. Mas a gente nega aquilo, nossas intuições, e forçamos as nossas crianças a usar somente a parte esquerda do cérebro.
Você não passa numa prova, por exemplo, e se fala: "No meu sentir, isso que você está me perguntando não está correto", seu argumento não será considerado. Isso não é aceito. Eu escuto as outras espécies, considero-as irmãs, mas se eu falo isso sou maluco, preciso de tratamento psíquico. Culturalmente, isso não é aceito e por isso não estamos mudando.
Por que o ser humano faz isso? [suspiro] De novo, é tragédia. Não podemos mais poder querer e isso é triste, mas é assim mesmo, não podemos. Ou a gente toma a decisão, vamos fazer, ou será assim sempre. Só realizar aquilo que é certo e que é bom é uma mudança. Mas aí não seremos mais parte do conjunto que acabei de falar. Não vamos ter mais, por exemplo, a roupa da moda, sabendo que todos nós usamos algodão, que não por casualidade é um dos cultivos com mais uso de agrotóxico, mais ainda que para tomate, para maçã. São muitos herbicidas, bactericidas, o que você quiser, toda semana. A gente fecha os olhos e não quer saber de nada, porque é mais fácil.
Quando você, pessoalmente, se sentiu nessa posição de poder querer? Quando você viu que estava podendo querer? Isso tem a ver com o meu tempo da adolescência. Depois, muito mais tarde, 15 anos mais tarde, eu estava trabalhando no melhoramento genético, e eu tinha, a cada ano, estudantes praticando em países em desenvolvimento. Em 76, tinha estudantes brasileiros e argentinos. Um dos brasileiros me chamou. Eu sempre gostei do meu trabalho, trabalhava mais cedo do que todo mundo, e ainda noite, para fazer certas coisas. Naquele ano, decidi visitar o Brasil, a convite desse aluno. Cheguei para cá, neste Brasil de 76, e viajando vários milhares de quilômetros, indicados por pessoas que me receberam e foram me recomendando, eu vi a destruição. Era sempre o mesmo cenário, para onde eu olhava, a floresta estava afastada e um fedor muito grande de pesticidas estava no ar.
Naquele tempo, as ferrovias estavam todas entupidas de caminhões com madeiras típicas das árvores. Dois, três metros de diâmetro de madeira, sendo levados para serraria. Por casualidade, numa noite, teve um churrasco, e antes teve uma chuva torrencial de 120 milímetros que causou voçorocas [fenômeno geológico que consiste na formação de grandes buracos de erosão que tornam o solo pobre e quimicamente morto]. O engenheiro agrônomo estava lá, todo mundo comendo a carne, e bebendo cachaça, cerveja. Um dos agricultores perguntava: o que vamos fazer com o voçoroca? Aí ele passou um trator por cima da voçoroca. Aquilo me deixou doente. Quando decidi voltar para a Suíça, decidi parar de melhorar plantas. Em vez de melhorar as plantas, decidi criar agrossistemas em que as plantas se sintam bem.
O melhoramento genético é questionável, seja por erros no cultivo das plantas e ou erro no manejo de pragas. A gente quer burlar, por essência, a planta, mas aquela resistência encontrada vai ser quebrada, em dois, três anos. Cada vez fica mais extremo,mais complexo, por isso temos os transgênicos. Mas também os transgênicos são problemáticos, e quanto mais a gente estica, mais trágico o colapso. O que a gente faz apenas contribui para o suicídio. Isso me levou a pensar, como nós, como seres humanos. Aquele engenheiro só expresso o que todo mundo pensava, mas quando você escuta isso de outro patamar, é assustador. Ele não pensa naqueles milhares, milhões de bactérias, de insetos, que vão pensar naquilo. A falta de sensibilidade e a decisão de não querer está dentro de nós mesmos. É trágico.
Foi aí que surgiu sua ideia de "agricultura sintrópica"? É possível ser produtivo e preservar? Os ecossistemas foram sustentados ao longo do tempo, mas isso não significa que estava sendo feito o certo. Derrubar e queimar entrou em colapso. Todo ser humano é o mesmo ser humano e cometemos, com poucas exceções, os mesmos erros. Na Europa central, entre os séculos 16 e 19, foram plantadas muitas frutíferas. No Brasil, também teve isso, depois. Muitos desses sistemas entraram em colapso por erros cometidos. Mas como eu cheguei a isso? Decidi buscar em vez de tentar fazer o melhoramento genético. Em vez de adaptar as plantas, (decidi) criar agrossistemas em que as plantas se sintam bem, o que tem consequências muito fortes. Quando vejo uma doença na planta, enxergo um defeito na minha forma de cultivar, a culpa não é do inseto.
Se fizéssemos, mundialmente, um giro no mundo, e não buscássemos o culpado fora, mas dentro da gente, seria melhor. Cada um tem culpa quando as coisas não funcionam ao torno de si e esse foi, de fato, meu projeto de aprendizado, e tento trazer isso. Não importa se é um pequeno produtor, um dono de quintal, uma pessoa de agronegócio, não importa, quando eles enxergam isso, eles melhoram. Na Bahia, ainda há pouca ressonância. O pequeno é capaz também, mas a pressão é tão grande, que ele acha que não é capaz e chega a acreditar que não é capaz. Mas é possível ser muito produtivo plantando dessa forma, em harmonia com o meio-ambiente.
Não existe exploração sustentável, claro. Foi vendido, por exemplo, o turismo como alternativa, por exemplo, mas o turismo, como é realizado, é prostituição – da paisagem, das pessoas, da cultura. O turismo poderia ser outra coisa, para que a presença fosse benéfica para todos os atingidos pela minha presença, assim o turista poderia chegar para melhorar a paisagem, o ecossistema, e de repente assim ficaria mais belo, mas os lugares ficam cada vez mais pobres e destruídos. Não é o turismo em si, mas a forma como que fazemos. "É possível ser produtivo plantando dessa forma, em harmonia com o meio ambiente" (Foto: Iberê Perissé/Divulgação) Você acha que o coronavírus vai ter alguma função, nessa perspectiva de que todos os seres cumprem uma função e têm suas culpas? Eu, pessoalmente, acredito esse vírus, como qualquer outro, nos ensina uma coisa, o medo das pessoas de morrer. Isso é bem forte atrás dessa pandemia, a histeria por trás. Se nós pesquisarmos, não necessariamente morrem mais agora que em outros momentos, mas como agora sabemos que existe, temos informação, as pessoas vêm que não são onipotentes, mas que fazem parte de um sistema inteligente.
Mas, como se vê na Europa, as pessoas voltaram a fazer a mesma coisa, repetir a mesma coisa, e eu penso que também aqui será a mesma coisa. As pessoas voltam para aquilo que faziam antes. Se realmente tivesse uma mudança, se o ser-humano mudasse... Mas não vejo isso, o consumo não mudou, o consumo é o mesmo de antes. Tu és o que tu comes. Você não come menos carne, menos tranqueira que antes, por causa disso, consome a mesma coisa. De fato, o ser-humano não mudou, nós não estamos mudando.
O que nos ensina? Poderia nos ensinar isso, que nós não somos onipotentes, e que nós temos que mudar. A pandemia, só temos, porque tudo está globalizado, em escalas enormes. Se as pessoas nos bairros começassem a cultivar nos bairros, e eles seriam capazes disso, de purificar tudo, se vivêssemos em harmonia com o planeta... Mas esse seria o lado positivo, mas não vejo isso acontecer. Tenho pouca esperança.
Mas é preciso estar numa condição privilegiada para “poder querer”? É possível também para uma pessoa menos privilegiada ter acesso a uma boa alimentação, por exemplo? De fato, no momento, comer bem, no Brasil, é privilégio da classe mais rica. Mas não é privilégio por dinheiro, só. Você vai em muitos assentamentos, e eles comem as mesmas tranqueiras, comem os mesmos agrotóxicos. De vez em quando viajo, e tem lugares com trechos em que pessoas cultivam nas beiras das estradas, sistematicamente. Às vezes paro, e começo a falar com aquelas pessoas. Muitas das pessoas que fazem o contrário trabalham em união, eles não usam agrotóxico, estão em harmonia. Nós podíamos sim, na cidade, numa favela, cultivar hortas verticais e horizontais na cidade.
Olha, se nós fizéssemos isso, na cidade, se cultivássemos... A polícia vai tirar, depois vamos plantar de novo, porque quando a insistência é suficientemente grande, não tem polícia. Quando a desobediência é coletiva, não há polícia, justiça que tenha poder para mudar. Então, decida para fazer, cada um de nós. Não importa se mora na favela, em qualquer outro lugar, decida e saiba o que é certo e o que é bom. De certa maneira, vivemos um mito em que achamos que não podemos querer o bom? Muitas pessoas questionam os preços dos produtos mais saudáveis, como os orgânicos, por exemplo. Muitas vezes, o orgânico nem é mais caro, e quando vamos um pouco mais além, sabendo aqueles venenos que estão lá dentro, que causam doença, e se eu for desistindo de comer aqueles venenos, eu gastava menos para remédios e para médicos. Se se pensasse nas consequências, no final da conta, na balança, ficaria muito mais barato desistir de comer veneno. Por outro lado, é um mito criado e passado para a gente, ensinado nas escolas, que se nós não usássemos isso, a maquinaria com o veneno, não produziríamos mais. Isso é um mito criado, pessoas falam e todo mundo acredita, fazem um doutorado em cima daquilo, alguém vai citar, e aquela crença ficará perpetuada. A gente poderia fazer de outra forma. Eu, por exemplo, não uso nada, e produzo tanto ou mais que qualquer outro.
O produtor também poderia agir de forma diferente. Como seria se ele fosse um irmão dos outros? Isso não significa dar tudo que ele tem, mas ajudar que o outro também possa ter. A partir do momento que criarmos uma economia de abundância, não de escassez, a gente não vai ter menos. A gente não come dinheiro, o dinheiro é um meio de troca, e não come terra, a terra é um meio para cultivar. Quando eu entendo isso, tomo uma posição para que o outro fique bem e as coisas fiquem boas. Não preciso mais guarda costa, um guarda no prédio para me proteger, porque todo mundo está sendo engolido, porque todo mundo fica melhor.
Quem é rico, está no topo dessa hierarquia social criada, não é melhor. Ele chega no fim da vida vai para UTI, na UTI morre igual aos outros, e com amargura e com raiva acumulada. O que é isso? A gente poderia fazer de forma diferente, fazendo aquilo que a gente sente que é a nossa função, porque cada um de nós nasce equipado para realizar aquilo que é previsto para fazer, movido pelo prazer interno. Quando encontro meu nicho, não importa a hierarquia, eu realizo aqui e chego no final com a ideia de que fiz de tudo, sem amargura, sem arrependimento, seria um mundo mais belo e aconchegante. Tudo é um paraíso só, deveríamos manter o paraíso, não destruir.
Qual seria a função do ser humano? O ser humano moderno é um frugífero. Vamos, do começo. Um político, 2,5 mil anos atrás, em Atenas, foi escolhido para organizar Atenas. Só 20% podem viver em cidade e 80% teriam que viver no campo, do campo. Acho que a gente tem que viver para aquele ponto de novo, não para viver como escravo, mas para viver da terra. Teríamos a sociedade de outra forma, todo mundo viveria bem, com sistemas harmoniosos, e o planeta se transformaria de novo num paraíso, e o ser humano cumpriria sua função, cultivaria sua comida, se divertiria com os irmãos, os da floresta, inclusive, como os pássaros e outros animais que também plantam. A população está presa na gaiola. Não somos independentes, dependemos desse sistema inteligente.
Veja, Salvador, como é maravilhoso esse lugar. Como reaproveitar esses parques, com plantações, dentro da floresta, o que quiser que fosse? Os prédios poderiam ter agricultura vertical, poderiam reciclar, tudo poderia virar adubo de novo, ser usado de novo. Poderia fazer de forma diferente, até a água poderia ser purificada. Quanto poderíamos comer se isso fosse feito? Até os apartamentos poderiam ser organizados dessa forma. Seria mais inteligente ir no mercado comprar pãozinho, ou conseguir fazer? Não precisaríamos nem mais de ar-condicionado, o ar-condicionado estaria na nossa casa, seriam as plantas. É possível, o paraíso está aí, temos tudo nas nossas mãos para fazer.
Aí não seria mais o outro culpado, o prefeito culpado, o governador culpado. O inferno está dentro de nós. Aí cabe a cada um fazer o que é certo e o que é bom. Vamos parar de fechar os olhos para as calamidades que fazemos e fingir que não sabemos o que é certo e é bom, porque sabemos. Eu não precisaria nem mais comprar, e se tornaria desnecessário até derrubar florestas, porque tudo seria floresta de novo.
O que você acha que falta para que enxerguemos nossos erros e encontremos um caminho para que possamos querer? Olha, isso é muito simples, é muito simples: descer do pedestal a que nos elevamos, dos poderosos, dos inteligentes. Imagine se um prefeito chegasse amanhã e falasse: "estou vendo que cometemos esse erro e vi que se fizéssemos isso, seria tão simples, e tão barato". E ele pode ver isso, mas o que o impede? O ego inflado, o pedestal elevado a que ele se posicionou. Se aquele prefeito faria, o presidente faria, e penso que poderia ter uma ressonância muito grande. Sabe, o que a gente faz hoje em dia, é um grande erro, e tudo bem, todos nós cometemos erros. Mas quando nós tomaremos a decisão?
Na Babilônia, 2,7 mil anos atrás, foi dito que o sábio aprende pelos erros cometidos dos outros, o inteligente aprende com os próprios erros e o burro, orgulhosamente, adota os erros cometidos pelos outros. A maioria dos seres-humanos opta pela burrice [risos]. O que vamos fazer? É só agir de forma diferente, você, eu, ou quem quiser.