Testemunhas detalham os minutos que antecederam morte de empresário ao furar blitz

Fernando Coelho foi morto por PMs ao fugir de blitz em Feira de Santana: agentes alegam que estavam sob risco, e família apresenta outra versão

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  • Fernanda Santana

Publicado em 26 de outubro de 2024 às 05:00

Nas duas horas que antecederam o trajeto que terminaria em sua morte, Fernando Coelho, 39 anos, viveu um típico sábado. Acompanhado da esposa, curtiu o fim de tarde em um restaurante da zona nobre de Feira de Santana, onde pediu cerveja, moqueca de camarão e seis caipiroscas.

Empresário Fernando Alves Souza Coelho morreu após fugir de blitz
Empresário Fernando Alves Souza Coelho morreu após fugir de blitz Crédito: Reprodução/Instagram

Quando o céu escureceu, decidiu pedir a conta - que deu R$ 312 - e aproveitar a noite no rancho que possuía em Santo Estevão.

Pouco depois das 18h20 de 12 de outubro, Fernando e a dentista Tainá Alves, 30, levantaram da mesa rumo ao carro, um Ônix parado ao lado, no bairro SIM. O empresário sentou no banco do motorista, ela foi no carona. O casal partiu em direção à Avenida Artêmia Freitas, um dos points da boemia local, antes de entrar na Avenida Noide Cerqueira. Assim que cruzou a via, ele viu uma blitz

A operação, montada pelo Esquadrão Asa Branca da Polícia Militar (PM), tentava flagrar quem pretendia iniciar a noite na Artêmia e aqueles que, como Fernando, voltavam de bares.

O motorista flagrado alcoolizado pode ser multado em R$ 3 mil, proibido de dirigir e preso. Até 2014, a pessoa que se negava a soprar o bafômetros, por outro lado, não poderia ser presa. Depois de uma mudança na legislação, no entanto, o motorista que diz "não" para o teste de alcoolemia também pode ser presa, se o policial atestar sinais de embriaguez, como olhos vermelhos e irritação, e ter que lidar com sanções administrativas idênticas. 

Nenhuma das opções foi a escolhida por Fernando, que acelerou o carro em uma das principais e mais movimentadas vias da cidade.

Do lado oposto da Av. Noide, um casal flagrou o momento em que Fernando seguia na contramão da via, na altura de um mercado, com duas motos da PM no encalço. No segundo 40 da gravação, o contorno do carro fica imperceptível e surge uma viatura da polícia, no sentido contrário. Nesse momento, ouvem-se sete disparos.

Quando os tiros cessam, o carro pára, Tainá sai do veículo e os policiais gritam: “Deita”. Não há sinal de Fernando. O vídeo é encerrado.

Na primeira nota oficial divulgada pela PM, consta que os agentes atiraram “diante da iminente ameaça” depois de o condutor desobedecer às ordens de parada, com sirenes e giroflex, e avançar em direção aos policiais. Ainda segundo os agentes, foram encontradas uma arma e munições dentro do carro.

A Polícia Civil (PC) acrescentou outro suposto fato: quatro policiais já foram ouvidos e afirmaram que após o carro ser “jogado” contra eles, houve um “confronto” (não detalhou o tipo) e o motorista ficou ferido.

A família contesta ambas. “Quando viram a merda que fizeram, tentaram plantar uma arma. Meu irmão não andava armado. Ainda que ele estivesse com uma arma no carro, não teria justificativa para atirar”, acusa Fábio Coelho, irmão de Fernando, aos prantos. “Não caiu a ficha, meu irmão está morto", completa.

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Crime aconteceu em uma via feirense Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

O empresário era conhecido na cidade. Há duas décadas, ele possuía uma loja de venda de celulares no centro, chamada por seu apelido (Lengo), e alugava carros. Fora do trabalho, no entanto, o nome dele também já tinha repercutido em Feira.

Em 2018, ele foi preso e condenado depois de ameaçar divulgar fotos íntimas de uma cliente.

O caso não está conectado à investigação agora realizada pela Delegacia de Homicídios (DH) de Feira de Santana, que aguarda a chegada dos laudos periciais para fechar o inquérito policial que revelará o que aconteceu entre o minuto que Fernando decidiu fugir da blitz e os tiros.

Viúva diz que policiais da viatura 'já foram disparando'

Às 19h05 daquela noite, pouco depois de descer do carro, Tainá ligou para José Ribeiro, 62, dono o restaurante onde ela e o marido passaram o fim da tarde. A dentista fez um pedido ao empresário, sem entrar em detalhes: "Zé, por favor, venha aqui". Pelo tom de voz dela, ele percebeu que algo grave tinha acontecido.

Ao desembarcar, tomou um choque. "Era uma cena clara de perseguição", recorda. Ao percorrer o caminho de vidros estraçalhados pelo chão, encontrou sete disparos, e os bancos rubros de sangue. Fernando, no entanto, não estava mais lá - a polícia prestou socorro para o Hospital Geral Clériston Andrade, maior hospital público do interior do Estado. Não foi informado se ele estava vivo.

Restaurante onde Fernando passou a tarde antes de morrer
Restaurante onde Fernando passou a tarde antes de morrer Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

A dentista Tainá, a única testemunha do que ocorreu dentro do carro antes dos disparos, resumiu para o amigo do marido os minutos de perseguição. "Segundo ela, ele desviou da blitz porque estava bebendo", conta José, "e quando percebeu duas motos da polícia perto, acelerou".

"Ela disse que falou para ele parar, e que ele não parou, e que as coisas foram acontecendo. Aquele erro que não se desfaz", lamenta o amigo.

Foi ele quem a acompanhou até a Delegacia da Polícia no bairro de Sobradinho. Oito parentes e familiares, ao saberem da notícia, chegaram aos poucos na unidade. Entre eles, estava a irmã de Tainá, vinda de Salvador, que deu a notícia da morte do cunhado. Nesse momento, afirmaram testemunhas que pediram anonimato, ela se revoltou contra dois policiais.

“Não foram os policiais que atiraram, mas lembro que ela ficou consternada”, recorda. Os nomes dos servidores que dispararam contra o carro não foram divulgados.

Os ânimos foram contidos e, às 02:28, a escrivã da polícia Uilca dos Santos escreveu o depoimento de Taina Alves, ainda suja de sangue, à delegada Alana Pinheiro Filho. Ela reforçou o que tinha dito, e acrescentou detalhes sobre o momento dos tiros.

"Na tentativa de evadir, foram perseguidos por duas motocicletas da PM, quando Fernando pegou na contramão na avenida e acabou ficando de frente a uma viatura”. Segundo ela, a viatura “não solicitou parada e já foram disparados diversos tiros”. Procurada pela reportagem, a viúva, que contraria a versão da PM, não quis dar entrevista.

A DH de Feira de Santana investiga o caso como “morte por intervenção de agente de segurança pública”. No ano passado, 1.699 pessoas morreram durante intervenções policiais na Bahia (não há especificações sobre blitz), calcula o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Quando policiais podem atirar em blitze? 

Não é a primeira vez que uma morte é registrada durante uma blitz em Feira de Santana. Em abril de 2022, Marcelo Rocha, de 18 anos, foi morto por policiais depois de parar o carro em um estacionamento, ao notar a existência da operação na Avenida Maria Quitéria. Ele dirigia sem carteira de habilitação.

Ao dar ré no veículo, Marcelo chamou atenção de policiais, que iniciaram uma perseguição. A PM, na época, afirmou que houve troca de tiros. As investigações, no entanto, indicaram o oposto. O Ministério Público da Bahia (MP) denunciou, no ano passado, dois policiais por homicídio qualificado. Para o órgão, a vítima não apresentou resistência nem teve possibilidade de defesa.

O procedimento adotado por PMS durante a abordagem de veículos é tema de aulas durante os cursos de Formação Policial e de reciclagem. O coronel reformado da PM Jorge Melo, que pesquisa segurança pública e é professor de Direito da Faculdade Estácio, afirma não fazer parte da norma atirar nos veículos, a não ser que haja ameaça incontestável à vida do policial ou outro cidadão.

Lançar um veículo contra integrantes de uma operação, por exemplo, é considerado risco imediato e respalda, ainda de acordo com o professor, disparos contra o suspeito. O fato de um dos ocupantes do veículo portar arma, por outro lado, não autoriza à polícia abrir fogo. Para isso, seria preciso que a arma fosse apontada para PMs ou outras pessoas.

Melo assistiu ao vídeo que mostra um trecho da perseguição que levou à morte de Fernando, mas não quis, segundo ele por “prudência”, comentar as imagens.

“Saliento que se o perseguido utiliza-se do carro para ferir ou matar pessoas demanda atuação imediata da polícia, não só pode como deve o policial, visando evitar que ele continue a intentada criminosa, efetuar intervenção com arma de fogo direcionada ao motorista para fazer cessar o crime e proteger demais pessoas. Trata-se de uma intervenção com uso de força letal que visa evitar novas vítimas, e não de intervenção que visa interceptar o veículo”.

No dia 24 de julho, um policial foi morto, no bairro de Sussuarana, por dois homens que estavam em uma motocicleta e jogaram o veículo contra o agente ao fugir da blitz.

Se houver ordem de parada e o veículo furar o bloqueio, sem risco iminente, o correto é fazer um cerco, mesmo que o veículo seja roubado. Disparos contra pneus, segundo Melo, também são vedados. “Esses disparos tem pouca eficácia para parar o veículo, figurando muitas vezes como disparo intimidativo, portanto não amparado pelo princípio da legalidade. Além disso, esses disparos podem se tornar projéteis sem destino vindo a alcançar alvos não desejados”.

A subseção de Feira Santana da Ordem dos Advogados da Bahia não acredita que esses critérios estão claros. Questionada pela reportagem, a Comissão de Direito Humanos da entidade cobrou transparência, por parte da PM, sobre qual é “o procedimento padrão para conter quem não acata ordem de parada”. O MP da Bahia afirmou que aguarda a PC remeter o inquérito.

A PM não respondeu se o caso será levado à Corregedoria, que investiga e pune, se for o caso, atos policiais.

Quando ficará pronta a perícia?

Desde a morte do irmão, Fábio Coelho tenta conectar os pontos da noite de 12 de outubro.

“Eles tinham como conter [Fernando] sem matar meu irmão. Eles poderiam fechar um cerco, não sei. O tiro que matou meu irmão foi um tiro na cabeça. Um tiro na cabeça. Não foi um tiro para ele parar o carro. Ele não foi nem levado para o hospital rapidamente. Minha indignação também é essa. Que socorro é esse que demora uma hora?". Ele não apresentou provas de que Fernando só chegou ao hospital uma hora depois dos tiros. A PM não respondeu.

Primo de Fernando, o comerciante Alesson Freitas, 31, esteve na delegacia na noite da morte e agora ajuda a família a organizar as burocracias. Ele próprio, no entanto, tem suas dúvidas.

“No vídeo, dá para ver que ele não ameaçou ninguém. Ele não puxou nenhuma arma. Ele não apresentou risco. A principal pergunta é: existe uma lei que autoriza o policial a matar alguém que foge de uma blitz?”, questiona. As perguntas, oficialmente, estão sem resposta.

“Não tivemos acesso a nada sobre a morte dele, quem eram os policiais. Só temos a certidão de óbito. Estamos em choque”, completa o primo.

Primo olha foto de Fernando em rancho
Primo olha foto de Fernando em rancho Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Ele foi uma das pessoas que acompanharam Tainá, quando o domingo estava amanhecendo, até o local onde o carro de Fernando ficou parado, na Av. Noide Cerqueira. “Tinha carne, água mineral, carvão, desodorante, perfume, tudo espalhado”, detalha.

Os pertences foram levados para casa da mãe de Fernando, que não quis dar entrevista. O Departamento de Polícia Técnica (DPT) foi questionado sobre a perícia realizada no carro, mas não respondeu.

Para a família, Fernando era um provedor. Nascido em um lar pobre, ele enriqueceu, segundo parentes, depois de anos de trabalho informal, seguidos pela abertura de uma loja de celulares e a compra e aluguel de carros. O empresário vivia no bairro do Papagaio, uma região que mistura zonas comerciais, classe média baixa e condomínios de luxo.

O estilo de vida de Fernando, apesar do sucesso nos negócios, preocupava alguns familiares. O empresário fazia o que dava na telha. Se estivesse a fim de um mergulho no mar, por exemplo, viajava na hora para Salvador. Mas pegar a BR-324 para ir à praia não era o problema. “Ele bebia e dirigia sim, como várias pessoas, mas nunca tinha se metido com acidente”, falou um familiar, sob anonimato.

Na galeria onde Fernando tinha uma loja, hoje fechada, colegas desconheciam a vida dele fora dali. Mas, lá dentro, ele é lembrado como uma pessoa querida. Há vizinhos de box que até evitam olhar para o espaço. “Me faz mal, sabe?", diz um deles.

Lengo Cell, loja de Fernando, está fechada
Lengo Cell, loja de Fernando, está fechada Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

O comerciante mais experiente em atividade no espaço comercial é Carlos Alberto, 65. Há 28 anos, o senhor grisalho oferece reparos eletrônicos no local. “Há uns 20 conhecia Lengo, ele era um dos mais antigos”, afirma. “Era uma pessoa tranquila, não tem nenhum inimigo aqui dentro”.

Um dia antes da morte do colega, quando saía para almoçar, Carlos conversou com Fernando. “Ele não aparentava nenhuma preocupação e falou: 'Ê, Carlos ‘véio’, bom final de semana'", lembra. “Depois, só vi notícia da morte pelo celular. Ficamos muito sentidos", lamenta ele.

A família estava às vésperas de uma comemoração quando Fernanda morreu. Na próxima terça-feira, dia 29 de outubro, ele completaria 40 anos.