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Thais Borges
Publicado em 15 de fevereiro de 2025 às 05:00
Um novo paciente entra a cada 30 minutos. Um sai, outro entra, praticamente sem pausas, até o fim da jornada. "No final do dia de trabalho, eu fico esgotadíssima. Porque, de fato, cada um tem demandas bem diferentes", conta a psicóloga Cibele*, que atende em uma clínica própria de uma empresa de plano de saúde na Bahia. Por consulta, recebe R$ 26 - algo que equivale a menos de 20% do valor médio pago por uma sessão particular de psicoterapia. >
O relato de Cibele reflete uma realidade que vai além de uma única operadora de convênios ou que é exclusiva da psicologia. Médicos, nutricionistas e fisioterapeutas são apenas alguns dos profissionais que têm lidado com o que consideram ser repasses cada vez mais defasados dos planos de saúde. Enquanto os convênios têm aumento anual na mensalidade paga pelos clientes, o que é repassado aos profissionais não tem obrigação de ter o mesmo. Em 2024, os planos individuais tiveram aumento de 6,91% - o que é regulamentado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar -, mas o dos coletivos e empresariais foi pelo menos o dobro. Para 2025, a consultoria Aon divulgou, em dezembro, que os reajustes podem chegar a 21,8%. >
Um levantamento feito pelo CORREIO identificou valores pagos pelas operadoras a áreas cujo atendimento por plano de saúde é comum. No fim, considerando os casos de profissionais que ainda precisam dividir o pagamento com a clínica onde trabalham, há quem receba até R$ 9,20 por uma sessão de 30 minutos. O resultado disso é que profissionais mais experientes têm ficado cada vez mais distantes das rede dos convênios. >
A psicóloga Cibele está há cinco anos na clínica, mas considera que sua situação é mais confortável do que a de outros colegas. Por estar em uma unidade própria da operadora, ela diz que não precisa se preocupar com chegada de pacientes. "Eu até brinco que parece um açougue, porque a gente não tem tempo de parar. Não é que não tenha qualidade, mas não é o mesmo tipo de trabalho. No particular, você tem até tempo para avaliar cada caso". Sua consulta particular, que dura 50 minutos, pode chegar a R$ 180. >
Mas nem sempre foi assim. Os valores foram caindo ao longo dos anos devido à expansão do mercado de planos de saúde, que levou a uma pressão forte por contenção de custos, como explica o advogado René Viana, especialista em Direito Médico e Direito à Saúde. Uma vez que o número de beneficiários aumentou, as empresas começaram a buscar estratégias para equilibrar as despesas. >
"Além disso, o processo de concentração do mercado em grandes operadoras reduziu a concorrência, dificultando a negociação para reajustes ou honorários mais justos. Outro fator importante é a falta de atualização contratual para acompanhar a inflação médica, o que deixa os profissionais em desvantagem. Finalmente, mudanças no perfil de atendimento, como a priorização de consultas rápidas ou telemedicina, também contribuíram para a desvalorização financeira de muitas especialidades", aponta o advogado, que é diretor de saúde da Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia (CAAB) e professor de ética médica da Escola Bahiana de Medicina.>
Tempo >
Entre os médicos, a falta de reajuste no valor das consultas ao longo dos anos têm feito com que tanto os profissionais quanto as clínicas adotem estratégias como a de definir o tempo de 15 minutos por atendimento. Para o pediatra Gregório*, a prática não é condenável quando é a demanda do paciente é pontual e não é complexa. No entanto, ele defende que, para muitas especialidades médicas, isso não é nem mesmo possível. >
"A gente precisa de tempo para coletar uma boa história, entender o que o paciente está sentindo, examinar, checar resultados de exames. Nesse contexto de tempo muito curto, você tem uma precarização do trabalho do médico e uma piora da assistência oferecida", diz ele, que tem uma subespecialidade dentro da pediatria. >
O menor valor que já recebeu por uma consulta foi R$ 45, enquanto o maior foi de R$ 140. O pagamento final, contudo, desconta tanto os impostos quanto o que fica para a clínica. "Os pacientes que pagam o convênio não têm expectativas de consultas curtas e rápidas, mas de uma consulta boa, adequada, concluída, de um profissional que possa escutar as suas demandas e acolhê-lo", reflete.>
Além disso, nos convênios, os pacientes têm direito a retorno na maioria das unidades de saúde. Só que apenas uma das idas ao profissional é paga pela operadora e, de acordo com o pediatra, não é incomum que o retorno seja uma nova consulta. Seu atendimento particular fica em torno de R$ 400. Além do tempo maior, ele disponibiliza seu contato Whatsapp.>
"Imagine o quanto é desesperador você ter uma consulta de 15 minutos e aí chega um paciente com uma condição super complexa, que já foi internado sete vezes nos últimos meses, com uma pasta cheia de exames. Você vai ter que colher toda a história, entender tudo que aconteceu, checar boa parte desses exames, você não vai conseguir checar tudo, porque 15 minutos é muito pouco", alerta. >
Na sua prática clínica, o médico oncologista Ronaldo* conta que o valor de alguns planos não é atualizado pelo menos desde 2012. "Foi quando comecei a atender na Bahia. No interior, as clínicas ainda descontam entre 20% e 30%. Em Salvador, algumas descontam 40%", conta. No caso da oncologia, a maioria das unidades de saúde se importa mais com os procedimentos - quimioterapia, radioterapia e cirurgia, além de exames - do que com as consultas. >
"O convênio também não está com o lucro que os pacientes acham que está, o médico não está ganhando tanto quanto os pacientes acham e quem ganha muito dinheiro hoje são as grandes empresas de insumos. Tem tratamento que a clínica compra por R$ 147 mil e vende por R$ 152 mil. O médico ganha pouco, o convênio gasta muito e quem nada de braçada são as empresas de material". >
Carreira >
Desde que pegou seu registro no Conselho Regional de Psicologia, há um ano e meio, a psicóloga Susana* atende em uma clínica que aceita a maior parte dos planos de saúde. Mas como atua como prestadora de serviço, metade fica para a unidade. Por duas operadoras, o que chega, no final, é pouco mais de R$ 9 - a consulta fica em torno de 20, com o percentual da clínica. >
Cada sessão dura 30 minutos, mas ela só recebe o pagamento três meses depois. Ela estima que tem cerca de 40 pacientes na clínica. A rotatividade de psicólogos que atuam no local é grande. "Eu enxergo como uma primeira oportunidade. É exaustivo, porque a gente trabalha com qualidade de presença e concentração, mas minha mente não é uma máquina. Se eu tenho 40 pacientes, tenho que estar sempre me atualizando. Pode ter 40 pacientes com ansiedade, mas cada um tem uma história de vida". Sua consulta particular sai por R$ 150. >
Outro atendimento em que a disparidade é grande é o de nutricionistas. Segundo a presidente do Sindicato dos Nutricionistas da Bahia, Celenilda Maria, enquanto a média dos particulares fica entre R$ 300 e R$ 350, as consultas por plano pagam entre R$ 15 e R$ 35. >
As sessões são de 30 minutos no convênio, o que ela considera que não é suficiente. "Não dá tempo. É um abuso, porque pedem uma produtividade irreal e cada indivíduo é um indivíduo. Existe toda uma história, principalmente na primeira consulta", explica. De acordo com ela, o sindicato pretende dialogar com os convênios neste ano. >
A nutricionista Beatriz* passou quase cinco anos atendendo por convênio, mas agora está em uma clínica que aceita planos mais restritos, o que diminui esse número de pacientes. De acordo com ela, o tempo da consulta é definido pelo profissional, mas na consulta privada, é possível incluir exames como o de bioimpedância. "Infelizmente, na consulta do plano, não dá para ser feito, porque o valor é muito defasado. O plano que melhor paga, às vezes, é R$ 80, sendo que esse valor ainda divide com a clínica", diz . >
Trabalhando como acupunturista, a fisioterapeuta Verônica* chega a atender 40 pessoas num turno, na clínica própria de uma operadora de saúde. Pelos atendimentos nos seis dias da semana, cada um com duração de 20 minutos, ela recebe um salário de R$ 3 mil. A consulta particular custa até R$ 160. >
"Em qualquer área da fisioterapia, vejo que os repasses por planos não estão de acordo com o recomendado. Recentemente uma colega que atende de homecare me disse que recebe apenas R$ 24 por atendimento. Não é justo e nem compatível com a importância da fisioterapia na vida das pessoas", pondera. No futuro, ela pretende atender apenas particulare manter seu estúdio de pilates. "Ainda estou me reestruturando pós-pandemia e o emprego da clínica ajuda muito. Mas todo mundo quer evoluir na carreira".>
Os planos de saúde não têm obrigação legal de reajustar anualmente os valores pagos aos profissionais. Os repasses são estabelecidos por contratos negociados livremente entre as partes e não há nenhum cálculo padronizado, como explica o advogado René Viana, especialista em Direito Médico e Direito à Saúde. >
"A legislação vigente permite que esses valores sejam definidos com base em critérios contratuais, como especialidade do profissional, tempo de consulta e a complexidade dos serviços prestados", explica ele, que é diretor de Saúde da Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia (CAAB) e professor de ética médica da Escola Bahiana de Medicina. "A ausência de um reajuste automático coloca muitos profissionais em uma posição vulnerável, especialmente em um mercado onde o poder de negociação tende a favorecer as operadoras", acrescenta Viana. >
Especialidades de alta complexidade, como cirurgia, geralmente recebem valores maiores. No entanto, o advogado pondera que profissionais que fazem consultas mais longas - como é o caso de psicólogos e nutricionistas - enfrentam disparidades devido à forma como os planos de saúde dão prioridade a serviços de maior volume e menor custo.>
Os maiores desafios para atualizar os pagamentos vão desde a pressão das operadoras por redução de custos à competitividade no mercado. De acordo com Viana, isso também afeta as áreas como psicologia e fisioterapia.>
"Além disso, a ausência de regulamentação específica sobre valores mínimos e reajustes contribui para a estagnação dos honorários. Muitos profissionais enfrentam dificuldade para negociar individualmente com os planos, especialmente quando atuam de forma autônoma", diz ele, que sugere o fortalecimento dos profissionais em associações ou cooperativas para promover debates regulatórios .>
Essa situação afeta o direito à assistência dos pacientes, porque, como lembra Viana, os valores insuficientes fazem com que muitos profissionais se descredenciem. Isso reduz a rede de atendimento e aumenta o tempo de espera para consultas. "Além disso, repasses baixos podem desmotivar os profissionais e comprometer a qualidade do atendimento, afetando diagnósticos e tratamentos. Os planos de saúde têm a obrigação legal de garantir aos pacientes uma rede de profissionais suficiente e de qualidade".>
Através da assessoria, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) ressaltou que a remuneração, como de qualquer trabalho, é acertada entre a fonte pagadora e o prestador de serviços, com base no serviço prestado, nas condições de mercado, disponibilidade e outros fatores. Segundo a entidade, os valores dos serviços e as condições de reajuste são definidos em contrato, conforme regulamentação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). "Quanto ao valor repassado pelas clínicas médicas aos seus profissionais de saúde contratados, o tema deve ser tratado entre as partes envolvidas: clínica e profissional de saúde".>
*Nomes fictícios >