Saiba como o Mounjaro, o Ozempic dos ricos, virou aliado contra a apneia do sono

Substância tirzepatida conseguiu reduzir em até 62,8% eventos de apneia dos participantes de estudo

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  • Thais Borges

Publicado em 14 de julho de 2024 às 05:00

Aplicação de Mounjaro
Aplicação de Mounjaro Crédito: Shutterstock

A tirzepatida - ou Mounjaro, em seu nome comercial - ficou famosa pelo tratamento que torna possível a perda de peso de forma rápida e sem efeitos colaterais. Mas, agora, o remédio chamado por alguns de ‘Ozempic dos ricos’ pode ser um aliado no tratamento de outra doença crônica: a apneia obstrutiva do sono (AOS).

Essa possibilidade se tornou uma alternativa palpável no fim de junho, quando uma nova pesquisa mostrou que a tirzepatida conseguiu reduzir em até 62,8% eventos de apneia dos participantes - ou seja, ter até 30 episódios a menos por hora, em comparação aos que usaram o placebo. Os resultados são referentes à fase 3 do conjunto de estudos chamados Surmount-OSA, que acompanhou 469 pessoas adultas com obesidade e apneia por 52 semanas em países como Brasil, Japão, México e Estados Unidos.

Foram avaliadas pessoas com quadros de apneia considerados de moderado a grave. Além disso, entre os participantes, havia tanto quem usa um dispositivo que ajuda a manter as vias aéreas abertas durante o sono (a chamada terapia CPAP) quanto quem não usa. Todos usaram a dose máxima do remédio.

“Trata-se de uma importante publicação, envolvendo dois estudos, na qual foi testado o efeito de uma medicação com grande promessa para o tratamento da obesidade, um dos fatores de risco mais importantes para a apneia do sono, sobre a redução da gravidade deste importante distúrbio do sono”, afirma o médico cardiologista Luciano Drager, presidente da Associação Brasileira do Sono (ABS).

Ter apneia é muito mais do que simplesmente roncar durante o sono. “O ronco é o primeiro sinal de que o indivíduo pode ter AOS. Inicialmente, é um problema social, mas é um alerta de que precisa ser investigado. É preciso saber qual é o diagnóstico que a pessoa tem”, explica a médica do sono e otorrinolaringologista Cristina Salles, coordenadora do Serviço de Medicina do Sono do Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e professora da Escola Bahiana de Medicina.

Não é incomum que só a insônia seja lembrada como um distúrbio do sono. Mas a apneia também é. Ela causa paradas respiratórias enquanto a pessoa dorme e, com isso, pode levar a complicações cardiometabólicas graves, como hipertensão, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca e a própria diabetes tipo 2. Em casos extremos, pode levar à morte.

Por sua vez, a tirzepatida foi aprovada no Brasil no ano passado apenas para o tratamento de diabetes tipo 2, mas ainda não está à venda nas farmácias. Pacientes que têm acesso no país têm importado por conta própria, por valores que chegam a R$ 10 mil. 

Obesidade

Na primeira pesquisa, as pessoas com quadros moderados a grave de apneia e com obesidade receberam a medicação ou placebo por 52 semanas, depois de um sorteio. Já no estudo 2, que durou o mesmo período de tempo, os pacientes foram sorteados para o tratamento com a tirzepatida ou o placebo, mas um dos critérios era de que usassem o aparelho CPAP.

“Nos dois estudos, no início e ao final do seguimento, os pacientes realizaram uma avaliação clínica incluindo diversos questionários sobre o sono; a polissonografia, utilizada para avaliar a gravidade da apneia; medida da pressão arterial e exames laboratoriais”, diz o cardiologista Luciano Drager, da ABS.

Ainda que a apneia seja multifatorial, a obesidade é uma das condições mais comuns em pacientes que convivem com ela. Segundo Drager, as estimativas são de que até 50% dos pacientes com obesidade podem ter algum grau de AOS. Quando a pessoa tem diabetes, a condição é ainda mais frequente. Para quem tem obesidade grau 3, que corresponde ao Índice de Massa Corpórea maior do que 30, a condição aparece em mais de 90% dos casos.

Por isso o Mounjaro foi testado como uma possível saída. A tirzepatida é agonista do GLP-1 e do GIP, que são liberados no intestino após a refeição. Na prática, isso significa que ela é uma substância capaz de se ligar ao receptor celular e provocar uma resposta biológica. Enquanto o GLP-1 é o peptídeo similar ao glucagon (hormônio que sai do pâncreas), o GIP é o polipeptídeo insulinotrópico glicose-dependente. Ambos contribuem para a sensação de saciedade. Assim, o Mounjaro vem sendo comparado a uma cirurgia bariátrica sem cortes, uma vez que os resultados mostram redução de até 26% no peso. Na cirurgia, a diminuição é em torno de 25%.

"Até o momento, acredita-se que a melhora na apneia do sono deva-se à redução do peso de forma muito significante, o que habitualmente não é conseguido com dieta e atividade física. Não existem evidências de que a tirzepatida melhore a apneia do sono por outros fatores", acrescenta o presidente da ABS.

Para o diretor médico da farmacêutica Eli Lilly (que produz o Mounjaro), Luiz André Magno, os testes mostraram o potencial da tirzepatida. Sem a opção de outro remédio hoje, o executivo considera que as possibilidades são “animadoras”. “Esperamos que no futuro próximo possamos oferecer um tratamento eficiente e seguro para quem precisa, ajudando a melhorar a vida dessas pessoas no Brasil e no mundo".

Presente e futuro

Atualmente, não existe tratamento medicamentoso para a apneia. Em geral, a mudança de hábitos costuma ser a primeira indicação pela médica do sono e otorrinolaringologista Cristina Salles, do Hospital das Clínicas da Ufba, aos pacientes. Nesse aspecto, reeducação alimentar e atividade física podem ser uma abordagem para pacientes com obesidade. Além disso, é possível usar um aparelho intraoral, desenvolvido por dentistas do sono. Esse equipamento puxa a mandíbula e a língua para a frente, evitando a obstrução.

"Por último, tem o aparelho CPAP, que é o padrão ouro para a apneia. Ele gera uma pressão positiva e evita que tenha o colapso na via aérea. É como se ela criasse um vácuo na via aérea e fechasse tudo", explica Cristina. No entanto, a pessoa vai passar a vida inteira sendo acompanhada por um médico do sono e por um fisioterapeuta. "A gente tem que acompanhar de perto para ver quais são as dificuldades que o paciente está tendo. Vejo os meus pacientes, no mínimo, a cada três meses. Digo que é um casamento sem direito a divórcio, porque a pessoa vai passar a vida toda usando".

Por isso, a tirzepartida surge como uma novidade promissora. "Para a gente, não é surpresa que haja melhora da AOS, porque o indivíduo perde peso. Mas o medicamento ainda não está disponível no mercado. Só quando liberar em grande quantidade que a gente começa a ver a ação. Se realmente trouxer esse benefício, será para pacientes acima do peso. Nem todo mundo com apneia vai fazer uso da tirzepatida e vai ficar bem", acrescenta a médica do sono.

Além de pessoas que não têm obesidade, há o fato de que mesmo entre quem tem IMCs mais altos é possível não ter resultados tão bons. Isso se explica justamente pelo fato de apneia ser multifatorial. Com esses indivíduos, seria preciso fazer uma investigação de outras causas.

Para o médico do sono Luciano Drager, agora são necessários novos estudos com outros pacientes - pessoas sem diabetes e com sobrepeso, por exemplo. Pacientes com alterações craniofaciais também não fizeram parte dos testes. "Considero precoce dizer que esta medicação irá substituir os tratamentos tradicionais para a apneia, mas a tirzepatida tem potencial para surgir como um tratamento eficiente desse importante distúrbio de sono", completa.