Quem são as mulheres que serão assunto obrigatório em aulas e livros a partir de 2025

Mudança na lei exige que histórias sobre mulheres sejam obrigatórios em escolas de nível básico e médio

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 29 de setembro de 2024 às 11:00

O panfleto Lamentos de Uma Baiana foi escrito por Urânia Vanério, na época com 10 anos
O panfleto Lamentos de Uma Baiana foi escrito por Urânia Vanério, na época com 10 anos Crédito: Reprodução

Em 1798, a monarquia portuguesa estava sob ameaça. O Tribunal de Relação da Bahia, órgão com poderes judiciais da época, chamou dezenas de pessoas para prestar depoimentos sobre os envolvidos na Conjuração Baiana. Entre as testemunhas estava uma jovem parda de 17 anos, moradora do centro. As autoridades queriam saber o que ela tinha a dizer sobre um tal de João de Deus do Nascimento.

Anna Romana Lopes de Nascimento, que, apesar do sobrenome, não era parente do acusado, poderia mesmo falar algumas coisas sobre João, de quem foi amante.

De frente para os engravatados, a mulher contou que o rapaz falava, sim, sobre ideias de liberdade na intimidade do casal, mas ela aproveitou a oportunidade para outra denúncia: o espancamento que sofreu do ex.

Na época, não existia qualquer lei que protegesse as mulheres de agressões físicas. Ainda assim, Anna revelou a violência a que foi submetida.

A história dela, se não revolucionou a conquista por direitos femininos no Brasil, apresenta hipóteses sobre os índices de violência contra a mulher no passado e quais eram os caminhos possíveis para as vítimas.

Quem descobriu esse caso foi a historiadora Patrícia Valim, professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), durante o doutorado.

“Durante muitas décadas, eventos assim não apareceram nas aulas e livros de história, que foi escrita por homens e para homens. É como se metade — e hoje somos maioria — da população brasileira não tivesse existido”, lamenta.

A história da baiana Anna Romana pode, agora, se tornar parte de uma revolução didática. Uma mudança na Lei nº 9.394, de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, sancionada na última quarta-feira (25), passa a incluir, a partir de 2025, a obrigatoriedade de abordagens femininas nos conteúdos curriculares do ensino fundamental e médio.

A alteração, resultado de uma luta de ao menos cinco décadas do movimento feminista, também institui a Semana de Valorização de Mulheres que Fizeram História nas escolas de educação básica.

Enquanto o nome de Anna ainda é desconhecido pela maioria da população, o de João, seu agressor, é bem popular na história baiana.

Em 1932, uma rua do centro da cidade ganhou o nome João de Deus em homenagem a ele. Posteriormente, ele também recebeu um busto na Praça da Piedade.

As mulheres em pauta na sala

Na infância em São Paulo, Patrícia Valim não lembra de ouvir falar de histórias de mulheres nas salas de aula. Nem as grandes heroínas, nem as misteriosas que protagonizaram papéis-chave em momentos decisivos que fizeram história.

“Fiz curso de pedagogia, história, tenho dois pós-doutorados. Fui formada por homens, numa bibliografia escrita por homens. Mas no doutorado eu engravidei e minha orientadora era mulher, e ali a coisa realmente começou a me chamar atenção”, lembra.

Em 2018, depois de ser vítima de violência física, ela aprofundou ainda mais os estudos sobre quem são essas mulheres de quem pouco se fala.“Sobrevivi e consigo falar disso graças à luta feminista. E essa luta me fez ir para o mundo de um modo absolutamente diferente. Minha pesquisa não consegue estar dissociada da minha vida como mulher na sociedade”.

O trabalho de Valim e de outras historiadoras em busca de narrativas femininas desconhecidas foi fundamental para a modificação na lei.

O Ministério da Educação não informou quais histórias de mulheres devem ser incluídas nos livros didáticos, mas é possível levantar hipóteses. Por exemplo, a luta da garota Urânia, de 10 anos, também descoberto por Valim.

“Urânia Vanério”, descobriu a professora, “é a autora do principal panfleto produzido nas lutas das províncias” pela Independência.

Também há as histórias das mulheres indígenas que participavam ativamente de batalhas; a das mulheres ciganas que, durante o século 18, eram parte significativa do comércio baiano; as mulheres que foram obrigadas a sair de Portugal para o Brasil para se casarem com colonizadores.

Ou pode ser que também tenham destaque histórias como as de freiras do Convento dos Desterros, que emprestavam dinheiro para a produção de açúcar em engenhos no Brasil Colônia.

No ano passado, durante pesquisa, Valim atestou que essas histórias, de fato, são minoria nos livros didáticos. Das 12 mulheres estudadas em sala de aula, seis são europeias, duas são negras escravizadas, e uma é branca. Os resultados da investigação serão publicados integralmente em um futuro livro.

"São histórias incríveis, que agora poderão ser conhecidas e lidas por milhões", comemora a membra do Comitê Executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas e do comitê de políticas estratégicas de combate às desigualdades na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

As secretarias Estadual e Municipal (Salvador) de Educação não detalharam como adaptarão o conteúdo didático de acordo com a lei.

A mudança na lei não cita a grade curricular nas universidades.

Uma luta de séculos

Desde o século 19, há publicações de mulheres que reivindicavam espaço nas páginas dos livros — tanto no campo progressista quanto conservador. “Mas a história da mulher realmente ganhou um fôlego grande a partir dos anos 60, 70, e você tem várias colegas importantes para isso, é injusto citar apenas uma”, explica Patrícia Valim.

Não se trata de reivindicar o protagonismo para as mulheres, mas de mostrá-las como protagonistas de suas vidas — e figuras importantes em diferentes momentos da história. “Resgatar essas histórias como algo obrigatório é importante para que as crianças cresçam respeitando as mulheres, pelo impacto disso na construção de princípios democráticos. Até hoje, é um tema tangenciado”, opina Valim.

Para Valim, a alteração na lei, ao possibilitar que as mulheres apareçam como protagonistas de si mesmas e de momentos que impactaram o país, reverbera até nos índices de violência.Na Bahia, o Ligue 180, canal de enfrentamento da violência contra a mulher no país, registrou aumento de 27% nas denúncias em 2024. Até o mês de julho, foram 84,3 mil denúncias.

“Tenho certeza de que, a partir das histórias divulgadas sobre mulheres, começaremos a reverter esse número escandaloso de violência. Você imagina essa geração sendo formada aprendendo sobre a luta dessas mulheres”, opina Valim, esperançosa.

Como tem um filho de 13 anos, ela poderá acompanhar de perto os resultados dessa inclusão.