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Carolina Cerqueira
Publicado em 14 de dezembro de 2024 às 02:00
Pela portaria do Colégio Anchieta, das 6h40 às 7h10 da terça-feira da última semana de aulas de 2024, passaram 85 alunos com celulares em punho. Tantos outros guardaram o aparelho nos bolsos e bolsas ao saltarem dos carros. Na área da recepção havia quatro alunos e só um deles estava com as mãos ociosas. Um acessava um joguinho online, outra o Instagram e uma terceira o TikTok.
Quando as luzes da sala se acenderam para que a repórter do CORREIO pudesse se acomodar no fundo e acompanhar com discrição uma manhã de aula de uma turma do 9º ano, três celulares em cima das mesas saltaram aos olhos. Os 18 alunos assistiam a um filme passado pelo professor de Redação.
Na parede do lado direito, um cartaz colado anunciava o texto “NA SALA DE AULA NÃO É PERMITIDO”, acompanhado da foto de um celular. A exigência de que, durante as aulas, os aparelhos fiquem guardados nas mochilas foi adotada nos colégios Anchieta, Portinari e São Paulo, que pertencem ao mesmo grupo, em setembro deste ano.
Na teoria
A decisão aconteceu em meio a uma discussão internacional sobre o tema. Diversos países, estados brasileiros (sem incluir a Bahia) e escolas saíram na frente ao proibir ou restringir o uso de celulares. A nível nacional no Brasil, um projeto de lei sobre o assunto (que corre desde 2015) foi aprovado na Câmara dos Deputados somente na última quarta (11). O texto segue agora para o Senado.
De acordo com o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino da Bahia (Sinepe), cerca de 60% dos colégios baianos já adotaram regras próprias para os ensinos Fundamental I e II. "Somos favoráveis à proibição, a princípio, em todas as séries. O que podemos pensar é uma certa ponderação para o Ensino Médio", declara o presidente do Sinepe, Jorge Tadeu.
Em meio a iniciativas diversas, pais tentam entender quais são as regras adequadas e como lidar com o uso do celular também dentro de casa, inclusive, durante as iminentes férias escolares. Mas a pergunta do momento é mesmo: será que proibir funciona?
Na prática
Apesar da regra, na sala do Colégio Anchieta, muitos aparelhos não só não ficaram guardados nas mochilas naquela terça-feira, como foram usados durante as aulas. Quanto mais a manhã passava (e mais aparente a dificuldade de concentração), mais os alunos se permitiam usar.
Na primeira aula, um menino de cabeça baixa no fundo da sala, que parecia dormir, despertava de vez em quando para dar olhadinhas rápidas e checar se havia chegado alguma notificação.
A segunda aula foi iniciada com um pedido da professora de Português: “Guardem os celulares nas mochilas! Não é para deixar em cima da mesa!”. Um único menino fazia anotações em uma folha de caderno. Na ausência dos aparelhos, os adolescentes pareciam buscar qualquer distração. Além dos grupinhos de conversa, dois alunos distantes entre si mexiam em cubos mágicos (daqueles que você precisa combinar cores iguais em cada uma das seis faces).
Duas meninas, uma de frente para a outra, imitavam uma dinâmica que estava na moda em vídeos do TikTok. Com uma barreira entre elas, de um lado estavam as canetas coloridas e, do outro, as respectivas tampas. A missão era adivinhar a ordem de cores correta. Nem o filme da primeira aula nem as músicas de Chico Buarque sobre a ditadura militar da segunda foram capazes de prender a atenção de todos.
Na segunda metade da manhã, a habilidade de controlar o uso do aparelho estava esgotando. Uma aluna entrou na sala com o celular na mão, pediu desculpa pelo atraso, sentou-se e começou a usar o aparelho. “Guarda o celular antes que eu te leve para Mércia!”, ameaçou a professora. Mércia é a coordenadora pedagógica responsável pelo 9º ano.
Outra aluna deixou o celular na mesa e o utilizava de vez em quando. Um aluno mexeu no aparelho sem se dar ao trabalho de esconder da professora. Aquele que estava de cabeça baixa no fundo da sala durante a primeira aula passou das raras olhadinhas ao uso intenso. Ainda assim, prontamente tirou os olhos da tela e respondeu a uma pergunta feita pela professora à classe.
Os intervalos pareciam abrir caminho para um portal rumo ao alívio. Bastava o sinal tocar para os alunos começarem a se movimentar e a deixar a sala barulhenta, gastando a energia reprimida. O frenesi era de deixar agoniado quem já estava desacostumado com a dinâmica caótica de um ambiente escolar.
Na terceira e última aula, um silêncio que não havia sido feito ainda durante a amanhã tomou conta. O professor de Geografia pediu para os alunos “guardarem as distrações” e respeitarem o grupo que apresentaria um trabalho para a turma. Dois alunos fizeram perguntas para os colegas.
A turma conseguiu por cerca de 10 minutos. Depois, os três celulares que apareciam em cima das mesas viraram quatro, cinco e seis. Um dos alunos adeptos do cubo mágico voltou a mexer no objeto.
Uma abaixou a cabeça para dormir, outro voltou a checar o celular toda hora, mais um pegou o aparelho para usar e um quarto estudante jogava online com o celular apoiado na cadeira da frente, sem condições de ser visto pelo professor. De volta à estaca zero.
Luísa Sande, de 15 anos, que faz parte da turma do 9º ano acompanhada pela repórter do CORREIO, conta que “uma hora a cabeça para de absorver as informações” passadas nas aulas. Enquanto alguns recorrem aos celulares, ela confessa recorrer ao burburinho. “Gosto muito de conversar”, diz.
As aulas mais distantes das datas das provas são as mais propensas às distrações, ela explica. “Muita gente usa para jogar ou ficar nas redes sociais. Eu acho um desrespeito com o professor”, opina. Acrescenta que o nível de rigidez de cada docente faz diferença: “A gente se sente mais solto quando o professor é menos rígido.”
Luísa garante que só usa o celular em sala “às vezes” para fazer anotações quando fica “com preguiça de anotar no caderno”. Laís Góes, de 14 anos, também da mesma turma, alega que só usa no início das aulas, enquanto os professores estão se preparando para começar, e durante os intervalos.
Ela confessa que sentiu falta do aparelho logo nos primeiros dias após a adoção da nova regra, mas logo se acostumou. “Continuo querendo usar o celular, mas me controlo. Eu acho que a medida ajuda porque diminuiu a quantidade de alunos retirados de sala. É muito chato quando o professor tem que parar toda hora a aula para reclamar do celular”, compartilha Laís.
Danila Góes, de 47 anos, é mãe de Laís. Ela concorda com as restrições. “Acho que as crianças não têm maturidade suficiente para fazer esse controle; para eles, é muito mais interessante ficar nas redes sociais do que estudar”, defende.
Em casa, Danila estabelece regras para a filha. Primeiro, nada de celular durante as refeições. Segundo, um horário de estudo longe dos aparelhos. Terceiro, um tempo reservado para uso das redes sociais. Quinto, o exemplo dado pelos pais.
“Estou sempre me policiando com o celular. Laís não tem redes sociais, somente o WhatsApp, porque eu acho que só é legal a partir dos 16 anos. Então eu mesma também não tenho. Temos um aparelho aqui em casa que fica disponível durante a noite para quando quisermos acessar o aplicativo do Instagram”, diz.
Para as férias, Danila admite que vai flexibilizar as regras, mas que também buscará ao máximo proporcionar atividades para a filha que possibilitem que o celular fique em segundo plano. A mãe de Luísa, Carina Sande, de 50 anos, conta que a filha passará 12 dias em um acampamento de férias que exige que os celulares sejam deixados em casa.
Fora dos 12 dias, as regras de todo o ano continuam valendo. Carina aplica restrição de horário para uso do aparelho e tenta fazer com que os livros substituam as redes sociais. “Ela tem metas de leitura, um prazo de um ou dois meses para cada livro. Se não cumpre, tem punição relacionada ao uso do celular”, compartilha.
Para o psicólogo social Jonathan Haidt, Danila está correta. Ele, que é professor da Universidade de Nova York e autor do livro Geração Ansiosa (Companhia das Letras), participou do Roda Viva discutindo o tema na última segunda (9). Ele defende que é preciso realmente proibir e as redes sociais só deveriam ser acessadas por maiores de 16 anos.
“Os estudantes precisam trancar os celulares em algum lugar ao entrar na escola. [...] Muitas pessoas perguntariam por que não educamos as crianças para usar o celular, mas já tentamos isso e ninguém está conseguindo; essas coisas são viciantes. Crianças até 12 anos não têm o córtex pré-frontal bem desenvolvido, não são capazes de identificar que algo faz mal e não fazer", disse no Roda Viva.
O especialista explica que recorremos ao celular para não nos entediarmos e com os alunos durante as aulas não é diferente. Para a professora Edineia Santos, do Ensino Fundamental II do Salesiano Dom Bosco, é difícil conseguir 100% da atenção dos alunos durante 50 minutos.
“Eu acho que é da faixa etária mesmo, a gente entende, é normal. Precisamos tentar trabalhar conteúdos de forma lúdica, não deixar a aula muito teórica. É o papel do professor na era tecnológica”, defende. Jonathan Haidt discorda:
“Nunca temos tempo para pensar e sermos criativos, tudo é conteúdo. E, quando algo não é interessante o suficiente, passamos para o próximo. Não podemos apenas tentar tornar o professor mais interessante do que o celular, precisamos ensinar os alunos a prestar atenção até em coisas chatas", rebateu no Roda Viva.
A neuropediatra Fernanda Dubourg reforça: “Estudos científicos têm demonstrado que o uso excessivo de telas causa déficits neuropsicológicos em crianças e adolescentes, afetando atenção, concentração e memória, que são fundamentais para a aprendizagem.”
O diretor do Anchieta, Edmundo Castilho, defende que a atitude do colégio, juntamente com o São Paulo e o Portinari, de proibir o uso de celulares em sala de aula foi de “coragem”. Ele diz que, no início, uma parcela dos pais reclamou, alegou invasão de privacidade e prejuízo do contato com os filhos. Com o tempo, aceitaram a medida. Os professores, no entanto, são os mais satisfeitos.
Ademilton Albuquerque, head de operações escolares do Anchieta, conta que a regra veio diante da quantidade de episódios de alunos retirados de sala por usarem o aparelho (que registrou redução de 83%, segundo o colégio, após a medida) e da reclamação dos professores. A restrição vale para todas as séries e há exceção para usos pedagógicos nas aulas.
Em 2023, a Unesco, órgão das Nações Unidas, divulgou um relatório a partir de uma pesquisa em 14 países que aponta que os efeitos do uso de celular são negativos, principalmente para a memória e compreensão, para os resultados educacionais. Países como Finlândia, Holanda, Portugal, Espanha e Estados Unidos recentemente aprovaram políticas de proibição ou restrição dos aparelhos.
No Brasil, o Projeto de Lei 104/15, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dia 11, foi criado em 2015 e voltou ao debate em 2024 quando o Ministério da Educação demonstrou interesse em preparar uma medida própria. O texto do PL prevê a proibição de todos os aparelhos eletrônicos portáteis em escolas públicas e particulares, inclusive no recreio e intervalos, em todas as séries.
No último dia 5, um projeto de lei no nível estadual em São Paulo foi sancionado. No nível municipal, o Rio de Janeiro foi um dos primeiros a proibir. Na Bahia, seis projetos foram protocolados sobre o tema nos últimos 15 anos, mas nenhum aprovado. O mais recente é de novembro e está em tramitação na Assembleia Legislativa, com autoria do deputado estadual Robinho (União Brasil). O texto também prevê a proibição de qualquer dispositivo tecnológico em todo o período escolar, tanto em instituições públicas quanto privadas.
Apesar da indefinição nas leis baianas, diversos colégios do estado, além dos três já citados, adotaram as próprias regras. No Antônio Vieira, o uso de celular é proibido até o 7º ano e os alunos não podem nem levar os aparelhos para a escola. A decisão foi tomada após uma pesquisa com os pais. A princípio, a regra valia até o 5º ano e, há cerca de dois anos, a abrangência foi estendida. A partir do 8º ano, a proibição é somente do uso em sala de aula.
No Villa Global Education, o uso do celular na escola é proibido na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I. Os alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio só podem usar em locais específicos, chamados de “zonas livres” e no horário da saída.
Há uma rede de internet da escola, com controle e filtros de segurança, para ser utilizada. Nas salas, os alunos têm tablets e notebooks à disposição para fins pedagógicos com mediação dos professores. Para 2025, a possibilidade de acirrar as regras de proibição para os alunos mais velhos está sendo estudada.
No Salesiano Dom Bosco, não há proibição expressa de uso do celular ou punição em caso de uso, mas a orientação é que os alunos só utilizem com autorização do professor. Nos intervalos, não há restrições.
No Colégio Oficina, a coordenadora de admissão e civilização Carla Bahia compartilha que as regras sobre uso de celular estão em análise para possíveis mudanças em 2025. Até o momento, o uso dos aparelhos segue proibido em sala de aula para todas as séries.
A Secretaria de Educação de Salvador (Smed) afirma que não adota restrições nas escolas, que defende o uso pedagógico em sala e que considera os aparelhos importantes para o processo de ensino, bem como para a inclusão e acessibilidade. "A proibição pode ocasionar alguma situação familiar, pois muitas vezes é o único meio de comunicação entre o aluno e seus pais ou responsáveis", diz a nota.
A Secretaria de Educação da Bahia (SEC) foi procurada para informar sobre regras adotadas em escolas públicas em relação ao uso de celular, mas não respondeu ao contato.