Professores de universidades lançam carta de repúdio a projeto da rede estadual com escola de inglês

Secretaria de Educação do Estado (SEC) anunciou parceria com a Acbeu; professores da área de Letras dizem ter sido excluídos de debate

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  • Thais Borges

Publicado em 8 de setembro de 2024 às 05:00

Acbeu na Avenida Magalhães Neto
Acbeu na Avenida Magalhães Neto Crédito: Marina Silva/CORREIO

Professores de universidades federais e estaduais da Bahia escreveram uma carta de repúdio a um projeto do governo estadual com a Associação Cultural Brasil-Estados Unidos (Acbeu), para ensino de língua inglesa em escolas da rede. Para os docentes da área de Letras que assinam o manifesto, o programa, anunciado à imprensa baiana no fim de julho, exclui a categoria do diálogo.

O documento, assinado por 85 professores e ao qual a reportagem teve acesso, pontua que o ensino de línguas no Brasil é historicamente excludente e elitizado, ao mesmo tempo em que tem sido entregue a empresas estrangeiras. Entre os signatários, há docentes de instituições como a Universidade Federal da Bahia (Ufba), a do Sul da Bahia (UFSB), a do Estado da Bahia (Uneb) e a Estadual de Santa Cruz (Uesc).

"Pois, embora pareça uma ação salutar, tal atitude se constitui arbitrária e com muitos equívocos, uma vez que os propósitos de um curso livre de idiomas não se coadunam com a legislação que orienta a educação brasileira para o ensino regular", diz um trecho da carta, que é endereçada à Secretaria da Educação do Estado (SEC).

Além disso, o órgão teria abandonado um projeto que vinha sendo formatado a partir das discussões com os professores universitários. Trata-se do projeto Outras Palavras, que chegou a ser oficializado em 26 janeiro de 2022, em um decreto publicado no Diário Oficial do Estado naquela data e assinado pelo ex-governador Rui Costa. A secretaria negou que tenha reduzido carga horária de inglês e nem confirmou que o programa foi descontinuado (veja abaixo).

"Essa foi só mais uma das iniciativas", diz a professora Cristiane Landulfo, do Instituto de Letras da Ufba. Uma das responsáveis pela carta, ela afirma que não houve resposta aos pedidos de diálogo feito pelas universidades.

O Brasil é signatário de documentos como a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, que define que qualquer pessoa tem o direito de aprender as línguas que quiser. "Políticas linguísticas devem ser realizadas no âmbito nacional, estadual e municipal. Não temos, na Bahia, nenhuma política que promova o acesso a diferentes línguas - não só as modernas, mas línguas indígenas e africanas", explica Cristiane, que é vice-presidente da Associação de Linguística Aplicada do Brasil.

"Políticas linguísticas devem ser realizadas no âmbito nacional, estadual e municipal. Não temos, na Bahia, nenhuma política que promova o acesso a diferentes línguas - não só as modernas, mas línguas indígenas e africanas"

Cristiane Landulfo
professora do Instituto de Letras da Ufba

Em 2023, a resolução 155 do Conselho Estadual de Educação chegou a instituir orientações para uma educação plurilíngue no sistema de ensino do estado. O plurilinguismo é uma abordagem de ensino que desenvolve habilidades de comunicação baseadas em todas as experiências linguísticas e culturais, de forma interativa. No plurilinguismo, de acordo com teóricos da área, há um processo de aprendizagem ao longo da vida. O objetivo final não é alcançar a ideia de ‘soar como nativo’, mas se comunicar de forma pluralista e eficaz.

Professores do Instituto de Letras da Ufba estão entre os signatários
Professores do Instituto de Letras da Ufba estão entre os signatários Crédito: Marina Silva/CORREIO

Projeto

Na carta, os professores não deixam de destacar a importância de projetos de parceria com embaixadas estrangeiras a partir da experiência de reciprocidade, a exemplo do Idiomas sem Fronteiras, programa federal que oferecia cursos de idiomas ligados às universidades federais. No entanto, eles defendem que não se deve implementar uma educação linguística pela ingerência de outros países.

Eles reforçam que as demandas da categoria nunca foram de parcerias com instituições privadas ou estrangeiras. O material didático, segundo os docentes, devem ser aqueles aprovados pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).

"Os nossos questionamentos sobre a qualidade da Educação Linguística, principalmente no interior da Bahia, dizem respeito às condições físicas das escolas, o acesso às novas tecnologias e ao material didático, a formação em serviço de professores, o plano de carreira dos professores da Educação Básica, a valorização do trabalho docente, a maior carga horária e menor número de alunos, especialmente nas aulas de línguas estrangeiras".

A professora Cristiane Landulfo, da Ufba, explica que entidades como escolas de idiomas não são reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC). "Elas estão dentro do que a gente chama de prestação de serviços. Não podem e não deveriam estar dentro do ensino básico", acrescenta. "Como eles vão trabalhar com livros aprovados pelo PNLD, se a Acbeu não utiliza? A gente sequer sabe se todas as pessoas que ensinam lá ou em qualquer curso de idiomas são formadas em Letras".

No caso do projeto Outras Palavras, apesar de ter sido anunciado, os docentes apontam que não houve avanços além de alguns encontros e lives na época. Uma das propostas pensadas pelas universidades era de que os estudantes das licenciaturas ensinassem idiomas nas escolas, já que um dos gargalos das graduações é o de encontrar locais para o estágio obrigatório.

Assim, os alunos poderiam ser inseridos pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), que é uma política do MEC. Eles seriam supervisionados pelos professores das universidades. "Esse seria o primeiro passo, mas há outras iniciativas que podem ser feitas, como a criação do Centro de Idiomas da Bahia", sugere Cristiane.

Há exemplos considerados bem-sucedidos em estados como o Ceará, que tem o Centro Cearense de Idiomas, ou do município de Jundiaí, no interior de São Paulo. Nestes espaços, professores são servidores e podem se dedicar à carreira. Aqui, contudo, não houve sinalização positiva até o momento. "Há uma falta de vontade de dialogar com pessoas que entendem do assunto. É fácil contratar um serviço terceirizado, jogar para eles e dizer que está ofertando".

Carga horária

Ao mesmo tempo em que a parceria era anunciada, professores denunciavam outras medidas, a exemplo da redução da carga horária do ensino de idiomas. Em algumas escolas, a carga horária semanal passou de duas aulas para uma. Em outras, não há nem mesmo uma hora de aula.

Concursada para ensinar inglês na rede estadual, a professora Roberta Peixoto foi uma das que viu isso acontecer. A mudança começou com a implementação do Novo Ensino Médio (NEM) e a aprovação do Documento Curricular Referencial da Bahia, em 2022.

O projeto mais recente do NEM foi sancionado pelo presidente Lula em agosto. A partir de 2025, a carga horária da formação geral básica nos três anos voltará a ser de 2,4 mil horas e 600 horas de itinerários formativos - no modelo que entrou em vigor em 2022, havia sido reduzido a 1,8 mil horas obrigatórias.

Com a diminuição da quantidade de aulas, ela não tinha carga horária suficiente nos Colégios Estaduais Pedro Calmon e Santa Bernadete, ambos em Amargosa. "Houve redução para uma aula por semana e, na grade curricular de algumas séries, a língua foi eliminada. Em uma das escolas em que atuo, os estudantes do 3º ano não têm aula de inglês, mas podem ter uma disciplina com três aulas por semana de um componente chamado ‘Trabalhar por quê?”, diz ela, doutora em Língua e Cultura com foco em inglês.

"Houve redução para uma aula por semana e, na grade curricular de algumas séries, a língua foi eliminada. Em uma das escolas em que atuo, os estudantes do 3º ano não têm aula de inglês, mas podem ter uma disciplina com três aulas por semana de um componente chamado ‘Trabalhar por quê?"

Roberta Peixoto
professora de inglês na rede estadual

Formada em Letras - Português e Inglês, ela atualmente ensina Redação, Iniciação Científica, Práticas Integradoras e somente uma turma de Inglês. Com as novas disciplinas, o trabalho de planejamento aumentou. Por outro lado, não há espaço com equipamentos e materiais para ensino de idiomas. "Há muito tempo, utilizo os meus equipamentos (datashow, notebook) e a internet do meu pacote".

Se recebesse a notícia quanto à formação da Acbeu antes, diz que ficaria feliz, uma vez que já teve contato com duas formações para professores da escola pública na instituição. No entanto, diante do atual contexto de ensino do idioma na rede, a situação é diferente.

"A língua foi praticamente eliminada em alguns contextos e professores capacitados estão impossibilitados de colocarem em prática o que passaram anos para construir. É incoerente ouvirmos como justificativa para essa ação que os estudantes precisam do inglês diante de uma política que eliminou essa língua da grade curricular".

Para a professora Kelly Barros, docente da área de inglês na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a redução é um indício de que o inglês não é prioridade. "É muito estranho que surja uma parceria com uma instituição séria (Acbeu), mas que trabalha com um público diferente do estudante de escola pública. O estudante de escola pública precisa que a SEC volte a dar uma carga horária digna na sala de aula e volte a dar, aos professores de língua inglesa, o direito de ensinar".

De acordo com ela, que é doutora em Língua e Cultura e desenvolve projetos de democratização do ensino do inglês como língua franca, é preciso haver mais transparência em aspectos da parceria, a exemplo de como serão as condições para os professores.

"Não ficou claro se o professor de escola pública vai receber sua carga horária de volta, se vai receber formação. Quem é que vai dar essa aula e em quais condições? Vai ser na mesma sala de aula? Os alunos terão nivelamento? Ou será que a gente vai só botar uma maquiagem nova num problema muito sério e antigo?".

Um exemplo de referência para formação no ensino de inglês em escolas públicas, na avaliação da professora, é o Instituto Steve Biko, que desenvolveu um ensino afrocentrado que dialoga com a realidade de Salvador.

"Não ficou claro se o professor de escola pública vai receber sua carga horária de volta, se vai receber formação. Quem é que vai dar essa aula e em quais condições? Vai ser na mesma sala de aula? Os alunos terão nivelamento? Ou será que a gente vai só botar uma maquiagem nova num problema muito sério e antigo?"

Kelly Barros
professora da UFRB

"Respeito muito a Acbeu e trabalhei lá. Ele agrega o nome ao projeto, mas a gente não precisa de uma marca para dizer que a escola pública funciona. A gente precisa da escola pública. Não posso deixar o mesmo formato de uma escola de inglês que vai enxergar o aluno como aquele aluno que vai para a Disney uma vez por ano".

Ampliação

A SEC negou que a carga horária de inglês tenha sido reduzida nas escolas da rede e informou que a ampliação do tempo de permanência dos estudantes nas escolas estaduais, com ensino em tempo integral, são uma das estratégias do governo estadual. Segundo a secretaria, o programa Outras Palavras tem objetivo de oportunizar aos estudantes da rede o ensino e o aprofundamento de estudos em outro idioma de modo complementar no currículo.

"A disciplina está definida como obrigatória, tanto pela Lei Federal 13.415/2017, quanto pela Lei Federal 14.945/2024, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, tornando a Língua Inglesa como obrigatória na formação geral básica para todos os brasileiros, podendo, ainda, serem ofertadas outras línguas estrangeiras, preferencialmente o espanhol", dizem, em nota.

A secretaria disse, ainda, que tem dialogado com instituições interessadas em parcerias para ampliar a formação integral e que incentivem os estudantes a conhecerem a realidade de outros países. "Nesse sentido, a Secretaria tem se reunido com várias instituições, a exemplo do Conselho da Educação da Embaixada da Espanha, ocorrido nesta semana", completam.

"Nesse sentido, a Secretaria tem se reunido com várias instituições, a exemplo do Conselho da Educação da Embaixada da Espanha, ocorrido nesta semana"

Secretaria Estadual de Educação
(SEC)

Já a Acbeu ressaltou que é uma instituição sem fins lucrativos signatária do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) e membro da Coligação das Entidades de Cultura Brasil-Estados Unidos, que tem o ensino de inglês com excelência e a promoção da compreensão mútua entre Brasil e Estados Unidos como pilares. A instituição informou que a proposta de parceria com a SEC se deu pelo modelo de ensino integral.

"Nesse sentido, a Acbeu reconhece o pleito dos professores, porém defende que investe no desenvolvimento de soluções que levam o ensino da língua inglesa de qualidade para governos municipais e estaduais de forma customizada, qualificando o próprio corpo docente do contratante. Muito além de uma escola de idiomas, a Acbeu é o único centro binacional na Bahia reconhecido pela Embaixada e Consulados dos EUA e pelo US Mission Brasil, que também a reconhece como American Space", acrescentam.

Leia as notas da SEC e da Acbeu na íntegra

  • Secretaria da Educação do Estado (SEC)

A Secretaria da Educação do Estado (SEC) informa que a ampliação do tempo de permanência dos estudantes nas escolas estaduais, com a oferta de ensino em tempo integral, tem sido uma das estratégias que contribuem para o avanço no Ideb. Nesse sentido, o Governo da Bahia instituiu o programa Outras Palavras através do Decreto Estadual nº. 21.080, de 25 de janeiro de 2022.

O objetivo do programa é oportunizar aos estudantes da rede estadual de ensino o aprofundamento dos estudos em outro idioma, de modo complementar ao currículo escolar, para uso nas diversas situações em que seu conhecimento é necessário.

Informa, ainda, que não procede a redução de Carga Horária de Língua Inglesa. A disciplina está definida como obrigatória, tanto pela Lei Federal 13.415/2017, quanto pela Lei Federal 14.945/2024, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, tornando a Língua Inglesa como obrigatória na formação geral básica para todos os brasileiros, podendo, ainda, serem ofertadas outras línguas estrangeiras, preferencialmente o espanhol.

A SEC mantém diálogo com instituições que tenham interesse em firmar parcerias para ampliação da formação integral e que incentivem os estudantes a conhecerem a realidade de outros países e favoreçam as aprendizagens e uma visão de mundo mais ampla e mais contextualizada a partir da oferta de cursos de língua estrangeira. Nesse sentido, a Secretaria tem se reunido com várias instituições, a exemplo do Conselho da Educação da Embaixada da Espanha, ocorrido nesta semana.

  • Associação Cultural Brasil-Estados Unidos (Acbeu)

A Associação Cultural Brasil-Estados Unidos (ACBEU) é uma instituição sem fins lucrativos, com reconhecimento público municipal, estadual e federal e ainda signatária do Pacto Global da ONU, graças à agenda ESG na educação promovida através de suas unidades de negócio, e membro da Coligação das Entidades de Cultura Brasil-Estados Unidos, que tem como principais objetivos o ensino de inglês com excelência e a promoção da compreensão mútua entre Brasil e Estados Unidos.

Nesse sentido, sobre a carta assinada por professores das Universidades Públicas do Estado da Bahia, referente ao projeto fruto de parceria do Governo do Estado com a ACBEU para ensino de inglês na rede estadual, a ACBEU primeiramente pontua que a proposta de parceria ainda está em curso junto à Secretaria de Educação Estadual.

Para contextualizar, a proposta se deu por conta da demanda gerada pelo modelo de ensino integral que tem se mostrado um dos principais caminhos para uma educação mais qualificada, o que pode refletir nos indicadores de desempenho econômico e social do país nos próximos anos. Com a sanção da Lei 14.640/2023, permitindo a execução do programa Escola em Tempo Integral, cujo objetivo é ampliar as matrículas no ensino básico da rede pública, a oferta de escolas que adotam a proposta tem crescido e reforça o que dizem pesquisas, experiências e especialistas: as vantagens vão além dos saberes previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Para a Associação, ao possibilitar uma alternativa pedagógica que foca em estímulos cognitivos e psicossociais através de disciplinas eletivas e atividades extracurriculares, os resultados vão desde impactos positivos na criatividade, autonomia e permanência dos estudantes até redução de situações de vulnerabilidade – como exposição à violência, insegurança alimentar e dificuldades no acesso ao mercado de trabalho. Os benefícios ainda envolvem maiores chances de entrada nas universidades e ocupações com melhores salários.

A área de Educação está sendo uma das últimas áreas a buscar parcerias público-privadas para viabilizar ações e desenvolvimento de projetos e programas que o Estado não consegue realizar sozinho. Nesse sentido, a Acbeu reconhece o pleito dos professores, porém defende que investe no desenvolvimento de soluções que levam o ensino da língua inglesa de qualidade para governos municipais e estaduais de forma customizada, qualificando o próprio corpo docente do contratante.

Muito além de uma escola de idiomas, a ACBEU é o único centro binacional na Bahia reconhecido pela Embaixada e Consulados dos EUA e pelo US Mission Brasil, que também a reconhece como American Space. Ao longo dos seus mais de 83 anos de atuação, a instituição que já formou mais de 400 mil alunos em língua inglesa, vem investindo na difusão cultural e no desenvolvimento social da Bahia através de projetos e soluções educacionais inovadoras. Seus programas sociais já atingiram mais de 78.000 alunos.

A Associação entende ainda que a necessidade de contratação de fornecedores terceirizados para as atividades complementares tende a aumentar nos próximos anos, com o aumento da demanda por parte das instituições de ensino que terão mais horários para preencher – com a Escola em Tempo Integral e reforça que tal projeto já existe no Programa de Governo há alguns anos e, só agora, está saindo do papel justamente por ter encontrado um parceiro com capacidade técnica e estrutura disponíveis para esta empreitada.

Atualmente, se organiza em seis unidades de negócios: ACBEU Educational Solutions (núcleo de soluções educacionais em língua inglesa), a Maple Bear Canadian School (escola brasileira de educação canadense), a ACBEU International Affairs (área de negócio que engloba o Test Center ACBEU e o EducationUSA, único escritório reconhecido pelo Departamento de Estado Americano como fonte oficial de informações sobre os processos de candidatura e bolsas em instituições americanas na Bahia), ACBEU Maker Education (promove eventos, projetos e qualificação de profissionais e centros de ensino para a educação maker), ACBEU Cultural (com um acervo de cerca de 300 obras de arte datadas, principalmente, das décadas de 1970 e 1980) e o ACBEU Book Buddy (com eventos e projetos literários, e um sistema de bibliotecas cujo acervo físico conta com mais de 17 mil títulos em inglês).