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Publicado em 2 de novembro de 2024 às 05:00
A história do Mausoléu aos Mortos de Canudos, do Cemitério do Campo Santo, é um exemplo interessante para pensarmos, neste Dia de Finados, em uma maneira coletiva e cívica de vivenciarmos a experiência de luto, em complemento à rememoração costumeira ligada ao âmbito dos sentimentos familiares.
Erigido no ano de 1900, por iniciativa do Comitê Patriótico da Bahia, o mausoléu passou, ao longo do século XX e início deste, por um gradativo processo de esquecimento, sendo poucas as pessoas que sabem de sua existência e de sua importância como monumento histórico.
O Comitê Patriótico foi uma organização criada em meio à Guerra de Canudos, sendo fundado a 28 de julho de 1897, em um momento em que as forças militares enfrentavam baixas substanciais em seu efetivo, entre doentes, feridos mutilados e mortos. Composto por membros da elite baiana, com presença em Salvador, Queimadas e Cansanção, tinha o objetivo inicial de angariar doações e prestar assistência social, médica e sanitária especificamente aos soldados e seus familiares.
Com o fim da guerra, em outubro de 1897, esta assistência humanitária, entretanto, logo se estendeu também às vítimas, às viúvas e aos órfãos dos sertanejos conselheiristas [seguidores de Antônio Conselheiro], tornando-se, o Comitê, um dos principais instrumentos na defesa dos interesses e direitos dos vencidos.
A elevação do mausoléu aos mortos de Canudos foi deliberada pelo Comitê Patriótico em uma de suas reuniões extraordinárias, sendo encaminhada petição datada de 31 de agosto de 1899, quase dois anos após finda a guerra, pelo secretário da entidade, o jornalista Léllis Piedade, ao provedor da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, Manoel de Souza Campos.
Dizia assim o documento: “Ilmo. Sr. Desejando este Comitê perpetuar a memória dos mortos em Canudos, por meio de um monumento no Cemitério do Campo Santo, vem solicitar de V. Ex. a necessária licença para aproveitar-se de local que V. Ex. designará em sua sabedoria. O patriotismo nunca desmentido de V. Ex. acolherá este pedido com a solicitude que tanto o caracteriza”.
Despachada a solicitação ao mordomo (espécie de administrador) do Cemitério do Campo Santo, ficou então definido junto ao requerente a concessão de um terreno por este escolhido, em caráter de perpetuidade, no quadro nº 6, medindo 12 x 12 palmos, que por sua vez foi aceito pelo provedor pela oferta de 2 contos de réis. Lavrou-se, assim, a escritura da cessão do terreno em 03 de outubro de 1899, com a finalidade de “n’elle se erigir um monumento em commemoração aos mortos em Canudos”.
Em granito negro, com três metros de altura, em forma de pentágono com ponta piramidal, o monumento teria sido trabalhado nas oficinas de Xaver Arnold, em Hamburgo, na Alemanha. Na face principal, vê-se um escudo de bronze com a inscrição “Em nome da Bahia, Aos mortos de Canudos, Homenagem do Comitê Patriótico”, seguindo-se os nomes do presidente, secretário e tesoureiro (respectivamente o alemão Franz Wagner, Léllis Piedade e Fernando C. Koch).
Registra-se no bronze o ano de 1897, ano da Guerra de Canudos, e não o relativo à edificação do monumento. Segundo o Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia, publicado em 1901, “o monumento custou pouco dinheiro, tal a modéstia que presidiu a sua confecção”.
Inaugurado em 02 de fevereiro do ano seguinte, o monumento teve cerimônia simples, com presença de alguns membros mais atuantes do Comitê, representantes da imprensa e da Santa Casa da Misericórdia. Oraram ou discursaram o cônego Zótico Apetece, capelão do cemitério, o frei capuchinho, membro do Comitê, Jerônimo de Montefiori, o comendador Silvestre de Faria e o jornalista Léllis Piedade.
Um elemento central a ser destacado é o fato de que, diferente da “Homenagem do Exército aos Heróis de Canudos”, obelisco também em granito, erigido pelo Ministério da Guerra, inaugurado em 1961, no Forte de São Pedro, nas imediações do Campo Grande, onde constam, abaixo, em uma placa, os nomes dos comandantes das quatro expedições militares e claramente dedicado ao processo de heroicização da atuação dos militares na Guerra de Canudos, o mausoléu do Campo Santo, concebido sob uma outra concepção e contexto, teve a intenção de fazer memória a todos os mortos, “sem distinção alguma”.
É possível verificar esse intento nas palavras do secretário do Comitê, o jornalista Léllis Piedade, que, segundo o Jornal de Notícias (BA), teria se referido ao monumento como “no campo da morte, o abraço de todos os irmãos que caíram nos campos de Canudos” e nas páginas dos jornais da época, como o Diário do Maranhão, de 15 de março de 1900, que noticia o levantamento do monumento como sendo dedicado “à memória das vítimas da guerra civil de Canudos, sem distinção de partido”.
Simbolizava assim parte da mea-culpa de setores da elite baiana; um reconhecimento do erro cometido contra a população de Canudos, do massacre e da degola praticada pelo Exército ao fim da guerra, já constante em outros documentos textuais como o Manifesto dos Estudantes da Faculdade de Direito da Bahia (03 de novembro de 1897), o Libello Republicano de Cézar Zama e o livro Descrição de uma viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades (ambos publicados em 1899). Era um pedido, ainda que discreto, de perdão, então erigido em pedra e cal; em forma de monumento.
*Marcos Roberto Brito dos Santos é doutor em História pela Universidade Federal da Bahia.