O que explica o aumento da procura por formação de médicos de família na Bahia?

Programas de residência de medicina de família triplicam na Bahia e especialidade chega ao sistema privado; quantidade de vagas saltou de 45 para 237 em 10 anos

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 7 de setembro de 2024 às 05:00

A médica de família Mayara Silva atendendo as pacientes Rejane e Luíse, mãe e filha
A médica de família Mayara Silva atendendo as pacientes Rejane e Luíse, mãe e filha Crédito: Marina Silva/CORREIO

Se você não vivenciou esta experiência, já deve ter escutado seus pais ou seus avós falarem de um médico que os atendia em casa e era chamado de “o médico da família”. Décadas depois, com um hiato de criação de planos de saúde e divisões de especialidades, ele está de volta. Mas troque o “da família” para “de família” e esqueça a imagem do doutor no masculino, branco e acima dos 50.

De 2014 a 2024, o número de residências médicas em Medicina da Família e Comunidade (MFC) autorizadas pelo Ministério da Educação (MEC) no Brasil cresceu 52%, passando de 192 para 292. Já o número de vagas para o primeiro ano da especialização cresceu 134%, saindo de 1.331 para 3.117.

Medicina de Família e Comunidade é uma especialidade, assim como cardiologia e oftalmologia, por exemplo. A criação é recente. De acordo com o MEC, enquanto a primeira residência da especialidade no Brasil (ainda chamada de Medicina Geral Comunitária na época) foi criada em 2000, na Bahia a abertura aconteceu apenas em 2012, no município de Vitória da Conquista.

Em território baiano, a profissão também vem crescendo. Eram 45 vagas em 2014 e, em 2024, são 237. A quantidade de programas de residência saltou de cinco para 18. Foi a expansão da profissão, aliada à pandemia de covid-19, que provocou a reativação da Associação de Medicina da Família da Bahia (Abamefac), em 2021.

“O Brasil demorou de incentivar essa especialidade, mas esse incentivo começou em 2013, com o Programa Mais Médicos, que expandiu programas de residência. Ele ficou mais conhecido por trazer médicos de fora para atuar no Brasil, mas também reforçou a Atenção Primária à Saúde e fomentou a profissão de médico de família e comunidade”, diz a presidente da Abamefac, Lorena Rosario.

No Rio de Janeiro, a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fiocruz, criou a residência em Medicina da Família e Comunidade em 2009, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De lá para cá, aumentou o número de vagas anuais de oito para 14. “No início, a gente nem preenchia todas as vagas, a procura era baixa. Isso nunca mais aconteceu”, relata a coordenadora da residência, Regina Daumas.

“Hoje acho que a profissão é mais valorizada, as pessoas estão conhecendo mais. Achavam que qualquer médico pode ser médico de família, bastava ficar ali no postinho e não ter especialidade em nenhuma parte do corpo”, avalia Regina.

Onde estão os médicos de família?

A dona de casa Bruna Araújo, de 27 anos, mora em Jacobina, conta com o sistema público de saúde e não poupa elogios à especialidade. Ela e toda a família são assistidos, há quatro anos, por um médico de família. São 10 pessoas ao todo, que moram na mesma casa.

“A gente é atendido em casa e o médico já conhece todo mundo há quatro anos, então isso facilita muito. Ela sabe exatamente a nossa situação. Eu estou grávida e fazendo meu pré-natal com ele. Para mim é ótimo porque ele acompanhou a minha última gravidez também, sem falar que é um outro nível de atenção que a gente recebe, uma pessoa que realmente chega junto”, compartilha.

Os médicos de família não estão só no Sistema Único de Saúde (SUS); estão em consultórios e clínicas em bairros como Horto Florestal e Costa Azul, em Salvador, sem deixar as visitas domiciliares de lado.

Esse é o caso da médica Juliana Abreu, de 33 anos. Ela cursou a graduação na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e fez a especialização na Universidade Federal da Bahia, concluída em 2023. Hoje ela tem um consultório próprio no Horto Florestal.

A médica de família Juliana Abreu tem um consultório no Horto Florestal
A médica de família Juliana Abreu tem um consultório no Horto Florestal Crédito: Marina Silva/CORREIO

“Eu faço uma abordagem diferente porque quero conhecer, de fato, o paciente. Muitos deles me perguntam se eu sou psicóloga, até se eu sou jornalista. Tem gente que ainda estranha, mas vemos que existe uma demanda porque muitos contam que me procuraram porque estavam cansados de ir a diversos médicos e eles nem olharem na cara ou nem examinarem”, relata Juliana.

Formação e atuação

Foi o contato mais próximo com os pacientes que fez os olhos da médica nascida em Alagoinhas Mayara Silva, de 30 anos, brilharem. Mesmo já na faculdade, ela só ouviu falar sobre a especialidade em um congresso, no Rio de Janeiro, ao conhecer um médico que trabalhava na Rocinha.

“Ele sabia onde as pessoas moravam, a estrutura de vida, determinantes sociais. Ele passava nas ruas e as pessoas o conheciam. Eu fiquei pensando ‘uau! É isso que eu quero fazer!’”, lembra. Hoje, ela atua na Clínica Cisviver, no bairro do Costa Azul, em Salvador, e é apoiadora pedagógica do programa de residência da Bahiana de Medicina.

Ela concluiu a residência em 2022 e conta uma das coisas que mais a encanta é poder atender pacientes em todos os ciclos de vida, fazendo um acompanhamento a longo prazo. Médicos de família atendem crianças, adolescentes, adultos, gestantes e idosos.

Regina Daumas explica que a carga horária prática da residência pode variar entre 80 a 90%, enquanto a teórica fica entre 10 e 20%. “A formação é baseada em atendimento em consultório ou visitas domiciliares, passando por urgência e emergência e atendimento ambulatorial”.

Mãe e filha, Rejane e Luíse Cerqueira, respectivamente com 53 e 21 anos, são pacientes de Mayara. Rejane conta que teve contato com o termo “medicina de família” somente em 2020, durante a formação para professora de yoga do riso, cujo criador é um médico de família indiano. “Eu estranhei o termo e fui pesquisar, mas fiquei achando que era algo que não tinha no Brasil, que era de fora”, diz.

A médica de família Mayara Silva atende em uma clínica no Costa Azul
A médica de família Mayara Silva atende em uma clínica no Costa Azul Crédito: Marina Silva/CORREIO

O pensamento continuou até ela e a filha conhecerem Mayara, quando procuraram uma nutricionista na Cisviver e passaram pela médica antes como pré-requisito. Rejane lembra que foi conquistada pela abordagem diferenciada. “Vai além das questões físicas e do pensamento saúde versus doença. Ela pergunta do meu trabalho, rotina, relações familiares. Na primeira consulta, comentei com a minha filha: ‘eita, ela quer saber tudo da nossa vida!’, mas isso é bom, hoje sinto que criei uma relação com ela e uma confiança nesse acompanhamento”, compartilha.

Para explicar o atendimento, Rejane recorda o episódio em que relatou a Mayara que estava com a respiração ofegante. “Eu contei que tinha ido ao otorrino e ele tinha dito que não detectou nada, que não era falta de ar. Então Mayara disse que era estresse e ansiedade, com base nos conhecimentos que ela tem do meu dia a dia e do meu trabalho, e me encaminhou ao psicólogo”, coloca.

Mayara Silva acrescenta que o atendimento passa por aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais ou religiosos. “A gente também tem a grata surpresa de receber pacientes que chegam encaminhados por outros especialistas. Tem, por exemplo, uma pessoa que é acompanhada por um neurologista e que teve um AVC. O neurologista disse que ela precisava de um acompanhamento durante o processo de reabilitação e encaminhou para a medicina de família”, conta Mayara.

Profissão do futuro?

Para a médica, a especialidade deve crescer ainda mais nos próximos anos. “Eu vejo como a profissão do futuro. Cada vez mais as pessoas vão entender a importância da existência de médicos de família, de ter alguém que te acompanhe, que te enxergue na totalidade, que não te veja por partes”, defende.

A demanda, inclusive, parte dos planos de saúde. “Os planos têm aberto portas, entendendo que os médicos de família reduzem custos. Nós só vamos pedir exames quando necessário, só vamos encaminhar para especialistas quando necessário e vamos internar menos porque o trabalho de prevenção e acompanhamento é muito forte. É o que chamamos de escolhas sábias em saúde”, destaca.

O diretor técnico-médico da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Cássio Ide Alves, confirma o interesse dos planos pela medicina de família. “Os planos estão cada vez mais tendo como foco o investimento na atenção primária, na medicina preventiva. É mais racional, melhor para a jornada dos pacientes e mais sustentável. A gente quer manter a saúde do beneficiário e não ter que chegar ao ponto de tratar uma doença grave”, coloca.

Mas ele pondera o cenário. “Ainda temos pouca oferta desses profissionais, é uma especialidade recente e são os planos mais novos que estão absorvendo-os. Ainda temos uma questão cultural de uma sociedade que valoriza muito a especialização, os beneficiários ainda demandam uma multiplicidade de especialistas”, acrescenta o diretor.

Para a presidente da Abamefac, Lorena Rosario, a explicação está no comportamento do setor médico privado. “A formação de especialistas, em muitos países, é vinculada às necessidades de saúde da população. As vagas são abertas conforme essa identificação. No Brasil, não é bem assim, é mais uma demanda de mercado e o setor privado domina. Isso está relacionado com a medicalização da vida e a fragmentação do olhar para o corpo. Hoje, os estudantes já entram na faculdade desejando uma especialidade”, diz.

De acordo com a Demografia Médica no Brasil de 2023, enquanto 62,3% dos médicos são especialistas, apenas 37,7% são generalistas. Em Salvador, a proporção segue a mesma linha, mas, na Bahia como um todo, o equilíbrio é maior. São 57,1% de especialistas e 42,9% de generalistas.

Como fica o SUS?

Lorena defende que a especialidade é “atrativa para qualquer nível socioeconômico”. “Todo mundo quer um médico de família para chamar de seu, alguém que te acompanha, que conhece sua história de vida, que rememora aquele médico de família tradicional que atendia seu avô”, diz.

O presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Fabiano Guimarães, reconhece o movimento de expansão da especialidade no atendimento particular e alerta que, a depender das condições ofertadas aos médicos no atendimento público, pode haver uma migração significativa de profissionais.

A especialidade tem forte vínculo com o SUS por conta do programa Estratégia Saúde da Família (ESF), da Atenção Básica. É neste atendimento que 80% dos problemas de saúde são resolvidos e onde estão muitos médicos de família e comunidade.

“No Brasil, há essa confusão entre a especialidade e a estratégia do Governo, que tem médicos nos centros de saúde em equipes de saúde da família. Mas, na verdade, muitos deles não têm residência em Medicina de Família e Comunidade”, ressalta Fabiano Guimarães.

O número de especialista é aquém do ideal, segundo as associações. Um levantamento nacional feito em conjunto aponta que o Brasil tem 11 mil médicos da especialidade e precisa formar 50 mil profissionais da área para atender às demandas do SUS. Na Bahia, são 343 médicos de família e comunidade.

Não há exigência de que os médicos das equipes de Saúde da Família tenham a especialidade. “Para o médico de família, antes não havia vantagem em ocupar uma vaga que poderia ser ocupada por qualquer médico sem especialidade. Agora, isso tem mudado um pouco a partir de iniciativas do poder público”, opina Regina Daumas.

Como ressalta o diretor técnico-médico da Abramge, Cássio Ide Alves, ainda há um caminho a ser percorrido rumo à valorização financeira destes profissionais. “Enquanto a média de remuneração de especialistas focais é de R$17.800 a R$18.500, a de médicos generalistas, como clínicos e médicos de família, fica em R$11.500 a R$12.500”, compartilha.

Os ministérios da Educação e da Saúde lançaram, em 2009, o Programa Nacional de Apoio à Formação de Médicos Especialistas em Áreas Estratégicas (Pró-Residência), que prevê a ampliação da oferta de bolsas de residência médica em regiões e especialidades prioritárias para o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse é o caso da Medicina de Família e Comunidade.

Além da bolsa que todo residente recebe, no valor mínimo de R$ 4.106,09 mensais, há eventuais bolsas dos programas de incentivos à Medicina de Família e Comunidade concedidas pelas secretarias de saúde, que são somadas ao valor-base. Em Salvador, o valor de acréscimo é de R$ 6 mil.