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Fernanda Santana
Publicado em 16 de novembro de 2024 às 06:59
Um médico conhece a doença do paciente pelas queixas que ele escuta. Por mais de uma década, o dermatologista Marco Andrey Cipriani ouviu de pessoas com hanseníase, doença infecciosa que afeta nervos e pele, como era difícil conseguir um diagnóstico e ter o tratamento adequado. Em 2008, ele entendeu a essência do que diziam.
Ao retornar de um pós-doutorado na Holanda, o médico notou manchas brancas em uma das coxas, com dormência. “Isso é coisa da sua cabeça", afirmaram dois colegas médicos a Marco, desconfiado dos sintomas que poderiam indicar hanseníase. Os exames laboratoriais que o médico fez não permitiram uma conclusão. Mas, um mês depois, os sintomas continuaram.
Desacreditado dos exames clínicos e laboratoriais, Marco procurou a chefe na universidade onde trabalhava. Foi ela quem fechou o diagnóstico.
A notícia exigiu que Marco revisitasse os protocolos de tratamento conhecidos. Embora tenha iniciado a ingestão de doses mensais de antibióticos, quatro anos depois, Marco voltou a sentir sintomas da doença. Desde os anos 80, o mundo adota a referência da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o tratamento da hanseníase, baseado no uso de três antibióticos.
Já há registros de resistência da bactéria que provoca a hanseníase — a lepra — aos antibióticos. “Ser um ‘médico doente’ me deu mais energia para estudar novos tratamentos. Por isso", acrescenta o médico, “batalho por um novo tratamento que seja mais bactericida, que mate mais rápido o bacilo da hanseníase. Hoje, o esquema é efetivo, mas constituído de drogas essencialmente bacteriostáticas, que atacam a bactéria de forma mais lenta."
Na luta por um tratamento “mais efetivo nessa arte de matar o bicho", Marco também precisa espalhar a “palavra” de uma doença que, embora apareça na literatura há milênios, ainda é desconhecida e pode enganar exames laboratoriais. “O diagnóstico é essencialmente clínico. Muitos exames podem dar negativos, e ainda assim a pessoa ter hanseníase."
A rapidez do diagnóstico é, inclusive, fundamental para a cura integral da doença. “A hanseníase tem cura. Mas, quando a pessoa já tem uma incapacidade, não posso ser hipócrita. Eu vou matar o bacilo, mas as consequências continuarão lá."
A hanseníase é considerada um problema de saúde pública no Brasil, país com o segundo maior número de casos da doença registrados anualmente. Perde apenas para a Índia, de acordo com a OMS. Na Bahia, em 2023, foram notificados 1.545 casos novos da doença, que ainda é cercada de estigma.
“Muitos permanecem com uma visão bíblica da doença, não se atualizam", afirma Marco, sobre as imagens que permeiam o imaginário popular sobre a patologia antes chamada de “lepra", derivado do nome da bactéria que provoca a doença. “Avançamos e é um dever público nosso informar. Sou funcionário público, fazemos pesquisa com dinheiro público e precisamos retribuir isso", afirma o presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia.
Na entrevista abaixo, Marco compartilha as novas possibilidades de rastreio e diagnóstico da doença, por meio do uso de tecnologias como a Inteligência Artificial, e detalha quando você deve desconfiar de sintomas como formigamentos e dormências.
CORREIO: Como surgiu seu interesse por estudar hanseníase?
Marco Cipriani: Trabalhei com hanseníase desde a residência. Quando fui para a USP de Ribeirão, fui trabalhar com cicatrização. Mas minha chefe tinha toda uma trajetória em hanseníase. E eu fui me interessando. A princípio, achei que não tinha muito para descobrir sobre hanseníase. Vejo como estava errado.
Na volta de um pós doutorado, você recebeu o seu próprio diagnóstico. Como foi se ver também doente?
Quando cheguei do pós-doc em 2009, comecei a observar uma mancha na minha coxa. Vi durante o banho, e achei estranho. Testava sensibilidade e percebia que estava diminuindo. Na época, mostrei para dois amigos dermatologistas, e eles falaram que pensar em hanseníase ‘era coisa da minha cabeça’. Mas eu me perguntava: ‘o que causa uma lesão esbranquiçada como essa, com perda de sensibilidade, a não ser hanseníase?'. E eles não me davam outra hipótese.
Um mês depois, mostrei para minha chefe, Norma Foss, e ela disse que não tinha nenhuma hipótese a não ser hanseníase. Aí, comecei a entender a dificuldade dos pacientes para chegarem nos seus diagnósticos, e ver o quanto essa perda de sensibilidade não precisa ser completa para ser hanseníase. Fui diagnosticado porque tinha conhecimento da causa em profundidade.
Sempre insisto: não podemos esperar se tornar anestésico para fazer diagnóstico. Isso pode durar anos. Enquanto é só uma capinha de insensibilidade no nervo, você pode ter uma cura na hanseníase.
E o que o diagnóstico mudou no seu "fazer” médico?
Quando me vi doente, em 2010, tinha um protocolo que consistia em tratar lesão única com dose única de medicação. A lesão ate diminuiu bastante com esse tratamento que era preconizado, mas em 2014, me vi cheio de manchas novamente, o que me mostrou e me fez desacreditar desse esquema como efetivo.
Além das manchas, me vi perdendo sensibilidade nos pés, tendo tropeções. Então, não só a doença voltou, como ela voltou com sinalizadores mais graves. Isso me fez aprender na pele que aquilo que você tinha como crença que funcionaria, nem sempre funciona. Ali, o meu senso crítico para a pesquisas amplificou muitas vezes.
Sendo um ‘médico doente’, pude mostrar que apesar de esses protocolos terem eficiência, em 10, 20 anos, a doença pode voltar. Isso foi bastante frustrante, mas foi instigante, me deu mais energia para buscar e estudar novos tratamentos e pesquisas para estudar as respostas imunológicas.
Por que essa dificuldade toda com o diagnóstico?
Muitas vezes as biópsias são negativas quando a carga de bacilos (aqueles que provocam a hanseníase) é baixa. O diagnóstico da hanseníase está muito relacionado ao fazer médico com o maior capricho possivel. A pele é um palco para a bagunça que o bacilo faz. Se tem lesão de pele, eu digo que já cheguei tarde. Porque a doença nos nervos já está muito agressiva. E não podemos prometer cura, porque o nervo já foi destruído e não podemos regenerar.
Essa armadilha não podemos deixar continuar acontecendo. Quando chega alguém, no consultório, já com os nervos bem comprometidos, e me pergunta se os dedos vão voltar ao normal… Esse tipo de coisa faz a gente chorar, se emocionar. Porque eu posso matar o bacilo da hanseníase, mas não consigo fazer o seu dedo voltar a ter o movimento.
Isso eu não suporto. Não consigo ser hipócrita e dizer que a hanseníase tem cura nessa fase, e isso para mim é extremamente frustrante. As pessoas falam que o problema do Brasil é a subnotificação. Não. O problema é o subdiagnóstico. O médico não vê a perda de pelo como hanseníase, a dormência como hanseníase, a dor nos nervos como hanseníase. Esse é o grande problema.
O que poderia ser feito para um diagnóstico mais efetivo, visto que até você, que estuda o tema, teve dificuldade de obter um diagnóstico?
Hoje, nós, como Sociedade Brasileira de Hansenologia, buscamos e mostramos, em artigos, a importância de um diagnóstico feito com o teste DNA. Faz o raspado da pele para localizar o bacilo, mas põe na máquina para ver se tem o DNA do bacilo, caso ele não seja identificado. Isso é muito mais prático, mais sensível, e específico. A gente quer que esse exame seja distribuído no SUS.
E o melhor exame complementar da hanseníase é o ultrassom do nervo. Em 2015, quando comecei a trabalhar com ultrassom, redescobri a hanseníase. Vejo isso como uma grande chance de fazer o diagnóstico cada vez mais precoce.
Em indivíduos que moram com pacientes de hanseníase, se o médico faz ultrassom neles, já encontra sinalizadores em pessoas que não são diagnosticadas.
Existe algum conselho para que as próprias pessoas possam desconfiar do próprio diagnóstico, diante dessa situação de invisibilidade da doença?
Um exemplo: estou aqui com minhas pernas cruzadas, e elas estão formigando. Isso é normal. O que chama atenção para a hanseníase é bem marcante: as manifestações da hanseníase se tornam mais comuns à noite.
É aquela pessoa que acorda de madrugada porque está sentindo dois dedinhos do pé esquerdo com formigamento. Esse capricho de serem dois dedinhos dentro de um pé chama atenção por ser uma neuropatia bem localizada.
Falo que as pessoas na hanseníase desenham as suas dores. O paciente que acorda à noite com câimbra no dedão. Mas ele estava dormindo... É diferente da diabetes, por exemplo, que você vai sentir a dor do lado esquerdo e direito igualmente.
É começar por aí. Não precisa esperar somente uma lesão de pele. As pessoas têm que aprender a se tocar, a se sentir.
Existe alguma formar efetiva de prevenir a hanseníase?
A única forma de prevenir a hanseníase é tratar a pessoa doente. Porque aí ela vai deixar de transmitir. Se você usa um tratamento mais bactericida, isso faz com que a comunidade fique protegida mais rapidamente.
O atual esquema é efetivo, mas é constituído de drogas essencialmente bacteriostáticas, que combatem a bactéria de forma mais lenta. Por isso, hoje batalho por um novo tratamento para hanseníase, que seja mais bactericida, que mate mais rápido o bacilo da hanseníase. Minha luta hoje é tentar padronizar um tratamento que seja mais efetivo nessa arte de matar o bicho.
Por que o Brasil continua com taxas tão altas dessa doença, e insistindo em um tratamento que já encontra resistência?
A gente nem pode caracterizar esse atraso como sendo do Brasil. Esse é um atraso do mundo. O Brasil segue a orientação da OMS, mas eu falo que hoje o Brasil tem condições de fazer mais. O mundo usa um mesmo tratamento há 40 anos. 40 anos com tratamento com um mesmo antibiótico? A bactéria cria resistência, nós temos casos assim.
Vocês já entenderam completamente o ciclo da hanseníase até o aparecimento de sintomas?
Em relação a transmissão, temos que se dá por vias aéreas superiores (nariz). Ele entra por lá e se espalha pela corrente sanguínea, e vai procurar um “nervinho” para viver.
Se eu for um doente que não se tratou, os bacilos estarão sendo transmitidos assim. Mas como a multiplicação do bacilo é lenta - ele leva de 17 a 18 dias -, o bacilo vai entrar no nervo e demorar muito tempo para trazer sinais de doença. Esse tempo pode demorar cinco, dez anos.
A transmissão acontece por meio do convívio com pessoas doentes, principalmente em cômodos pequenos, por isso há um índice mais elevado de casos em regiões mais pobres, onde costuma haver mais aglomeração. Mas não estamos falando de uma transmissão aguda, como uma covid, uma gripe, que você entrou em contato hoje, amanhã tem uma febrezinha. A hanseníase é uma doença extremamente crônica.
O que o estigma em relação à hanseníase impede que tenhamos mais informações sobre ela?
A falta de conhecimento na hanseníase é enorme. Há poucas mídias sobre , você não vê propagandas sobre hanseníase, e o que se vê muitas vezes é sobre lesão de pele, sem falar de sintomas, como câimbra e formigamento, falta de sensibilidade.
Também estou brigando dentro da academia para que essa linguagem sobre hanseníase seja ouvida de forma mais palatável pela população. Como levar essas novidades que pesquisamos para o público? A gente publica geralmente em inglês, para o mundo, mas será que aquele paciente, que está fora do muro da universidade, está sabendo? É um dever público nosso informar. Sou funcionário público, fazemos pesquisa com dinheiro público e precisamos retribuir isso.
A informação tem um potencial enorme de mudar a vida das pessoas. Mesmo dentro da minha universidade, muitos pesquisadores falam: essa doença ainda existe? As pessoas não entendem. Precisamos aumentar nosso número de soldados, porque a doença é complexa.
O que o estigma favorece essa situação?
O preconceito existe porque não há um conceito. Se você não tem conhecimento, a imagem será do desconhecido. Ninguém tem empatia com ET. Se eu não conheço, é difícil.
Nós temos histórias bíblicas que são irreais, não digo nem tenebrosas. “Lepra” significava mancha. Naquela época, que nem se tinha médico, quem discutia quem era leproso ou não era o sacerdote. Já se sabia que havia alguma transmissão, mas não se tinha descoberto doenças infecciosas. As pessoas eram colocadas em calabouços para viver à própria sorte.
Aquilo era como se fosse um pecado, você tinha que pagar esse pecado, e essa questão bíblica foi se mantendo. Para muitos, não saber conceito, é interessante, porque ela vive e manipula outros através do preconceito. Entretanto, as pessoas não se atualizam na bíblia.
É bom lembrar que o Brasil adotou a lei de exclusão de pessoas com hanseníase até 1968. Mas nós temos relatos de exclusão até os anos 90.
E com certeza o principal caminho para que evitem o estigma é diagnosticar cedo, porque eu não evoluo para uma garra, pé caído, não evoluo a situações que realmente vão estigmatizar pessoas pelo diagnóstico. Tudo isso gira em torno do conceito. Adotamos, inclusive, o termo “hanseníase” ao invés de “lepra", no Brasil, com intuito de diminuir esse estigma.
Em que momento houve um lapso nos diagnósticos?
A OMS traçou uma meta de, até os anos 2000, alcançar a taxa de um paciente em tratamento para 10 mil habitantes. Quando isso fosse alcançado, o pais seria visto como não endêmico, como se o problema de hanseníase não fosse mais de saúde pública. O mundo alcançou isso nos anos 2000. Depois disso, as políticas de busca ativa de casos praticamente foram a zero.
Você tem um trabalho forte de busca ativa de casos nas periferias. O que identifica nesses ambientes?
Vou às periferias para fazer busca ativa e levar o profissional médico para uma realidade da qual ele também está longe. A falta da visita a ex-pacientes, a comunidades, impactou muito para o crescimento no número de casos.
Esse foi um grande problema para os números de casos estarem agora subindo: há profissionais de saúde sendo formados sem um expertise em hanseníase, sem pensar em hanseníase.
As escolas passaram também a não investir em hanseníase. Porque gastar grade para ensinar hanseníase se a OMS diz que foi controlada?
Quando o município diz que não é endêmico para a hanseníase, a pergunta é: o que você tem feito para fazer uma busca ativa? Se você não procura, você não acha. E se você não sabe o que vai procurar, você também não vai encontrar.
Como o uso de inteligência artificial pode ser empregado para auxiliar nos diagnósticos?
Criamos um questionário em que focamos nos sintomas neurológicos mais precoces de hanseníase além dos sinais de pele. O que fazemos: vamos aplicar esse questionário em uma comunidade inteira. Geralmente, 30% vem com algum dos sinais de hanseníase marcados. Mas 30% de 10 mil pessoas corresponde a 3000 pessoas por exemplo, é muita gente, e precisamos avaliar clinicamente cada um deles, o que é muito trabalhoso.
Nesse questionário de hanseníase, vimos que entre as 14 questões colocadas, há questões mais frequentes e importantes para hanseníase, como dormência, formigamentos e dores nos nervos, alem dos sinais de pele. Vimos também que essas questões quando associadas tornavam-se mais indicativas do diagnóstico de hanseníase dentre os pacientes diagnosticados.
A inteligência artificial permite, então, que a gente separe os indivíduos com associações de respostas ditas mais importantes e que aumentam a possibilidade do diagnóstico ser encontrado. Colocamos esses questionários com as respostas marcadas na IA e nesses 30%, por exemplo, ela separa em segundos uma lista de indivíduos dito positivos e que devem ser priorizados para avaliação clinica neurodermatológica!
A partir do que a IA me entregar, posso avaliar só metade dos casos, porque a tecnologia está conseguindo selecionar os questionários mais prováveis de serem diagnosticados com hanseníase.
A inteligência artificial alcança quase o mesmo porcentual do número de diagnósticos dados por especialistas manualmente a partir dos questionários, o que mostra sua eficiência. Avaliaremos um número menor de indivíduos prováveis ao diagnóstico, mantendo o percentual de diagnósticos praticamente igual à quando avaliamos todos os indivíduos aleatoriamente, ou seja, aumentamos o número de diagnósticos com a IA que torna nossas ações de busca ativa em hanseníase mais eficientes.