Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Carolina Cerqueira
Publicado em 8 de junho de 2024 às 05:00
Maria das Graças Amorim, 67, e Clívio Souza, 71, são casados há 34 anos. Eles dividem o mesmo teto, mas com um detalhe: não o mesmo quarto. Quando chega a hora de dormir, é cada um no seu próprio canto. Essa foi a solução que eles encontraram para os conflitos noturnos e acabaram adorando os benefícios de ter em casa um espaço para chamar de seu.
A decisão tem apoio de psicólogos e sexólogos, que dizem que a individualidade dentro da relação e até mesmo a saudade do parceiro podem ser o segredo para relacionamentos longos e saudáveis.
“Eu sentia que não tinha o meu espaço e, constantemente, a logística ficava complicada. Ele queria ver uma coisa na TV e eu queria outra, ele queria dormir num horário e eu queria em outro, ele acordava cedo e me acordava fazendo barulho”, lembra Maria das Graças.
Quando o filho mais novo do casal foi morar fora, ela não perdeu a oportunidade: organizou a mudança e ocupou o quarto vazio com uma cama nova, roupas e demais pertences.
Mas não se deve confundir as coisas, os quartos não são zonas proibidas para os parceiros. Quando querem estar juntos, basta uma visitinha ao cômodo ao lado. Já para Suely Lima, 60, e Clarivaldo Soussa, 59, a distância é maior.
Com um relacionamento de 27 anos, há 24 eles moram em apartamentos separados. Até tentaram estreitar a convivência, mas descobriram que funcionam muito melhor sem muito grude.
“A gente se ama, mas não debaixo do mesmo teto”, diz Suely. Depois de dois anos dividindo o mesmo espaço, eles chegaram até a terminar. Mas o término durou só um mês; não conseguiram abrir mão um do outro.
Foi aí que, depois de uma terapia de casal, decidiram testar o novo modelo. “Sempre estamos juntos aos sábados e domingos e, de vez em quando, também em algum dia de semana”, explica ela.
“Eu amo a nova dinâmica, sempre digo para todo mundo que é a melhor coisa porque você não precisa ficar olhando para a cara da pessoa, ali grudada, o tempo todo. Bate até uma saudade boa”, diz Suely, rindo.
“Eu vivo a minha vida e ele vive a dele, cada um sai para o canto que quer. Tem gente que diz que não ia conseguir viver assim porque não teria controle sobre o que o parceiro está fazendo, mas a gente tem confiança um no outro e a verdade é que quem quer trair dá um jeito, não tem controle certo”, acrescenta.
Individualidade
A psicoterapeuta Flôr Costa defende que cada casal deve encontrar a dinâmica que funciona para si, mas afirma que, para muitos, um pouco de afastamento, seja em quartos ou apartamentos separados, “pode ser não apenas benéfico, mas até mesmo a resolução ideal para a relação durar”.
Ela ressalta a importância da individualidade nas relações. “Algum nível de distância faz com que o casal não caia na mesmice, que mantenha a chama da novidade. Isso pode vir através de cada um no próprio canto, tendo o próprio banheiro, saindo com os próprios amigos com frequência, viajando sozinho ou até mesmo tendo um hobby que seja executado individualmente”, destaca Flôr Costa.
Ela não esconde que o risco de desconexão existe, já que não há uma cartilha com o que é certo e o que é errado; o importante é experimentar, ultrapassando as barreiras do julgamento alheio, e sempre manter o diálogo com o parceiro.
Para os atores Mauro Mendonça, 92, e Rosamaria Murtinho, 91, dá certo. Quando completaram 60 anos de casados, em 2019, eles revelaram em uma entrevista à revista Quem que dormiam em quartos separados.
"É mais saudável porque eu reclamava muito de ela se deitar à vontade com aquele cotovelo, aquele joelho em cima de mim. Ela é mais espaçosa!", disse o ator. “Estudo minhas peças à noite, decoro texto falando alto, então, não chateio ele e ele não me chateia", concordou ela.
Tendência
As novas configurações têm sido percebidas pelo mercado de arquitetura e decoração. O arquiteto Pedro Chezzi, que atende Salvador e São Paulo, lembra que atendeu um caso em que um casal de clientes estava de mudança e cada um iria para um apartamento quarto e sala, no mesmo prédio.
Ele diz que os hábitos refletem a modelação da arquitetura dos ambientes e, entre os pedidos recebidos no escritório Chezzi Arquitetos, a individualidade está em alta. “Quase todos os clientes querem ao menos banheiros separados porque a mulher passa muito tempo fazendo a maquiagem, o homem não abaixa a tampa do vaso e a bancada da pia fica uma bagunça”, afirma.
“Mas também recebemos demandas de quartos separados, seja para dormir porque um ronca ou fica no celular até tarde, ou para um momento de descanso e lazer. Agora mesmo estamos fazendo um apartamento que terá um quarto de videogame para ele e um quarto de leitura para ela”, completa.
Grande parte dos casais atendidos são jovens. As novas modalidades, apesar de muito adotadas por casais que estão há muito tempo juntos ou que não estão no primeiro casamento, também está conquistando os mais novos.
O movimento coloca em dúvida o ditado de que “quem casa quer casa” e quebra a progressão padrão do relacionamento: conhecer alguém, se apaixonar, casar e ter filhos.
Mauro Sousa, de 37 anos e Rafael Piccin, de 38, têm união estável firmada desde 2012, se apresentam como casados nas redes sociais, mas moram em apartamentos diferentes. Os dois trabalham juntos durante a semana e passam o tempo enquanto casal na casa de Mauro aos sábados e domingos.
Mauro, que é filho do escritor Maurício de Sousa, conta que sempre quis morar sozinho, e Rafael, que queria morar junto no começo, hoje pensa igual ao marido.
“Escolhemos viver assim porque valorizamos a individualidade de cada um que, se morássemos juntos, acreditamos que poderia se perder ao longo do tempo. Existe um discurso muito comum de que estar sozinho é ruim, inclusive em um relacionamento, mas não acreditamos nisso”, diz Mauro.
O casal diz ainda que grande parte dos amigos e familiares veem a relação com admiração, mas uma parte dos seguidores tem dificuldade de aceitar por “julgar o formato como improcedente por fugir do padrão”.
A psicóloga Liliane Senra, de 28 anos, também tem amigas que acham “esquisita” a sua forma de pensar, mesmo que ela queira ter somente quartos separados quando se casar, nem precisa ser cada um em seu apartamento.
No último relacionamento que teve, a diferença entre as rotinas de cada um em um mesmo quarto foi um fator crucial para atrapalhar a dinâmica. Ela gosta de dormir às 21h e estar acordada às cinco para meditar e ir à academia.
“Ele não tinha esses mesmos horários e nem tinha a obrigação de se adequar a eles. Cada um tem que manter a sua individualidade e eu acho que ter quartos separados ajuda muito”, coloca Liliane.
“Imagina você brigar com a pessoa e não poder ter espaço, ter que dormir junto, não dá. Eu acho que cada um tem que ter a sua própria vida e uma outra que se constrói junto. Mas não precisa ficar grudado o tempo todo, eu prefiro muito mais um tempo de qualidade”, completa.
Presente x passado
A ideia de um casal morar em apartamentos separados pode até ser novidade, mas o sono em camas ou quartos separados é antiga. Como conta a historiadora Mary Del Priore, as camas de casal não existiam no Brasil Colônia. “Eram catres muito singelos onde dormia uma pessoa só ou então redes e esteiras”, diz.
A cama de casal chega ao Brasil por volta de 1840 com a importação de móveis estrangeiros, quando o país começa a enriquecer graças ao café. “As casas ganham tamanhos maiores e mais cômodos, então fica estabelecido um quarto específico para o casal. Isso, claro, ainda para a elite. Somente no início do século XX a modalidade se populariza”, conta.
Mesmo assim, para os casais mais abastados, por muito tempo o mais ‘chique’ era que cada um tivesse sua própria cama, ainda que no mesmo cômodo. “Por volta de 1930, uma das exigências do enxoval da noiva era que houvesse uma roupa de cama de uma cor para a mulher e de outra para o marido”, completa a historiadora.
Vida sexual
A sexóloga Magali Tourinho aponta que os benefícios que a volta da tendência entre os casais pode trazer, além da individualidade, também passam pela vida sexual.
“Seja entre os mais velhos ou mais novos, a ideia central é a importância de ter um tempo consigo mesmo, de valorizar sua liberdade. E a interação e até o sexo deixam de ser obrigação e algo corriqueiro, passam a acontecer somente quando os dois realmente estão com aquela vontade, então você valoriza o tesão”, analisa.
“Sem contar que, com noites de sono de qualidade não interrompidas por roncos, a disposição e até o bom-humor podem ser favorecidos e, consequentemente, beneficiarem a vida sexual do casal”, completa.
Mas Magali ressalta que a nova dinâmica não deve ser usada como uma forma de resolver os problemas da relação e alerta para os ricos de não conviver debaixo do mesmo teto.
“Quando se vive no mesmo espaço, a comunicação e o diálogo se fazem urgentes. Os casais que moram separados precisam estar alertas para não passarem por cima dos problemas e abandonarem a comunicação”, finaliza a especialista.
Divórcio do sono
Como ressaltou Magali, a qualidade do sono também pode ser um dos benefícios da escolha de dormir em ambientes separados. O ronco do marido, Clívio, também foi um dos motivos apontados por Maria das Graças, que aparece no início da reportagem, na tomada de decisão de se mudar para o quarto ao lado.
“Era complicado conseguir ter uma boa noite de sono com aquele barulho”, lembra.
De acordo com um estudo de 2023 da Academia Americana de Medicina do Sono (AASM), mais de um terço dos entrevistados nos Estados Unidos disseram dormir ocasionalmente ou regularmente em quartos separados de seus parceiros para melhorar a qualidade do sono.
A tendência se acentua entre os “millennials” (geração dos que nasceram entre 1980 e 1995) e o fenômeno é chamado de “divórcio do sono”.
Segundo a psicóloga da Associação Brasileira do Sono Seção Bahia (ABS Bahia) Amanda Macedo, o ronco pode ter impactos significativos na saúde mental de quem o escuta constantemente.
“Qualquer alteração no ritmo ou funcionamento do indivíduo, que são regulados pelo sono, pode alterar os mecanismos de respostas emocionais e comportamentais, gerando sofrimento psíquico, desajustamento, angústia e até doenças psiquiátricas”, alerta.
A neuropediatra especialista em distúrbios do sono Fernanda Dubourg acrescenta que o barulho do ronco aumenta os despertares de quem está ao lado, fragmentando o sono. O cenário pode causar alterações de humor e até comprometer a saúde do corpo, já que o sono contribui para fortalecer o sistema imunológico e regular o metabolismo, por exemplo.
“As alterações de humor são as primeiras a aparecer, como irritabilidade, choro fácil, impulsividade e até agressividade. O sono permite-nos, entre outras coisas, consolidar as nossas memórias, melhorar a nossa aprendizagem, desenvolver as nossas capacidades de dedução e criatividade, mas também é muito importante para regular emoções, especialmente as negativas”, explica a especialista.
“Além disso, a má qualidade do sono está associada a um risco aumentado de doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais, transtornos mentais como depressão e ansiedade, obesidade e tantos outros problemas de saúde”, acrescenta Fernanda.
A psicóloga Amanda Macedo conclui que, nos casos de incompatibilidade de hábitos e comportamentos involuntários noturnos, dormir separado “é, sim, uma decisão assertiva para a saúde mental e o equilíbrio do casal”, mas alerta que, para adotar novos modelos, o casal “precisa estar em sintonia e adotar também estratégias para não perder a conexão, o amor e a intimidade”.
Maria das Graças e Clívio consideram que acertaram na decisão e a nova dinâmica tem agradado. Fazem refeições juntos durante o dia, conversam e dividem momentos de lazer; depois, cada um no seu quarto, conseguem ter uma boa noite de sono e manter o bom humor e disposição para o dia seguinte. “Desse jeito, ninguém incomoda ninguém. Está ótimo assim”, celebra ela.