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Lorena Pinheiro foi aprovada em concurso para otorrinolaringologia, mas juíza determinou que Ufba indique uma nova vaga
Thais Borges
Publicado em 23 de outubro de 2024 às 16:00
Impedida de assumir uma vaga após ser aprovada em um concurso para a Universidade Federal da Bahia (Ufba), a médica otorrinolaringologista Lorena Pinheiro obteve a primeira decisão favorável da Justiça federal. Em agosto, ela descobriu que havia perdido a vaga após uma decisão da 1ª Vara revogar a portaria que a Ufba publicou homologando o resultado do concurso.
Cotista, Lorena ficou em primeiro lugar após a última fase - a de heteroidentificação -, mas teve o resultado questionado pela candidata aprovada na ampla concorrência, em uma ação contra ações afirmativas. Agora, a mesma juíza que tinha negado o resultado originalmente, a magistrada Arali Maciel Duarte, titular da jurisdição, concedeu uma liminar para que a Ufba nomeie Lorena para o cargo de professor do magistério superior, na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB).
“Qual vai ser o futuro da aplicação da Lei de Cotas nos concursos de docentes? Tem uma insegurança jurídica que é quando a candidata da ampla concorrência fica com a minha vaga. A injustiça continua lá, as diferenças estruturais que atrapalham a chegada da pessoa negra a esses espaços continuam lá. Essa decisão liminar não corrige a injustiça”, disse Lorena, em entrevista ao CORREIO, nesta quarta-feira (23).
A decisão foi originalmente publicada no dia 4 de outubro deste mês. A Ufba teve cinco dias para cumpri-la, após tomar conhecimento, mas isso não aconteceu. Assim, na última terça-feira (22), a magistrada emitiu um novo despacho para que a decisão seja cumprida no prazo de dois dias, sob pena de fixação de multa diária.
Além disso, a sentença vem na mesma semana em que o Ministério Público Federal (MPF) emitiu um parecer favorável a Lorena no processo sobre o edital. No texto, o procurador da República Fábio Conrado Loula relembra o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que não deve existir fracionamento de vagas de acordo com a especialização em concursos do magistério superior. O manifesto do procurador é para que Lorena seja nomeada em uma das vagas comprovadamente desocupadas da FMB.
Na avaliação da médica, trata-se de uma vitória parcial. Ela explica que é uma comemoração no sentido de entender que a vaga é sua e que a reivindicação não é vazia. "É uma primeira decisão favorável ao meu direito de ter acesso à Lei de Cotas. No edital que eu participei, todos os outros cotistas negros foram convocados, menos eu, que fui interpelada. É a primeira vitória, mas não resolve, porque fui aprovada para a vaga de otorrinolaringologista", enfatiza.
Justiça
Para Lorena, a sentença foi uma surpresa. "A mesma juíza teve decisões contraditórias. Ela anula itens relativos à aplicação da Lei de Cotas no concurso. Faz isso numa noite, na manhã seguinte, ela obriga a Ufba a me nomear numa das vagas ociosas", explica. Ela se refere a uma decisão da mesma magistrada do dia 3 de outubro em que nega o recurso contra a decisão que revogou a vaga de Lorena.
Em agosto, quando Lorena soube que existia um processo correndo desde maio para garantir a nomeação da candidata da ampla concorrência, houve duas medidas jurídicas. Uma foi recorrer da decisão que revogou sua nomeação e a outra foi para que ela fosse nomeada e tomasse posse em uma das vagas comprovadamente desocupadas na Ufba.
"A gente percebeu que existiam alguns casos passados dentro da Ufba que não estavam sendo resolvidos, porque a justiça é lenta, a tramitação é no segundo grau e passavam até dois anos. Isso me fez defender e cobrar minha vaga, para que se cumpra aquilo que ela previu no edital", explica.
O advogado que representa a médica, Felipe Jacques, explicou que, quando ela teve a vaga revogada, identificaram que existia um precedente ruim no segundo grau, referente a decisões desse tipo. Ele se referia ao caso do farmacêutico Felipe Hugo Fernandes, cotista aprovado em um concurso para a área de Farmacologia, no Instituto de Ciências da Saúde da Ufba. Em 2021, contudo, perdeu a vaga depois que a candidata aprovada na ampla concorrência entrou na Justiça, antes mesmo da nomeação dele, para assumir a vaga.
O caso dele foi revelado pelo CORREIO em setembro. Na ocasião, uma reportagem do jornal mostrou que existem pelo menos sete casos de candidatos de ampla concorrência que usaram a Justiça para impedir a nomeação de candidatos negros cotistas, todos aprovados em primeiro lugar após a heteroidentificação.
Desses, quatro estão na própria Ufba - além de Lorena e Felipe, houve processos na Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia e na Escola de Belas Artes. Outros três são nas Universidades Federais de Sergipe (UFS), de Uberlândia (UFU) e Fluminense (UFF).
Hoje, o caso de Felipe está no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Somando tudo, já são dois anos e meio sem resposta. Sem poder assumir a vaga na Ufba, Felipe Hugo foi aprovado em um concurso para a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), também em Farmacologia, para o curso de Medicina, e tomou posse no mês passado.
"Nós entendemos que não era interessante aguardar de forma indefinida por uma decisão judicial ou por um posicionamento da universidade e que seria interessante adotar uma estratégia com base no entendimento do STF", afirma.
Em 2017, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41/DF, indicou que, em concursos com baixo número de vagas, não se deve usar o critério da especialidade. Citando especificamente os processos para o magistério superior, Barroso indica que devem ser adotadas medidas alternativas para ampliar a representação racial, a exemplo da aglutinação de vagas. Essa é, inclusive, a norma que fundamenta os concursos da Ufba desde 2018.
"Nesse momento, a gente vive uma crise na questão das cotas, muito depois do STF já ter decidido sobre a constitucionalidade tanto nas universidades quanto nos concursos", acrescenta Jacques.
Na sentença que determina que Lorena ocupe uma vaga desocupada, a juíza afirma que "ela foi aprovada dentro do número de vagas previstas no edital e ocorreu a 'preterição na nomeação por não observância da ordem de classificação', ainda que em cumprimento à decisão judicial".
Para o advogado Felipe Jacques, o texto é uma indicação de que a decisão é contraditória. "Ela mesma (a juíza) gerou a razão para a nomeação de Lorena agora, o que é completamente estapafúrdio. Não há lógica na decisão judicial".
Na sentença, a juíza diz que a Ufba deve alocar Lorena em uma das vagas da FMB, mas não especifica que vaga seria essa. "É como se ela colocasse o problema para a Ufba. Porque eu posso ficar numa área em que teria que me preparar do zero para assumir. Estaria no limbo da universidade, sendo que a vaga que tenho direito é a de otorrinolaringologia", opina Lorena.
O concurso
Negra e doutora em Ciências da Saúde pela própria Ufba, Lorena concorreu como cotista no concurso nº 1/2023, que teve 30 vagas para docente em diferentes unidades da instituição. O edital informava que seis vagas seriam reservadas a candidatos negros e a duas a pessoas com deficiência, seguindo o percentual mínimo determinado pela Lei de Cotas, de 20% e 5%, respectivamente. Desde 2018, as cotas são aplicadas à totalidade das vagas disponibilizadas nos editais para professores da Ufba.
Na prova escrita, que aconteceu no dia 20 de dezembro do ano passado e foi a única etapa totalmente às cegas, Lorena teve a nota mais alta. A avaliação pedia que todos os participantes discorressem sobre um tema definido por sorteio - no caso dela, paralisia facial periférica. Em seguida, vieram as etapas subjetivas. Na apresentação do memorial, por exemplo, para dois professores, teve nota por volta de 8,5 enquanto o terceiro membro da banca deu 7,0.
O resultado preliminar das três fases iniciais saiu no dia 22 de dezembro e Lorena ficou em quarto lugar. Ainda restava, contudo, a banca de heteroidentificação, que só pode ser feita quando a greve de professores da Ufba chegou ao fim, em junho deste ano. Antes mesmo da banca, Lorena ainda não sabia, mas a candidata que havia ficado em primeiro lugar na ampla concorrência já questionava a Ufba quanto à sua nomeação.
Em 8 de maio, três meses antes do resultado final do concurso, a candidata e também médica otorrinolaringologista Carolina Cincurá Barreto impetrou o mandado de segurança com tutela de urgência requerendo três coisas: sua convocação e nomeação, a nulidade do edital para impedir qualquer reclassificação e uma indenização, em caso de nomeação tardia.
No dia 13 de junho, a mesma juíza federal Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara, concedeu a liminar e determinou não apenas a nomeação de Carolina para a vaga como também que a Ufba não convocasse, nem nomeasse candidatos cotistas para a posição.
Próximos passos
A ideia de Lorena e de sua assessoria jurídica é de continuar com o processo inicial, que é um recurso para reverter a revogação de sua nomeação. O caso deve ser analisado agora pelo TRF-1.
"Minha bandeira é de lutar pelo coletivo para que não haja mais casos como esse, para que não tenha essa porta aberta para aventureiros jurídicos se insurgirem contra a lei de cotas", reforça a otorrinolaringologista.
Primeira médica de sua família, Lorena se formou em Medicina pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e fez residência em otorrinolaringologia na Santa Casa da Bahia.
Em seguida, veio a especialização em doenças de boca na Universidade de São Paulo (USP). O mestrado e o doutorado foram na Ufba. No doutorado, em que estudou a perda de olfato pós-covid, Lorena ofereceu um tratamento a 128 pessoas no ambulatório do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes).
"A gente está nos primeiros passos dessa reparação histórica de 500 anos. Se essa reparação não for respeitada, o futuro dessa política afirmativa (as cotas) está em risco. Não acaba por aí, porque a gente está falando de passado, presente e futuro para garantir que outras pessoas não passem pelo que estou passando".
Procurada pelo CORREIO, a Ufba informou que ainda não tem conhecimento da decisão da juíza.