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Roberto Midlej
Publicado em 8 de fevereiro de 2025 às 05:00
Depois de mais de 30 anos de experiência no mercado de antiguidades, Itamar Musse talvez já não tivesse mais motivos para se surpreender com nada referente a sua área. Um dia, recebeu de um colega a proposta para adquirir um lote de joias que haviam pertencido a ex-escravizadas e que estavam na posse de herdeiros. Itamar não hesitou e logo demonstrou interesse. Fechou negócio, mas a surpresa ainda estava por vir. >
Anos depois, recebeu do artista plástico Emanoel Araújo (1940-2022) um cartão postal em que uma mulher negra aparecia repleta de joias. Itamar bateu o olho na pulseira que a senhora usava e percebeu que o adereço fazia parte daquele lote que havia adquirido. >
“Uma senhora negra aparecia, plena de joias nos braços, nos dedos, em torno do pescoço - e que mesmo lhe cobriam até a cintura. Bastou um único olhar para que eu identificasse a pulseira que havia escolhido para ilustrar a capa do livro. E minha surpresa só fez aumentar à medida que fui reconhecendo, em seguida, todas as demais joias que compunham a fotografia”, relata Itamar, em texto que abre o livro Florindas, que se aprofunda sobre as condições em que viviam as mulheres negras na Bahia.>
Aquela foto, claro, acabou indo para a capa do livro que saiu em volume duplo e apresenta ao leitor as joias do acervo de Itamar. Mas, o colecionador achou que não bastava aquela publicação em dois volumes e decidiu dar ao público uma oportunidade de ver pessoalmente as peças. Daí, nasceu a exposição Dona Fulô e Outras Joias Negras, que está em cartaz no Museu de Arte Contemporânea de Salvador desde novembro do ano passado e, diante da alta visitação - mais de 37 mil pessoas já visitaram -, foi prorrogada até 30 de março.>
A exposição é dividida em três núcleos. O primeiro se chama As Histórias de Florindas, em que o visitante vai conhecer o Brasil dos séculos XVIII e XIX, em especial a Bahia dos tempos de Colônia e Império. Há ainda fotografias de mulheres negras com suas joias e vestimentas, incluindo a imagem de Dona Fulô, como Florinda era chamada. Há ainda fotos feitas por Pierre Verger e Adenor Gondim, além de um poema criado por Gilberto Gil para o livro Florindas. “Flores Negras/ Flores lindas/ Entre tantas outras vindas do suplício/ Trajadas com os trajes esfarrapados dos ancestrais ultrajados”, escreve Gil.>
Na segunda parte, As Raras Florindas, estão as joias da coleção de Itamar Musse, apresentadas em contato com os tecidos e as fotos das mulheres paramentadas. A terceira parte, As Armas Florindas, tem obras de artistas negros contemporâneos, como Bauer Sá, Chris Tigra e Charlene Bicalho, incluindo fotografias, instalações e pinturas.>
Dona Florinda>
Mas, afinal, quem era a tal Fulô, que dá nome à exposição e causou tamanha surpresa a Itamar? E por que ela ganhou tanto destaque na mostra? Marília Panitz, uma das curadoras e pós-graduada em teoria e história da arte, diz que a primeira razão, naturalmente, é o fato de Itamar ter percebido que boa parte das joias de seu acervo estava naquela foto e estariam na exposição.>
Marília Panitz
curadoraHá ainda uma outra razão, que pode parecer banal: aquela mulher era identificada, ao contrário do que acontecia com outras mulheres negras que apareciam em postais como aquele. “Em alguns casos, aparecia apenas uma identificação como ‘negra da Bahia’ ou ‘mulher negra forra [que havia recebido alforria]. Os nomes são inacreditáveis!”, diz Marília, indignada. >
O nome dela era Florinda Anna do Nascimento, daí o apelido Dona Fulô. E há ainda algo mais surpreendente: aquela mulher, uma ex-escravizada, era mesmo dona de todas aquelas joias que o público vê na exposição.>
Marília Panitz
CuradoraSegundo Marília, Florinda - como outras mulheres negras da época - encomendava suas peças a ourives que atuavam fora do mercado legal, como contraventores. “Eles eram negros ou pardos e tinham sido aprendizes de ourives portugueses”, revela a curadora.>
Proibição>
Na primeira parte da exposição, há algo chocante: uma carta do rei de Portugal, Dom Pedro II, O Pacífico, ao então governador do Estado do Brasil proibindo que as escravas usassem joias. E não parava aí: aquelas mulheres estavam impedidas pelo rei também de usar vestidos de seda, cambraias ou holandas. Quanto aos metais, era proibido o uso de prata ou ouro. O documento é datado de 20 de fevereiro de 1696.>
“Aquela carta tinha força de lei, porque no século XVII o Brasil ainda era colônia. Aquelas mulheres então passaram a se vestir com tecidos de algodão e estopa. Depois, elas foram para as ruas e passaram a adotar coisas que dessem distinção a elas, como o pano da costa, o camisu [peça usada por adeptos de religiões de matriz africana] e o turbante, que vem do islamismo”, diz Marilia.>
Mostra tem seção com obras de 22 artistas brasileiros atuais>
Além das joias de Florinda, o visitante da exposição no MAC vai poder conhecer a produção de 22 artistas contemporâneos negros brasileiros de diversos estados, como Antonio Obá (DF), Dalton Paula (GO), Eustáquio Neves (PB), Josafá Neves (DF), Tiago Sant’Ana (BA) e Val de Souza (SP).>
Uma das obras que mais chama a atenção é Mansinhas - Mulheres com Fogo nos Olhos, da mineira Chris Tigra: em fotos de quase três metros de altura, mulheres negras derramam lágrimas de sangue representadas por uma corda vermelha que “escorre” dos olhos delas.>
Aquelas mulheres são mucamas do século XIX que não têm seus nomes registrados. “Aproprio-me dessas imagens encontradas em acervos públicos criando um grupo e a partir disso proponho o deslocamento através de diferentes símbolos”, afirma Chris.>
Um dos símbolos que aparece nas mãos das mulheres é um facão. “A simbologia da grande faca representa tanto uma ferramenta de trabalho quanto o instrumento que abre caminho nas matas, o cortante com lâmina metálica de grandes dimensões é também a representação de resistência e de luta”, revela a artista.>
“Esta instalação, que metaforicamete escorre pelo ambiente do espaço expositivo, busca também vestir de bordados as mulheres negras as quais, segundo decreto do século XIX, eram proibidas de usar as rendas que elas mesmas produziam”, revela um texto ao lado da obra.>
“Quando a gente pensa em Florinda, a gente primeiro pensa na forma de acomodação, de armazenamento e de guarda de tudo que era conseguido através de um trabalho como ganhadeira, lavadeira ou produtora de alimentos. Isso é transformado em ouro e esse ouro era guardado sobre o corpo na forma de colares”, diz Eneida Sanches, uma das curadoras responsáveis por essa seção da mostra.>
Segundo Eneida, o espírito de liderança de Florinda também inspira as obras: “A gente pensa na Florinda como espaço de espiritualidade e de liderança. Então, a líder espiritual que conduz e que consegue atravessar as grandes dificuldades dando suporte aos que estão a seu redor”.>
Com base nessas ideias, os artistas foram selecionados, segundo a curadora: “Então, claro que nos importa artistas que estejam produzindo e que apontam nessa direção de força, de feminilidade, de corpo, de ativismo e de religiosidade”.>
Dona Fulô e Outras Joias Negras>
Local Museus de Arte Contemporânea (Graça)>
Quando Até 30 de março. Terça a domingo, das 10 às 20h>
Ingresso Grátis>