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Jerusalém, o bairro que virou o refúgio de vítimas de enchentes na Bahia

Cidade baiana foi inundada por quatro cheias desde 2021 e está em estado de emergência mais uma vez

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 19 de maio de 2024 às 05:00

O bairro de Jerusalém, à primeira vista, é como qualquer outro de cidade pequena. Tem bar, igreja e mercadinho. É o perímetro que mais cresce em Dário Meira, no Sul da Bahia. Não porque tenha atrativos especiais. Localizado na parte mais alta do município, o endereço se tornou o refúgio inventado de vítimas das enchentes cada vez mais recorrentes na região.

Dário Meira está em estado de emergência
Dário Meira está em estado de emergência Crédito: Quintino Andrade

Nos últimos três anos, quatro cheias inundaram Dário Meira, onde vivem 10,7 mil pessoas. Entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, o município foi um dos 190 a decretarem emergência por causa da chuva na Bahia. Por lá, 90% dos moradores foram afetados.

Foi a partir daí que teve início o processo de migração interna para um bairro que se restringia, no passado, a uma fazenda de gado.

"A única opção foi Jerusalém", conta Alana Silva, 32, uma das novas moradoras. A enfermeira e as duas filhas, crianças, viviam em uma casa alugada no centro da cidade, de onde saíram às pressas no início de 2022 depois de perderem os móveis, as fotos, os documentos em um alagamento.

Dário Meira é cercada pelo Rio Gongogi e o Riacho do Meio, o que torna quase todas as áreas do município vulneráveis às cheias — sobretudo o centro, avarandado pelo rio. "É um refúgio da enchente... que aqui ficou constante", define a enfermeira Alana sobre a morada em Jerusalém, aos fundos da cidade.

Mãe e filhas chegaram a morar em Ibitupan, uma cidade vizinha, mas voltaram à terra natal. "Retornei com o início das aulas delas por falta de recursos lá", conta Alana.

A maioria dos moradores da cidade tem ao menos uma história para contar sobre as vezes em que rio e riacho escaparam pelas bordas e inundaram a cidade. A mais antiga, segundo a memória coletiva, aconteceu em 1981. Com o crescimento das construções à beira dessas correntes e a rapidez das mudanças climáticas desde então, a emergência piorou.

O volume de água introduzido pelas chuvas não tem conseguido escoar naturalmente. Transborda e leva consigo o que vê pela frente. Em janeiro deste ano, aconteceu mais uma vez, e 100 famílias ficaram desalojadas. A Prefeitura municipal decretou emergência ao Governo da Bahia, e o decreto desse estado permanece até agosto.

Migração forçada gera dúvidas

Quando a nova enchente alagou a cidade há quatro meses, o comerciante Jamilton Souza, 38, ficou aliviado por ter deixado de viver em uma das ruas vizinhas ao Rio Gongogi. A antiga casa tinha sido mais uma vez devastada. "Não adiantava ficar e continuar perdendo minhas coisas", conta ele, que se mudou para Jerusalém em janeiro do ano passado.

A residência no centro foi alugada, a um preço mais baixo que a média na cidade. "Pelo risco que existe, os valores são mais em conta", diz Jamilton, que mantém um comércio no velho endereço. No último alagamento, correu para salvar as mercadorias, um hábito conhecido.

Visão aérea bairro de Jerusalém, em Dário Meira
Visão aérea bairro de Jerusalém, em Dário Meira Crédito: Google Satélite

O bairro onde ele agora vive surgiu da surgiu da desapropriação de uma fazenda, há dez anos. Parte da população local acreditava que lá seriam construídas casas populares, o que só aconteceria em 2022.

Já a migração das vítimas de enchentes, não planejada, surgiu aos poucos. E foi alavancada depois das enchentes de 2021. O bairro tem, em média, 170 mil m2 — o equivalente a 20 campos de futebol —, segundo o cálculo automático do Google satélite.

“A migração ficou mais patente, várias pessoas foram forçadas a isso. Em 2021, principalmente homens foram para outros estados em busca de trabalho. Hoje, o que acontece é mais essa migração de bairro”, avalia Marcos Alves.

O advogado integra a Cáritas, organização católica focada em comunidades afetadas por desastres socioambientais. Entre 2022 e 2023, ele viveu em Dário Meira, onde participou de projetos de formação sobre meio ambiente e gestão de riscos para a população.

“Não existe uma política pública definida para o problema, mas existe um Grupo de Trabalho (GT) na Prefeitura que trabalha nesses momentos de tragédia. Mas nós não temos um plano. O possível plano de evacuação da cidade até foi feito, mas não articulado”.

Uma das preocupações da organização é o próprio avanço da ocupação de Jerusalém. Além das casas populares, o bairro será também o endereço da nova escola estadual, do complexo policial e de um acesso para a cidade.

Sem planejamento urbano para essa área, pode surgir uma nova pressão ambiental, como a geração de lixo jogado no Riacho do Meio. Na enchente de janeiro, por exemplo, uma das ruas mais baixas de Jerusalém foi atingida pela subida do nível da água.

“O erro é que as pessoas são induzidas a acharem que o problema é o rio ou o riacho”, avalia Marcos Alves, quando o problema são frutos de um histórico destruição ambiental”

O prefeito de Dário Meira, William de Alemão (PP), não atendeu às tentativas de contato feitas pela reportagem ao longo da última semana.

Milhões de deslocados pelo clima

O que acontece em Dário Meira é parte de um movimento global: o de deslocamentos por desastres climáticos. No ano passado, um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) calculou 26 milhões de pessoas deslocadas por tragédias climáticas.

Os números foram os mais elevados desde o início da década, e consideram eventos como enchentes, secas, ondas de calor e terremotos. Nas Américas, o Brasil é o país com mais deslocamentos causados por desastres naturais: 745 mil.

Não há, contudo, números oficiais que estimem quantos e quem são os baianos que migraram de onde viviam por efeitos do clima.

Dário Meira devastada pela chuva em 2021 Crédito: Divulgação/Graer

A funcionária pública Lara Pinheiro, 50, é uma delas. Até o início deste ano, ela via pelas janelas do fundo de casa o Rio Gongoji. Em 2021, foi a primeira vez, nas duas décadas em que ela morou na mesma residência, que a força da água destruiu quase tudo lá dentro. A família, daquela vez, optou pela reconstrução.

"Aí veio a enchente desse ano. A água ficou a 60 centímetros, e eu tive que me mudar. Não dá para ficar nessa angústia", desabafa ela.

A família Pinheiro, naquele dia, tentou se antecipar. Às 6h30, quando o volume de água na rua ainda era menor, começou a retirar os pertences de casa. Depois de nove horas de trabalho, Lara e o marido decidiram partir. Desde então, eles moram na vizinha Ipiaú, onde têm familiares. Todos os dias, Lara viaja 90 quilômetros para ir e voltar de Dário Meira.

"Hoje, durmo mais tranquila. Em dezembro, Dário Meira já fica tensa", conta. Os moradores não sabem se outra enchente virá, e se vir, se terão tempo para salvar algo.

Entre alguns dos moradores atingidos pelas enchentes, mas que não migraram, existe a vontade. "Tive proposta de alugar um lugar mais alto, hoje moro no centro, em frente ao meu comércio. Não fui. Mas já estou em pânico e com o propósito de mudar", diz Mércia Cardoso, 43, à frente de um trailer de comida estacionado no centro.

Como nasceu pouco depois da enchente de 1981, ela só sabe de ouvir falar sobre os efeitos daquele grande alagamento. "A nossa história é muito triste. Algumas paredes têm marcas de água. Hoje, ficamos com receio até de pintar a parede e a água vir".

Como os interiores se preparam?

"A migração por questões climáticas atravessa a própria história do país", afirma Paulo Zangalli, professor da Universidade Federal da Bahia que pesquisa governança do clima.

Entre os anos 30 e 70, por exemplo, pessoas de estados nordestinos migraram em massa para regiões sul e sudeste em busca de trabalho.

Alguns deles se mudaram por falta de opção, "mas na maior parte das vezes eram processos agravados por problemas climáticos, como a seca", afirma o doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita.

Salvador também recebe migrantes climáticos, especialmente entre os anos 70 e 80, quando a industrialização crescia na capital. Em 2011, o Governo da Bahia aprovou uma Lei sobre mudanças climáticas. Mas, na avaliação de Zangalli, os interiores permanecem fora da discussão.

Na Bahia, existem 417 municípios, situados em regiões diferentemente afetadas pelo regime de chuvas e pelas mudanças climáticas, explica o professor. Isso, por si só, exige uma atuação específica para cada localidade.

O Sul e o Sudoeste, por exemplo, têm o regime de chuva influenciado por frentes polares. Já no Oeste, há intervenção da Amazônia e das frentes. No Norte, não há predominância de sistema específico gerando chuva, o que o deixa mais suscetível a secas extremas. No Leste, onde fica Salvador, há bastante influência dos ventos alísios, explica o professor.

Hoje, segundo ele, não há uma coordenação estadual, na Bahia, para discutir com interiores a adaptação climática.

A Secretaria Estadual do Meio Ambiente respondeu à reportagem que possui colegiados e conselhos em diferentes partes do estado para “tratar sobre temas que se relacionam com a questão de mudanças climáticas”, e que criou um programa, o GAC, “cujo objetivo é apoiar os municípios para a adequação de suas estruturas municipais de meio ambiente”.

"O que há hoje de ação do Estado em relação a preparação para eventos climáticos só surge quando ele é provocado localmente, por exemplo pelo Ministério Público, ou quando existem tragédias de grande magnitude e a coesão social se vê ameaçada", contrapõe Zangalli.

Depois das enchentes que destruíram o Rio Grande do Sul, por exemplo, o Senado Federal aprovou, na última quarta-feira (15), o Projeto de Lei que prevê que o Governo Federal, em conjunto com estados e municípios, desenvolva um plano nacional de adaptação às mudanças do clima.

Inundação no Rio Grande do Sul
Inundação no Rio Grande do Sul Crédito: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

As discussões têm sido promovidas por organizações independentes. Durante cinco meses, entre junho e o final do ano de 2022, os ambientalistas Virgílio Machado e Letícia Moura promoveram palestras e encontros para representantes de dez municípios baianos sobre a crise climática e intervenções ambientais. Entre eles, estavam também lideranças comunitárias do município.

As cidades — Dário Meira não estava entre elas — se inscreveram para participar do projeto Bahia no Clima, criado por Virgílio e Letícia e financiado por um edital estadual da Bahiagás.

O casal, que coordena o Fórum Clima Salvador, estudou cada um dos municípios integrantes, e descreveram os riscos climáticos em cada um deles. A principal dificuldade nos encontros não era essa atividade, e sim avançar nas discussões sobre as mudanças climáticas.

"Na maioria das vezes, não há um entendimento claro sobre em que contexto ocorre e por quê. Infelizmente, as dúvidas levantadas por negacionistas atrasam e dificultam esse entendimento, e as ações necessárias."

Por fim, Virgílio e Letícia apresentaram caminhos necessários para adaptar os territórios. Depois do curso, nenhum dos municípios conseguiu elaborar um plano de ação contra tragédias climáticas, mas oito deles demonstraram avanço.

"Algumas secretarias de meio ambiente se dedicam bastante", diz, "mas não conseguem implementar porque os gestores têm outras prioridades. Além disso, o eleitor não valoriza o gestor que trabalha com a prevenção. A régua de avaliação são obras e grandes intervenções que, em geral, seguem um modelo ultrapassado".