'Inoperância do MEC': o que está sendo feito para evitar novos ataques a escolas

Caso de escola em Heliópolis gerou alerta para falta de ações concretas de prevenção, segundo pesquisadores

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 26 de outubro de 2024 às 05:00

Violência nas escolas
Violência nas escolas Crédito: Quintino Brito

Antes de Heliópolis, houve Barreiras. Antes de duas meninas e um garoto serem mortos por um colega que se matou na sequência), no último dia 18, no único colégio municipal de um povoado de Serra dos Correias, teve Morro do Chapéu. Houve, ainda, outros 38 casos de ataques a escolas em todo o Brasil - incluindo o primeiro, em 2001, em Salvador. Além do trauma causado à comunidade, o atentado mais recente em mais uma cidade baiana trouxe uma indagação urgente: o que está sendo feito para que evitar novos casos no futuro?

Entre quem lida diretamente com o ambiente escolar, há praticamente consenso de que há muito a ser feito, ainda que o número de ataques tenha diminuído do ano passado para cá. Entre 2022 e 2023, o Brasil registrou a maior quantidade de atentados contra ambientes escolares. Na Bahia, houve ataques em dois dias seguidos: em 26 de setembro de 2022, em Barreiras, e em 27 de setembro no mesmo ano, em Morro do Chapéu.

"Houve uma redução desses casos, mas as questões que se referem à violência intraescolar continuam. Agressividade, ameaças a professores e entre alunos, bullying, preconceito todos, como de gêneros e de cor ainda são pontos de gatilho para violência", diz a assistente social Fernanda Ferreira, do Centro de Referência de Assistência Social de Morro do Chapéu.

Fernanda atuou no atendimento a vítimas e famílias da Escola Municipal Yêda Barradas Carneiro, depois que um aluno de 13 anos ateou fogo no prédio da instituição e tentou uma professora com uma faca. Desde então, ela trabalha também com a rede de escolas da cidade, mas diz que a maioria das ações ainda é pontual.

Faltaria, portanto, uma abordagem mais profunda e mais próxima. "A mediação de conflitos e a cultura de paz, por exemplo, têm que ser transversais às disciplinas. A escola tem que trabalhar isso o tempo todo e, por vezes, precisa do suporte. Precisa ter, na comunidade escolar, profissionais que tenham capacidade de trabalhar esse conflito".

Em novembro de 2023, o Ministério da Educação (MEC) lançou um relatório que analisa o fenômeno dos ataques a escolas e faz recomendações sobre como deve ser a ação governamental. Ao longo de 149 páginas, o grupo de trabalho de especialistas em violência nas escolas propõe 12 ações emergenciais para serem promovidas pelo Estado brasileiro como forma de prevenção.

Entre as medidas estão a orientação para desmembrar e enfrentar a formação e a atuação de subcomunidades de ódio e extremismo; promover a cultura de paz e responsabilizar as plataformas digitais sobre a circulação de conteúdo extremista e ilegal. Mas há, ainda, propostas de enfrentamento que tratam da gestão democrática e da promoção de uma educação antirracista e antidiscriminatória. Esses aspectos incluem desdobramentos como apoiar que profissionais da educação implementem e elaborem um plano de ação participativo; estimular e fortalecer grêmios e coletivos estudantis e expandir espaços comunitários.

Nesse segundo plano, principalmente, a ação - ou falta dela - do governo brasileiro tem sido alvo de críticas de pesquisadores. "Infelizmente, o que eu vejo é um MEC inoperante em relação ao tema", diz o relator do documento, o educador e cientista político Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

Ele critica a falta de efetividade das medidas tomadas. "O MEC constituiu agora mais um grupo, uma pessoa para lidar com a questão, mas é muito inócuo", afirma, referindo-se ao caso de Heliópolis. "No fundo, a ação do MEC é fazer discussão e não tomar iniciativa nenhuma. O relatório é bastante consistente, mas nada foi implementado". Pelo que chamou de ‘inoperância’ do ministério, Cara saiu do grupo de trabalho e tem preferido atuar junto a secretarias de educação e com pesquisadores.

Nesse contexto, o caso de Heliópolis tem contornos próprios: aconteceu em uma cidade do interior da Bahia, longe do eixo Rio-São Paulo, que costuma atrair a atenção dos grandes veículos de mídia. "Como foi um ataque que não teve muita cobertura de imprensa (nacional), o governo está pacificado com isso. Mas se acontecer mais algum - e diante da inoperância do governo, vai acontecer mais -, infelizmente todo mundo vai sair desesperado tentando assumir soluções", afirma.

Colégio Municipal Dom Pedro I,  em Heliópolis
Colégio Municipal Dom Pedro I, em Heliópolis Crédito: Divulgação

Misoginia

Se, no último ano, houve menos casos de ataques a escolas, muito se deve ao trabalho do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, na avaliação do professor. Orientados pelo grupo de trabalho, os órgãos de justiça têm conseguido intensificar ações como o trabalho de inteligência. O Ministério da Justiça tem acompanhado e combatido as comunidades de ódio, que se articulam nas plataformas online. Uma reportagem do CORREIO mostrou, no ano passado, que o avanço do extremismo político está ligado ao aumento de ataques a escolas no país.

No entanto, para Daniel Cara, a atuação de combate às comunidades online é como procurar "uma agulha no palheiro". Ele defende que as medidas mais urgentes agora também devem ser relacionadas à gestão democrática das escolas e ao clima escolar. No Brasil, a maioria dos atentados foi cometido por alunos ou ex-alunos. "Ou seja, o ódio se articula na internet, mas ele tem como ponto de partida o próprio ambiente escolar".

É preciso, então, trabalhar no ambiente escolar, a formação de professores, e promover a educação antirracista e antimisógina. O aspecto da misoginia costuma ser muito presente nesses ataques. No Brasil, todos os autores de atentados eram homens ou meninos. Não é incomum que as mulheres sejam alvos mais frequentes nesses ataques.

"A questão do racismo e da misoginia precisa ser debatida nas escolas. Por que o MEC se exime, honestamente? O receio de criar uma educação antirracista e antimisógina é porque (o órgão) tem receio de enfrentar, eventualmente, parlamentares de extrema-direita que se colocarem contra essa política. O MEC tem medo do pânico moral".

Através da assessoria, o ministério informou que a secretária Zara Figueiredo, titular da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), não poderia dar entrevista no momento porque está empenhada em atender o caso de Heliópolis.

Subcomunidades

Em abril de 2023, em meio ao recrudescimento dos ataques a escolas no país, a Operação Escola Segura foi lançada pelo Ministério da Justiça. O objetivo é atuar na prevenção de ataques. É uma operação que não tem data para acabar e, segundo a pesquisadora Letícia Oliveira, referência no monitoramento de subcomunidades no país, o órgão tem atuado para desmembrar esses grupos e combater os atentados de forma articulada.

"Nós tratamos os casos do ano passado como um evento atípico, apesar de já observarmos um aumento desde agosto de 2022", diz ela, que participou tanto da elaboração do relatório publicado pelo MEC quanto pelo documento anterior, feito em 2022, durante o governo de transição. Naquele primeiro texto, os especialistas já apontavam que havia possibilidade de aumento de casos, mas não na intensidade como de fato ocorreu.

A diferença do ano passado para 2024, de acordo com Letícia, é que o monitoramento e a prevenção de ameaças têm dado resultados. "Como não há ataques, não há divulgação, o que acaba anulando qualquer possibilidade de efeito contágio", explica.

Letícia é uma das responsáveis por um monitoramento da atuação das subcomunidaes em redes sociais e apps como Discord e Telegram. Essas comunidades incentivam ataques compartilhando imagens e detalhes dos casos. De acordo com ela, a subcomunidade que glorifica os autores de massacres é composta principalmente por meninos e meninas adolescentes, numa espécie de fandom.

"Eles costumam criar edits e fanfics dos autores. Eles têm uma relação de fã/ídolo com esses autores. As meninas costumam criar fantasias românticas com alguns desses autores e os meninos sonham em se tornar ‘santos’, como os ídolos que morreram durante a realização do ataque", explica.

Nestes ambientes virtuais, buscam parceiros dispostos a cometer ataques e anunciam que estão planejando algum atentado. "De todos os casos ocorridos entre 2022 e 2023, apenas no caso do ataque à creche em Blumenau não encontramos relação alguma com essas subcomunidades", diz, referindo-se a um atentado de abril do ano passado, em que cinco crianças morreram.

O efeito contágio pode ser bem identificado na onda de ataques do ano passado, segundo a pesquisadora. Até ali, a imprensa ainda não tinha orientações para a cobertura desses massacres e havia a divulgação de imagens, bem como da identidade dos autores. Essas imagens iam parar nas subcomunidades de glorificação e serviam como incentivo para outros adolescentes que pretendiam cometer atentados do tipo.

No monitoramento, ela e outras pesquisadoras conseguiram identificar nos últimos dias que o caso de Heliópolis, inclusive, teve repercussão nessas comunidades. No entanto, não há indícios até então de que o autor fazia parte desses grupos ou de comunidades de glorificação a autores de massacre.

Até pouco antes de 2017, essa articulação do ódio se dava na deep web - a parte da internet que não é indexada por mecanismos de busca, como o Google e o Bing. De acordo com o professor Daniel Cara, da USP, houve uma transição para plataformas de uso comum, que são mais fáceis não apenas para usar, mas para cooptar adolescentes.

"A gente tem conseguido criar uma relação com as plataformas para coibir a prática de cooptação". Segundo Cara, o que está acontecendo agora é uma nova transição, já que plataformas como Discord, Twitter/X e Telegram têm sido mais monitoradas. A suspeita dos pesquisadores é de que essas subcomunidades extremistas estejam migrando para outros apps.

Vítimas

Em Barreiras, no Oeste baiano, uma aluna cadeirante, a jovem Geane da Silva Brito, 19, morreu depois que um adolescente cometeu o ataque contra o Colégio Municipal Eurides Sant'Anna, em 26 de setembro de 2022. A instituição é uma escola militarizada, já que tem convênio com a Polícia Militar. O atirador, que usava a arma do pai, foi baleado e ficou tetraplégico.

Pouco mais de dois anos após o episódio, o secretário de educação do município, Jeferson Barbosa, conta que houve pânico e medo na rede nos meses seguintes. De acordo com ele, houve uma ação conjunta com as Polícias Federal e Militar, além da Guarda Civil Municipal, que criou uma ronda específica para ajudar as escolas.

Ele diz que medidas simples também ajudaram a tranquilizar a comunidade. "Uma das coisas que possibilitou o acontecimento foi que o porteiro não estava na portaria. O menino entrou e ele não estava lá", diz.

O atirador costumava fazer publicações de cunho racista e xenofóbico em suas redes sociais, inclusive postagens de ódio contra os baianos. O secretário disse que, desde então, foi criado um cargo de orientador profissional, que são professores mais experientes, para observar comportamentos estranhos e impedir conflitos.

Hoje, a rede escolar tem dois psicólogos e, segundo Barbosa, quatro novos profissionais serão convocados para fazer acompanhamento dos alunos. Eles ficarão responsáveis pelos cerca de 25 mil estudantes nas 72 escolas da rede.

Em Morro do Chapéu, o ataque à escola foi no dia seguinte, em 27 de setembro de 2022. De acordo com a assistente social Fernanda Ferreira, que atuou no atendimento à comunidade, o sofrimento e o medo era geral. Lá, o adolescente ameaçou pessoas com uma faca e ateou fogo à escola.

"A gente atuou nesse amparo à comunidade escolar. Foi um episódio específico, que explodiu algumas janelas, mas ninguém ficou ferido fisicamente", lembra. O aluno foi tirado do convívio familiar na época, mas retornou.

Segundo Fernanda, ele é acompanhado até hoje e as equipes levaram em conta o fato de ser alguém sem nenhum histórico de violência ou conflito. Na época, o adolescente foi transferido para outra instituição. Ele recebeu atendimentos psicológico e social, assim como para a família.

Já a comunidade escolar passou por um acompanhamento inclusive com os professores para abordar questões como medo, ansiedade, violência e os efeitos disso. "Nesse caso com esse adolescente, a gente conseguiu descobrir que existia toda uma rede por trás, de Whatsapp, que dava a orientação de como proceder num ato violento. Isso nos chocou muito", lembra. A Polícia Federal conduziu essa investigação.

Para ela, ainda falta trabalhar mais temas na educação, inclusive a prevenção de violência sexual, respeito, dignidade da vida e diversidade.

"Algumas coisas foram alcançadas, mas precisa colocar essa questão do trabalho de mediar conflitos e do respeito. Quando você trabalha isso nas escolas, diminui a ocorrência de bullying e perde o sentido de alguns preconceitos. Alguns municípios têm implementado isso, mas fica muito a cargo das gestões municipais decidirem".

Escolas que foram vítimas de ataques estão abandonadas, diz pesquisador

Um dos pontos abordados pelo relatório do Ministério da Educação (MEC) que analisou o fenômeno dos ataques e fez recomendações para ações governamentais, no ano passado, foi o da reconstrução das escolas que foram alvo de ataques e das comunidades.

No entanto, essa fase posterior também tem tido problemas. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação está conduzindo uma pesquisa visitando escolas que sofreram ataques nos últimos anos, em todo o país, para fazer esse diagnóstico e ver como essas instituições estão hoje.

"A situação é de abandono", diz o cientista político e educador Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que supervisiona o estudo. "As comunidades escolares estão abandonadas pelo poder público local, sejam governos estaduais e municipais, seja o Ministério da Educação (MEC)", acrescenta.

A pesquisa só deve ser publicada no ano que vem, mas um relato que tem sido frequente é de que representantes do governo federal vão às escolas e passam uns dias. Depois de um tempo, contudo, desaparecem, de acordo com Cara.

"As famílias ficam desamparadas. Elas não têm apoio jurídico e, muitas vezes, a gente tem indícios de que as famílias são pressionadas, até com a questão financeira, a não se posicionar mais sobre o tema", afirma ele, citando promessas de indenização que são condicionadas a isso.

No entanto, essas indenizações não aconteceriam. "Isso denota total irresponsabilidade do poder público. A regra é a irresponsabilidade".

Ele cita o exemplo do caso da cidade de Aracruz, no Espírito Santo, em que um adolescente atacou duas escolas em novembro de 2022. Seis meses após o massacre, houve uma audiência pública com as famílias na Assembleia Legislativa do Espírito Santo. "As famílias estavam destroçadas, mas algumas não compareceram com medo, porque havia uma pressão para não se posicionarem", conta.

Esse estado das famílias não é incomum, inclusive entre as vítimas de casos mais antigos. Até hoje, famílias de vítimas do massacre de Realengo, que aconteceu em 2011, no Rio de Janeiro, estariam abandonadas. O ataque em Realengo é considerado um gatilho para outros. "Na prática, existe um medo enorme de tratar do assunto. É um trauma que se mistura com medo", completa Cara.