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Thais Borges
Publicado em 24 de outubro de 2024 às 14:56
O reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Paulo Miguez, disse que viu com “estranhamento” a sentença da Justiça federal que determinou a nomeação da médica otorrinolaringologista Lorena Pinheiro para uma das vagas desocupadas na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB). O caso de Lorena teve repercussão nacional porque ela foi impedida de assumir uma vaga como professora devido a outra decisão judicial contra cotas. >
“Isso é um desrespeito à universidade e expressa uma incompreensão do que é a universidade. As vagas da universidade não são apenas vagas. São vagas que respondem a necessidades específicas, a disciplinas específicas de campos de pesquisa específicos. Imaginar que qualquer vaga estará disponível para qualquer pessoa é não compreender a natureza de uma universidade”, afirmou Miguez, em entrevista ao CORREIO, nesta quinta-feira (24). >
Foi também nesta quinta que a Ufba foi oficialmente notificada do despacho. A sentença original foi emitida no dia 4 de outubro e havia um prazo inicial para que a universidade cumprisse, o que não aconteceu. Assim, na última terça-feira (22), a juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara Federal, deu dois dias para que a Ufba nomeasse Lorena para o cargo de professor do magistério superior, na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), sob risco de pena de multa. >
No entanto, a magistrada é a mesma que autorizou a revogação da nomeação de Lorena, em agosto, ao conceder outra liminar em favor da candidata da ampla concorrência, a também otorrinolaringologista Carolina Cincurá Barreto. No dia 13 de junho, a mesma juíza federal determinou não apenas a nomeação de Carolina para a vaga como também que a Ufba não convocasse, nem nomeasse candidatos cotistas para a posição.>
Na sentença mais recente, a juíza diz que a Ufba deve alocar Lorena em uma das vagas da FMB, mas não especifica que vaga seria essa. Para o reitor Paulo Miguez, a sentença acaba por desrespeitar a formação médica e coloca em risco pacientes que estarão sendo atendidos por médicos formados por especialistas de outras áreas. >
“Se você tem filhos, você toparia levar sua filha em uma pediatra que tivesse tido como professora na área de pediatria, por exemplo, uma médica que passou a vida inteira de formação, na residêcia e doutorado, estudando otorrinolaringologia? Você ficaria confortável se a pediatra de sua filha tivesse sido formada por alguém que não é da área de Pediatria? Eu poderia também perguntar à senhora magistrada se ela aceitaria ser defendida no Tribunal do Júri por um advogado especialista em direito esportivo ou direito administrativo?”, questiona. >
O reitor adiantou que a Ufba irá recorrer nos canais competentes, por meio de sua procuradoria. Na quarta-feira (23), a médica Lorena Pinheiro também comentou o fato de não haver definição para qual área seria alocada. >
"É como se ela colocasse o problema para a Ufba. Porque eu posso ficar numa área em que teria que me preparar do zero para assumir. Estaria no limbo da universidade, sendo que a vaga que tenho direito é a de otorrinolaringologia", disse, na ocasião. >
Desrespeito>
O reitor falou também sobre desrespeito à política de cotas nas universidades federais. Em setembro, uma reportagem do jornal mostrou que, no Brasil, existem pelo menos sete casos de candidatos de ampla concorrência que usaram a Justiça para impedir a nomeação de candidatos negros cotistas, todos aprovados em primeiro lugar após a heteroidentificação.>
Desses, quatro estão na própria Ufba - além de Lorena, houve processos no Instituto de Ciências da Saúde, na Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia e na Escola de Belas Artes. Outros três são nas Universidades Federais de Sergipe (UFS), de Uberlândia (UFU) e Fluminense (UFF).>
Para Miguez, a sociedade brasileira ainda reluta em assumir a necessidade de produzir políticas afirmativas para aqueles que tiveram possibilidades de crescer subtraídas ao longo da história. No entanto, ele reforçou que a Ufba tem clareza que caminha da melhor maneira para fazer valer a política de cotas. >
“Quanto mais essa lei pudesse ser realmente implantada, melhor será a universidade e melhor será a sociedade brasileira”, disse. “Não passarão aqueles que acreditam que poderão barrar a universidade na sua obrigação de acolhimento de toda a sociedade brasileira”, enfatizou. >
Vitória parcial>
Cotista, Lorena ficou em primeiro lugar para o concurso de otorrinolaringologia após a última fase - a de heteroidentificação -, mas teve o resultado questionado pela candidata aprovada na ampla concorrência, em uma ação contra ações afirmativas. Em agosto, Lorena descobriu que havia perdido a vaga após uma decisão da 1ª Vara revogar a portaria que a Ufba publicou homologando o resultado do concurso.>
No dia 3 de outubro, a juíza Arali Maciel Duarte negou o recurso contra sua decisão original, que revogou a vaga de Lorena - e que levou a toda essa situação. No dia seguinte, a mesma magistrada concedeu a nova liminar, mas no âmbito de outro processo movido pela assessoria jurídica de Lorena. >
Além disso, a sentença vem na mesma semana em que o Ministério Público Federal (MPF) emitiu um parecer favorável a Lorena no processo sobre o edital. No texto, o procurador da República Fábio Conrado Loula relembra o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que não deve existir fracionamento de vagas de acordo com a especialização em concursos do magistério superior. O manifesto do procurador é para que Lorena seja nomeada em uma das vagas comprovadamente desocupadas da FMB.>
Na última quarta-feira, Lorena disse à reportagem que a nova liminar é uma vitória parcial. Ela explica que é uma comemoração no sentido de entender que a vaga é sua e que a reivindicação não é vazia. "É uma primeira decisão favorável ao meu direito de ter acesso à Lei de Cotas. No edital que participei, todos os outros cotistas negros foram convocados, menos eu, que fui interpelada. É a primeira vitória, mas não resolve, porque fui aprovada para a vaga de otorrinolaringologista", enfatizou.>
Ainda assim, ela questionou o futuro da aplicação da Lei de Cotas nos concursos de docentes e apontou que existe agora uma insegurança jurídica. “A injustiça continua lá, as diferenças estruturais que atrapalham a chegada da pessoa negra a esses espaços continuam lá. Essa decisão liminar não corrige a injustiça”, acrescentou. >
O advogado que representa a médica, Felipe Jacques, explicou que, quando ela teve a vaga revogada, identificaram que existia um precedente ruim no segundo grau, referente a decisões desse tipo. Ele se referia ao caso do farmacêutico Felipe Hugo Fernandes, cotista aprovado em um concurso para a área de Farmacologia, no Instituto de Ciências da Saúde da Ufba. >
Em 2021, contudo, Felipe Hugo perdeu a vaga depois que a candidata aprovada na ampla concorrência entrou na Justiça, antes mesmo da nomeação dele, para assumir a posição. O caso dele foi revelado pelo CORREIO em setembro. O processo está no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), mas já soma dois anos e meio sem resposta. Sem poder assumir a vaga na Ufba, Felipe Hugo foi aprovado em um concurso para a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), também em Farmacologia, para o curso de Medicina, e tomou posse no mês passado.>
O concurso>
Negra e doutora em Ciências da Saúde pela própria Ufba, Lorena concorreu como cotista no concurso nº 1/2023, que teve 30 vagas para docente em diferentes unidades da instituição. O edital informava que seis vagas seriam reservadas a candidatos negros e a duas a pessoas com deficiência, seguindo o percentual mínimo determinado pela Lei de Cotas, de 20% e 5%, respectivamente. Desde 2018, as cotas são aplicadas à totalidade das vagas disponibilizadas nos editais para professores da Ufba.>
Na prova escrita, que aconteceu no dia 20 de dezembro do ano passado e foi a única etapa totalmente às cegas, Lorena teve a nota mais alta. A avaliação pedia que todos os participantes discorressem sobre um tema definido por sorteio - no caso dela, paralisia facial periférica. Em seguida, vieram as etapas subjetivas. Na apresentação do memorial, por exemplo, para dois professores, teve nota por volta de 8,5 enquanto o terceiro membro da banca deu 7,0.>
O resultado preliminar das três fases iniciais saiu no dia 22 de dezembro e Lorena ficou em quarto lugar. Ainda restava, contudo, a banca de heteroidentificação, que só pode ser feita quando a greve de professores da Ufba chegou ao fim, em junho deste ano. Antes mesmo da banca, Lorena ainda não sabia, mas a candidata que havia ficado em primeiro lugar na ampla concorrência já questionava a Ufba quanto à sua nomeação.>
Em 8 de maio, três meses antes do resultado final do concurso, a candidata e também médica otorrinolaringologista Carolina Cincurá Barreto impetrou o mandado de segurança com tutela de urgência requerendo três coisas: sua convocação e nomeação, a nulidade do edital para impedir qualquer reclassificação e uma indenização, em caso de nomeação tardia.>