Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 1 de junho de 2024 às 05:00
No início, o podcaster e jornalista André Piunti, 39 anos, não deu muita importância aos comentários sobre o 'tal de Mounjaro'. Achou que seria mais um Ozempic, remédio que se tornou símbolo da febre das canetas emagrecedoras e que já tinha usado. Até que, no fim do ano passado, a perda de peso de uma amiga chamou a atenção. Vindo de dois anos de tentativas de emagrecer sem muito sucesso, ele agendou uma consulta com uma clínica americana que atende por telemedicina e até envia o remédio para o Brasil. >
André estava a caminho das férias nos Estados Unidos e preferiu receber lá mesmo. "Fiz a consulta e enviei meus exames. Eles mandaram a receita para a farmácia e, dois dias depois, recebi o remédio no local onde eu estava hospedado", conta ele, que segue com o tratamento no Brasil. Do fim de dezembro para cá, perdeu 28 quilos - os 20 primeiros em dois meses. "Parece oba oba, mas é verdade. Não existe nada assim", acrescenta. >
Como ele, outros tantos brasileiros começaram a importar o medicamento que ainda não está disponível aqui. Desde que o Mounjaro - nome comercial da tirzepatida - foi aprovado no Brasil, em setembro do ano passado, profissionais e pacientes têm investido em diferentes estratégias em busca do remédio. O caminho para acessar o medicamento inclui desde a importação com assessorias especializadas, a consulta com clínicas no exterior e até mesmo a compra direta em viagens. >
Nos consultórios, os últimos meses foram de alvoroço. Pacientes queriam saber como usar e, em alguns casos, já chegavam com o remédio, depois de viagens para os poucos países onde é possível adquirir sem receita. Nesse contexto, Dubai despontou como um destino atraente para esses pacientes, segundo o médico endocrinologista Caio Saraiva, que atende nas clínicas Elsimar Coutinho e Gabriel Almeida. Lá, uma caixa com quatro canetas sai por cerca de R$ 2,4 mil. >
“Outra maneira é através de importadores. O problema é que aumenta o valor da medicação, que já não é barata, em quatro ou cinco vezes. Por isso, ela ficou conhecida como Ozempic dos ricos e se tornou famosa em Brasília, com muitos deputados usando”, explica. A lista de celebridades brasileiras que já usaram a tirzepatida inclui o apresentador Luiz Bacci e o ator Arthur Aguiar.>
De fato, a alcunha pode ser explicada pelo fato de o remédio ainda não estar disponível aqui. Em empresas consultadas pela reportagem, o custo de importação pode chegar a R$ 10 mil por mês. Quando chegar ao Brasil, os preços máximos na Bahia devem variar entre R$ 1,9 mil e R$ 3,9 mil, dependendo da dosagem, de acordo com a determinação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed). >
Assim, o menor preço da nova substância ainda deve custar mais do que a versão mais cara do Ozempic, cujo princípio ativo é a semaglutida. Atualmente, o concorrente é o mais caro disponível no mercado e fica em torno de R$ 1,2 mil. >
Bariátrica>
Registrada como terapia para controle do índice glicêmico de adultos com diabetes tipo 2, a tirzepatida ainda não tem previsão de ser vendida no país, segundo a farmacêutica Eli Lilly do Brasil, que desenvolveu o medicamento. Enquanto isso, a importação de medicamentos para uso individual é legal, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para isso, o importador deve apresentar os documentos que comprovem o uso próprio, tal qual o relatório médico e a prescrição (veja abaixo).>
O frisson pelo medicamento tem a ver com a fama de ser uma 'bariátrica sem cortes'. Os estudos de fase 3, divulgados no ano passado, indicaram um percentual médio de 26% de queda no peso. O procedimento cirúrgico, por sua vez, tem uma redução média de 25%. >
"A gente já conseguia resultados muito bons com o Ozempic. Com o Mounjaro, é surreal. Como a obesidade atinge uma população muito grande hoje, gerou um interesse muito grande", diz o endocrinologista Caio Saraiva. >
O Mounjaro é agonista do GLP-1 e do GIP, que são liberados no intestino após a refeição - ou seja, é uma substância capaz de se ligar ao receptor celular e provocar uma resposta biológica. O GLP-1 é o peptídeo similar ao glucagon (hormônio que sai das células pancreáticas), enquanto o GIP é o polipeptídeo insulinotrópico glicose-dependente. >
“Esses dois hormônios têm atividades no sistema nervoso central relacionados à fome e à saciedade e, portanto, têm a função de reduzir a fome. Interferem na sociedade e reduzem a velocidade de esvaziamento gástrico”, afirma o médico nutrólogo Durval Ribas Filho, fellow da Obesity Society e presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).>
A diferença está justamente no segundo hormônio, o GIP, que acelera o metabolismo e não é liberado na semaglutida. O outro diferencial é que cada aplicação semanal do Mounjaro usa todo o conteúdo da caneta, enquanto o Ozempic tem a mesma caneta para diferentes aplicações. >
Ainda é cedo, contudo, para atribuir ao Mounjaro o fim da cirurgia bariátrica, na avaliação de Ribas Filho. Isso porque a obesidade mórbida também pode ter um componente genético forte. Nesses pacientes com aspecto genético mais presente, a resposta ao medicamento não é total. >
“Mas, sem dúvida alguma, a tirzepatida é um medicamento que deve ocupar um espaço muito importante na redução do peso corporal dos pacientes, inclusive os com obesidade mórbida”, pondera. >
A indicação é para pessoas com obesidade - ou seja, com Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 30 - ou que tenham sobrepeso e alguma doença metabólica, como diabetes ou hipertensão. >
"Às vezes, vemos algumas pessoas usando sem tanta necessidade e não é esse o intuito. Tem gente que ganhou um pouquinho de peso no verão e quer usar, mas não deve. A gente até viu, com o Ozempic, que levou à falta de medicação nas farmácias", acrescenta o endocrinologista Caio Saraiva.>
O nutrólogo Durval Ribas Filho também reforça que o medicamento é individualizado. “O Mounjaro não pode ser usado por todos pelas contraindicações que eventualmente existam para pacientes que são obesos com comorbidades associadas. Tem que ser muito bem avaliado através de exames e de monitoramento médico”. >
A corrida pela importação do Mounjaro, na avaliação dele, está associada a uma ansiedade dos pacientes para resolver a diabetes ou a obesidade. "Infelizmente, essa pílula mágica não existe". Em março, a Eli Lilly chegou a divulgar um vídeo publicitário às vésperas do Oscar com o objetivo de desestimular o uso indevido do remédio. >
“Algumas pessoas têm usado remédios que nunca foram feitos para elas. Para o vestido ou para smoking menor. Para uma grande noite. Por vaidade. Mas esse não é o ponto. Pessoas cuja saúde é afetada pela obesidade são a razão pela qual trabalhamos com esses medicamentos”, enfatiza uma narradora. >
Telemedicina>
No caso do jornalista André Piunti, o período da pandemia da covid-19 foi um marco. Além das restrições sanitárias da época, era um momento de excesso de trabalho. André, que sempre havia sido magro, engordou quase 30 quilos em um ano. >
Antes do Mounjaro, foram dois anos de todo tipo de tentativa de emagrecer. Fez dieta, acompanhamento com médico, rotinas com psicólogo. Algumas iniciativas ajudaram, mas nada foi duradouro. "Acho que o que também ajudou foi que eu comecei uma mudança no estilo de vida. Comecei a tomar nas férias e eu não abria o computador. Com o Ozempic, eu abria o computador no meio da rua. Tinha uma ansiedade que eu deveria ter tratado junto". >
Ele fez a consulta e deu início ao tratamento na Viphomeclinic, clínica estadunidense especializada em atendimentos por teleconsultas. Na época, conheceu a empresa pelo relato de uma youtuber brasileira que mora na Flórida e ele próprio trouxe as canetas para o Brasil, depois de viajar para os Estados Unidos. >
"O começo é muito forte, a pessoa emagrece muito rápido. Em duas semanas, na academia você perde um pouquinho. Em duas semanas com Mounjaro, ele dá uma enxugada. Sei que tem alguns médicos, inclusive o meu, que falam que tem que acompanhar porque mexe com a produção de insulina e eu entendo. De tempos em tempos, tenho feito exames".>
Além da Viphomeclinic, André faz acompanhamento com seu médico no Brasil. Depois de cinco meses de uso, já atingiu o peso que queria chegar. "A partir do mês que vem, vou fazer o desmame. Dá um certo medo de tirar e voltar aquela fome que tinha antes. Mas o lance da ansiedade ajudou muito. Sou uma pessoa mais calma e tranquila agora". >
Na Viphomeclinic, o programa de emagrecimento com a tirzerpatida inclui desde a teleconsulta até o frete para o Brasil. No caso de quem quer receber aqui, fica em torno de R$ 3 mil, a depender da cotação do dólar. >
Preço>
Na Bahia, a reportagem localizou ao menos três clínicas que fazem a importação do Mounjaro. Em cidades como São Paulo e Brasília, é ainda mais fácil encontrar opções do tratamento. Para a publicitária Manuela (que pediu para não divulgar o sobrenome), 35, o melhor da tirzepatida foi não ter os efeitos colaterais que sentia quando tentou o Ozempic. >
Ela fez o tratamento por dois meses, entre fevereiro e março. Começou com uma clínica americana e deu continuidade em uma clínica de São Paulo. Ao todo, nos dois primeiros meses, calcula ter gasto cerca de R$ 6 mil. >
“Primeiro, tentei o Ozempic e odiei. Tomei a primeira semana, com a primeira aplicação e passei muito mal”, conta ela, que queria perder o peso que ganhou durante a gravidez do filho, hoje com dois anos. >
Na gestação, viu seu peso aumentar 18 quilos e teve um quadro de diabetes gestacional. Ainda hoje, Manuela é considerada ‘pré-diabética’. Foi assim que, apenas com o Mounjaro, em dois meses, perdeu 12 quilos - e conseguiu não perder muita massa muscular. >
“Fiz acompanhamento nutricional o tempo todo, até porque gosto de treinar. Tem gente que fica sem comer, mas eu não queria isso. Nunca fui uma pessoa super magra, mas nunca lutei contra a obesidade”. >
Desde o começo de abril, porém, seguiu apenas com acompanhamento médico e o plano alimentar feito por uma nutricionista. Manuela, que foi bailarina por muito tempo, faz Crossfit há oito anos. No entanto, o valor da importação da tirzepatida tornou o tratamento a longo prazo inviável. >
Ela diz que o Mounjaro foi o indicado para o período após uma alteração hormonal na gravidez. “Eu tinha estimado seguir uns três meses com o Mounjaro, mas perdi mais rápido. Por isso, preferi não continuar e seguir com outras técnicas. A rapidez me impressionou. Você esquece de comer e não sente indisposição. Se eu não tivesse acompanhamento profissional para ganhar massa magra, provavelmente esqueceria”. >
O preço do tratamento deve ser levado em conta antes do início, especialmente no caso de pacientes com obesidade. Isso porque, como ressalta o médico endocrinologista Caio Saraiva, alguns pacientes terão que usar a medicação durante toda a vida, como uma doença crônica. >
Nesses casos, é difícil falar em desmame. "Se o paciente consegue mudar o estilo de vida, começa a fazer atividade física, é uma pessoa que é forte candidata a desmamar. Mas são aqueles que estão preparados. Se a pessoa não mudou o estilo, vem o efeito sanfona. Não é efeito rebote, é porque a pessoa voltou como era antes". >
Outra opção para alguns pacientes pode ser a troca de medicação, depois de um tempo. Mesmo quando o Mounjaro estiver disponível nas farmácias brasileiras, Saraiva considera que o valor do tratamento vai continuar sendo muito proibitivo. >
"Mas, para a gente, foi muito bom ter uma empresa concorrente à Novo Nordisk, porque todas as outras canetas são da mesma empresa. Não tinha concorrência. Ainda acredito que aqui no Brasil vai chegar com um valor mais competitivo, porque o Ozempic nos Estados Unidos custa quase mil dólares. Aqui, é quase mil reais", pondera. Além do Ozempic, as canetas Victoza e Saxenda, que são a liraglutida, pertencem ao laboratório dinamarquês Novo Nordisk. >
Importação >
Um dos possíveis caminhos para o Mounjaro é contratar uma assessoria para importação de medicamentos - ou seja, uma empresa que cuida dos trâmites para a importação. Na Medex Brasil, 12 processos de compra de tirzepatida já foram concluídos, segundo o gerente comercial da empresa, Elias Souza. >
Além disso, as cotações para o medicamento têm crescido. "Sempre que um medicamento surge no exterior, começa a procura por ele aqui. No caso desse, especificamente, desde o segundo semestre do ano passado, as cotações têm se intensificado", diz. >
A logística para trazer o Mounjaro, contudo, é um tanto diferente de outros medicamentos porque ele precisa estar refrigerado durante todo o percurso. Essa exigência reflete no preço do frete, que custa, no mínimo, US$ 160. Assim, a caixa com quatro canetas - ou seja, o tratamento suficiente para um mês - fica em torno de R$ 10 mil. Se a pessoa quiser comprar mais caixas de uma vez, consegue diluir o valor do frete e baratear o preço final. >
Uma vez que a encomenda chega ao país, passa pela fiscalização da Receita Federal e da Anvisa. Uma vez liberada, segue até o endereço do paciente. O processo inteiro dura entre 20 e 30 dias, dependendo de onde a pessoa more. >
"Gente do Brasil inteiro tem entrado em contato. Alguns mencionam que é para controle de diabetes, mas a maior parte é buscando a perda de peso", acrescenta Souza, que recebe pedidos por email, whatsapp e pelo site. >
Trâmites >
Em nota, a Eli Lilly do Brasil informou que não realiza e não participa de processos de importação de medicamentos por pessoas físicas ou importadoras. Além disso, a empresa ressalta a importância de que o tratamento com a substância seja prescrito e acompanhado por um profissional de saúde.>
Antes da chegada do Mounjaro às farmácias brasileiras, a farmacêutica explica que é preciso finalizar passos como os trâmites de importação do produto e a definição do preço que será praticado aqui. O Cmed só indica o preço máximo, mas cada empresa pode estabelecer o seu valor. >
"É importante contextualizar que o crescimento do mercado global de incretinas injetáveis é sem precedentes e, antes de lançar Mounjaro em algum novo país, a Lilly realiza uma avaliação de mercado para garantir o fornecimento adequado do medicamento", dizem.>
Sem a previsão de quando começa a ser vendido, ainda não há registro de importação "em volume comercial" do produto, segundo a Receita Federal. As únicas ocorrências são de importação para uso em pesquisas - e todas as operações foram no estado de São Paulo. Ainda de acordo com o Fisco, em caso de fiscalização da bagagem de um viajante que apresente medicamentos, o passageiro é encaminhado à análise da Anvisa. >
Uma pessoa em tratamento de saúde pode importar um medicamento no país, desde que apresente documentos que comprovem que é para uso próprio. Segundo o advogado René Viana, especialista em direito médico, é preciso observar se algum dos componentes do medicamento compõem a lista de substâncias sujeitas ao Controle Especial da Anvisa. >
"Somente os medicamentos cujas substâncias estejam presentes na lista C1 da referida resolução poderão ser importados, quando não houver medicamentos semelhantes disponíveis no Brasil", diz ele, que é presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Bahia (OAB-BA). Alguns exemplos da lista são antidepressivos como o citalopram e anestésicos como o propofol. >
No caso do Mounjaro, o advogado explica que o fato de o medicamento ter sido aprovado pela Anvisa implica dizer que ele passou por uma avaliação criteriosa de qualidade, segurança e eficácia. "No entanto, por não se tratar de uma medicação fabricada no Brasil, ainda persistem algumas etapas referentes ao processo de importação que precisam ser cumpridas pela empresa detentora do registro para que o medicamento, de fato, esteja disponível para compra no Brasil". >
Ainda que a tirzepatida tenha sido aprovada para uso de diabetes tipo 2 no país, não significa que não é possível importá-la para pacientes com quadros de obesidade. Segundo Viana, em geral, a interpretação das autoridades sanitárias quanto ao uso 'off label' (ou seja, que não segue a bula) costuma ser restritiva. Assim, a importação pessoal com um objetivo diferente do que foi aprovado pode ter restrições. >
"Todavia, esse obstáculo pode ser contornado por via judicial, a partir da interpretação de julgados do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem a validade da prescrição médica para uso off label, quando o medicamento já se encontra aprovado pela Anvisa". >
De acordo com o órgão federal, os documentos que devem ser apresentados incluem a declaração de uso com a responsabilização do paciente pelo transporte e acondicionamento do material; o relatório médico e a prescrição emitida por profissional de saúde habilitado com a quantidade a ser importada.>
Através da assessoria, contudo, a Anvisa destacou que medicamentos comprados no exterior, por pessoa física, são considerados não regularizados. Assim, eles não tiveram a segurança e a eficácia avaliadas pela agência, podendo causar reações adversas inesperadas. O uso, portanto, é de responsabilidade do usuário e do profissional prescritor. >
"Orientamos que o usuário busque, inicialmente, medicamentos devidamente registrados junto à Anvisa, cuja segurança e qualidade foi avaliada, e para os quais o detentor da regularização no país possui a responsabilidade por sua comercialização e disponibilidade ao consumo", acrescentam. >