Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Carolina Cerqueira
Publicado em 15 de fevereiro de 2025 às 05:00
A 230 metros da Igreja de São Francisco, outro desastre envolvendo um patrimônio tombado se esconde atrás da fachada. Os casos são parecidos. Em ambos, o teto da igreja desabou. A diferença é que a Igreja de São Miguel, na Rua Frei Vicente, começou a ruir em 2015, quando foi fechada por precaução. Depois de 10 anos, o local segue interditado, em estado muito pior. >
Os diversos desabamentos de partes do teto foram acontecendo aos poucos e foi em 2019 que a Prefeitura interditou oficialmente o local, onde já não havia mais circulação de pessoas por medo de um acidente. Em 2022, o CORREIO noticiou o caso. Em uma comparação entre as fotos feitas na época e as registradas na última quarta-feira (12), o efeito do tempo nos danos fica nítido. >
Essa era e continua sendo, justamente, a preocupação do presidente da Ordem Terceira de São Francisco, Jayme Baleeiro. Com parte da igreja sem nenhuma proteção, as consequências do sol e da chuva são agravantes. >
Agora já quase não é mais possível ver o chão, que está coberto por escombros. A parte do altar que sustentava a cruz principal não existe mais. O buraco aberto no telhado, logo acima, está muito maior. A lápide que anunciava o local onde o corpo de Francisco Gomes do Rego foi sepultado está totalmente coberta. >
Uma foto antiga registra o que está escrito nela: “Francisco, grande pecador e indigno fundador desta capela, pede misericórdia a seus irmãos terceiros”. Foi ele quem doou a igreja à Ordem Terceira, em 1744. Uma placa na fachada indica que a construção é de 1725, em estilo rococó, com materiais trazidos de Lisboa, em Portugal. O tombamento, a nível federal, aconteceu no ano de 1938. >
Angústia coletiva >
A Igreja de São Miguel pertence à Ordem Terceira de São Francisco. Já a Igreja de São Francisco, cujo teto desabou no dia 5 de fevereiro e culminou na morte de uma turista de 26 anos, pertence à Ordem Primeira. As duas instituições, no entanto, enfrentam problemas parecidos diante de construções históricas sob suas alçadas. >
E não estão sozinhas. Após a tragédia do último dia 5, uma operação da Defesa Civil de Salvador (Codesal) com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) interditou mais sete igrejas na cidade por problemas estruturais: a da paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem; igreja Nossa Senhora da Ajuda; igreja e Convento dos Perdões; igreja de São Bento da Bahia; igreja dos Quinze Mistérios; igreja da Ordem Terceira do Carmo e convento Santa Clara do Desterro. >
Para obter recursos para manutenção ou obras de recuperação, as igrejas dependem de órgãos como o Iphan, da iniciativa privada ou da arrecadação de recursos próprios. Os custos não são nada baratos. >
Altos custos >
O restauro dos azulejos da Igreja de São Francisco, que foi feito em 2023, custou R$4,2 milhões, segundo o próprio Iphan. Mas os recursos nem sempre chegam. Para a Igreja de São Miguel, da Ordem Terceira, foi feita uma solicitação de patrocínio em 2020, através do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), para o programa do Ministério da Justiça chamado Fundo Nacional de Direitos Difusos. >
A solicitação foi negada. “Eles queriam os projetos de engenharia todos prontos, mas qualquer empresa cobra para isso. Então, para solicitar recursos, você tem que ter recursos. Não temos meios nem para pagar o projeto inicial”, explica Jayme Baleeiro. >
Outras necessidades de reparos que surgem pelo caminho, apresentando risco iminente e sem alternativas de segurança, acabam ganhando prioridade. Outra igreja sob a alçada da instituição, a Igreja da Ordem Terceira, precisou passar por uma obra em 2022 depois que uma parte da fachada lateral caiu, levando à interdição da rua. >
O engenheiro responsável pela obra, João Gualberto, conta que o custo foi de R$120 mil. O orçamento foi feito em março de 2022 e a autorização do Iphan foi dada em julho. “O processo é demorado. O tempo entre a solicitação e o início da execução é muito grande. Eles exigem uma série de documentações, detalhes da parte técnica, reuniões”, conta João, que é mestre em engenharia civil e atua na gestão de obras de reforma, construção e recuperação de estruturas. >
Tombamento >
Jayme Baleeiro explica que qualquer intervenção, em um patrimônio tombado a nível federal como a Igreja de São Miguel, precisa ser autorizada pelo Iphan. “O tombamento, na prática, significa uma restrição ao direito de propriedade. A Ordem Terceira continua dona do imóvel, mas não pode desfigurar, descaracterizar ou reformar sem a autorização dos órgãos competentes”, diz. >
Em entrevista ao CORREIO no dia seguinte ao desabamento do dia 5 de fevereiro deste ano, o Frei Lorrane Clementino, um dos responsáveis pela Igreja de São Francisco, comentou a questão: “Não é qualquer lugar, não é a sua casa que você reforma quando você quer. Para a gente fazer qualquer intervenção tem que ter autorização dos órgãos competentes. Não é quando e como a gente quer.” >
Padre Edílson Bispo, membro da comissão da Arquidiocese responsável pelos bens culturais da instituição, diz que órgãos como Iphan e Ipac realizam intervenções. “A questão é que, para cada caso, é preciso um projeto, que é demorado e custoso. Também tem a questão de encontrar profissionais qualificados porque não é qualquer pessoa que pode fazer o restauro de um patrimônio tombado”, coloca. >
Busca por recursos >
Na Casa dos Santos, que fica na Igreja da Ordem Terceira, uma placa informa que ali foi feita uma obra de duração de nove meses, pelo Iphan, em 2004, através do Programa Manumenta. O diretor da Ordem Terceira, Jayme Baleeiro, pondera que as intervenções são pontuais e os patrimônios estão constantemente precisando de reparos. >
“É um prédio de 300 anos, você não pode dizer que tudo está ok, está sempre precisando de manutenção”, alerta. Quando o CORREIO foi até o local, esta semana, o engenheiro João Gualberto fazia uma vistoria para gerar um relatório com as principais necessidades, elencadas por ordem de urgência. “Sabemos que se trata de uma instituição com escassez de recursos, então trabalhamos com o que apresenta algum risco”, diz o engenheiro. >
Jayme Baleeiro explica que o valor arrecadado com as visitações que custam R$10 são insignificantes para obras que chegam a custar um milhão de reais. “Esse dinheiro vai, praticamente, para manter a igreja aberta. São nove funcionários, além dos custos de água, luz, manutenção dos banheiros”, coloca. >
Ao todo, a Ordem Terceira tem cerca de 80 funcionários e a maioria dos recursos, arrecadados através da visitação, aluguéis de imóveis e administração de um cemitério e um estacionamento, é destinada ao Lar Franciscano Santa Isabel, que abriga cerca de 40 idosos e tem um custo médio de R$250 mil por mês, segundo a própria Ordem Terceira. >
Padre Edílson explica que a Arquidiocese não tem condições de auxiliar todas as igrejas. “Nós temos organizações internas. Alguns patrimônios pertencem a irmandades, outros a congregações, outros a instituições ou associações. Uma parcela, que são as paróquias, pertence, de fato, à Arquidiocese. A manutenção é responsabilidade de cada grupo responsável”, diz. >
“Nós vivemos de doações; algumas instituições têm patrimônios próprios, mas os recursos da Arquidiocese não são suficientes. Em outros tempos, recebíamos recursos de fora, de países da Europa, mas hoje são outros tempos e esses recursos praticamente não existem mais”, completa. >
Questionado, o Padre não informou quantas igrejas estão precisando de manutenção ou restauro. Segundo ele, em março deste ano, será feita uma lista com as demandas de manutenção e restauração das igrejas de Salvador. “Serão realizadas visitas nas unidades para o levantamento de dados concretos”, finalizou. >
Turismo >
Com o fechamento da Igreja de São Francisco e ainda de mais cinco igrejas após a vistoria da Codesal e do Iphan, os guias turísticos, enquanto representantes dos visitantes, demonstram preocupação quanto à preservação dos patrimônios da cidade. >
"A gente torce para que não só fechem, mas que façam alguma coisa. Sempre guio turistas que questionam o estado dos locais que visitamos e pelos quais passamos, perguntam por que autoridades deixaram chegar àquele ponto. Agora estamos visitando as igrejas e torcendo para que elas estejam seguras", diz Ana Lavigne, guia há 23 anos. >
"A cidade de Salvador perde muito com isso. Infelizmente, foi preciso acontecer uma tragédia para começarem a fazer alguma coisa. E esperamos que realmente inicie um movimento de um olhar mais cuidadoso para o patrimônio porque é o diferencial de Salvador. Praia tem em todo lugar do mundo, o Pelourinho só tem aqui", completa Ana.>
O Iphan foi procurado pelo CORREIO e questionado sobre a periodicidade das vistorias em patrimônios tombados e a disponibilização de recursos para manutenção e reparos, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.>
O órgão também foi questionado, especificamente, sobre vistorias e intervenções na Igreja de São Miguel. A Codesal foi questionada se há risco de desabamento total da igreja, comprometendo até mesmo os imóveis ao redor, mas se limitou a dizer que o local foi interditado em 2019.>