Esse enterro virou uma festa: a polêmica de convidar a alegria para um velório

Cortejo fúnebre de músico em Cachoeira viralizou nas redes sociais e rendeu críticas e elogios

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 21 de julho de 2024 às 05:00

Cortejo do corpo de Mestre Bala, em Cachoeira
Cortejo do corpo de Mestre Bala, em Cachoeira Crédito: Reprodução/Redes Sociais

É permitido convidar a alegria para um velório? Essa foi a pergunta que pairou no ar depois que um cortejo fúnebre (que de fúnebre não tinha nada), em Cachoeira, instaurou uma polêmica em todo o estado. Com música e cerveja pelas ruas da cidade, a cerimônia virou Carnaval e rendeu críticas aos familiares, que se defenderam dizendo que era da vontade do morto. Se o dito popular estipula que tudo na Bahia acaba em festa, faça-se cumprir, literalmente.

Foram cerca de 1.500 pessoas nas ruas, cantando e dançando em homenagem a Mestre Bala, músico e figura icônica do município que morreu aos 70 anos, vítima de câncer. A filha dele, Diamila Rodrigues, de 37 anos, conta o que o pai pediu antes de falecer.

“Ele sempre falou que, no dia que partisse, não queria tristeza, mas, sim, muita alegria e festa. Porque ele era isso em vida. Quem conhecia ele e era da cidade, compreendeu. Mas muita gente de fora criticou”, conta a técnica de enfermagem.

Diamila não esconde que ficou abalada com a perda, mas explica que preferiu não se render à tristeza e cumprir a vontade do pai. “Eu não consegui viver a festa e o dia seguinte foi o mais difícil. Mas não deixei que houvesse tristeza porque meu pai continua vivo, sua história e seu legado continuam nas pessoas e nos lugares que ficam”, acrescenta.

A história de Mestre Bala se cruza com a de Dona Cabeluda, também de Cachoeira. Ela morreu aos 80 anos, em maio deste ano. Era conhecida por todos como a dona do brega mais famoso da cidade. Cabeluda também ganhou um cortejo diferente de despedida, com carro de som e a presença do cantor preferido dela, Danton do Acordeon, que cantou para o público na ocasião.

Os dois vão deixar marcas na história e esse pensamento positivo de que por isso vão continuar vivos de certa forma, como apontou Diamila, tem grande influência sobre a forma de lidar com a perda e fazer a cerimônia de passagem. Para Ana Lúcia Faria, de 55 anos, adepta do espiritismo, o velório tradicional e o apego ao corpo não fazem sentido, já que haverá reencarnação.

“Para mim, é quase uma tortura presenciar. Eu não gosto de ver a pessoa no caixão, prefiro guardar a imagem dela feliz, em vida”, diz.

Quando assistiu ao vídeo do velório de Mestre Bala, Ana Lúcia se animou e tratou de encaminhar à filha, com o pedido de que queria um igual.

“Na minha vez, não vou querer ver ninguém chorando. Quero que as pessoas façam uma homenagem a mim que faça sentido. Eu adoro Carnaval, então podem colocar meu caixão em cima de um trio elétrico com músicas de axé das antigas”, compartilha ela, rindo.

O historiador João José Reis, autor do livro A morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século 19, explica como o modelo de velório e enterro que temos hoje vem da “dessacralização da morte” - que teve início no Iluminismo europeu e foi “lentamente minando o modelo barroco de celebrar a morte.” “Contava o número e a qualidade de missas mandadas rezar pelo defunto e a roupa mortuária”, realçando que um enterro “completo”, custava muito dinheiro.

Em culturas africanas e indígenas, o entendimento da morte também é diferente, a partir da vertente da ancestralidade. É o que explica o doutor em teologia pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha, Antônio Magalhães.

“Para as tradições africanas, em geral, os mortos continuam a participar da vida dos vivos, são incorporados, recebem oferendas. Nas tradições indígenas, os mortos vão estar presentes na natureza. Ailton Krenak [escritor indígena] fala das árvores enquanto seus avós”, reflete.

A partir de raízes indígenas foi criado o Día de Los Muertos, no México, no dia 2 de novembro. O clima é de festa, com pessoas decorando casas e saindo fantasiadas de caveiras nas ruas. Tem dança, comida típica e muitas cores vivas. Segundo a crença, é neste dia que as almas vão visitar seus entes queridos e a festa é feita para recepcioná-las bem.

Desfile do Día de Los Muertos, no México
Desfile do Día de Los Muertos, no México Crédito: Shutterstock

Já a partir de raízes africanas, surgiu o gurufim, um velório transformado em roda de samba. A tradição é forte entre os sambistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Assim aconteceu, em 2019, com o velório de Beth Carvalho. Pode até ter choro e vela, mas não pode faltar muito samba no pé.

No último dia 14, o jornalista Sérgio Cabral, que morreu aos 87 anos, ganhou licença poética no Rio para ter uma roda de samba em seu velório. Vascaíno e entusiasta do samba, o caixão dele foi coberto com a bandeira do Vasco e das escolas Portela e Mangueira. A cerimônia foi embalada pelo som dos colegas e amigos, como a canção “Meninos da Mangueira”.

Velório do jornalista Sérgio Cabral
Velório do jornalista Sérgio Cabral Crédito: Reprodução/TV Globo

“Todas as culturas criaram mecanismos de proporcionar um bom destino para seus mortos, assim como de consulta a eles [...] Comer e beber com os mortos representam outras tantas formas de comunicação com eles”, explica Reis.

Festas como essas associadas à morte podem chocar muita gente, como o funcionário Paulo Pereira, de 53 anos, da Funerária Andrade, em Santo Antônio de Jesus. Ele conta que se assustou certa vez com um velório de um cigano. “Eu cheguei para trabalhar de manhã e ouvi a cantoria, nunca vi tanta comida na minha vida. O povo virou a noite comendo e bebendo, fizeram até fogueira, era clima de festa mesmo. Eu nunca tinha visto nada parecido”, lembra.

Já Juliana Pereira, de 26 anos, funcionária da Funerária J Silva, em São Félix, conta que por lá o máximo que presenciou foi uma roda de capoeira em volta do caixão do morto, que era capoeirista. “Os colegas foram com aquelas calças de capoeira, berimbau e pandeiro nas mãos. Cantaram e jogaram capoeira, suspenderam o caixão. Foi bem bonito de ver”, conta.

Em maio deste ano, o velório do irmão de Alessandro Teixeira, de 47 anos, deveria seguir esse padrão, reproduzindo na hora H o que o falecido gostava de fazer em vida. Mas Alessandro teve medo das críticas. “Meu irmão queria que todo mundo abrisse uma latinha, fizesse um brinde e bebesse cerveja. Por mim, faríamos isso, mas eu não estava preparado psicologicamente para lidar com as críticas que viriam”, confessa.

Depois do velório e do enterro tradicionais, o núcleo mais íntimo da família fez um brinde discreto em casa mesmo. Não seria a primeira vez que chocaria a população tentando quebrar tabus em momentos mórbidos. Quando o pai de Alessandro morreu, em janeiro, ganhou uma lápide diferente, que virou até matéria de jornal. “Vá pra porra todo mundo” foi a frase escolhida para ficar gravada.

Lápide de Antônio
Lápide de Antônio Crédito: Arisson Marinho

Era o que melhor representava o pai, irônico e piadista. A frase provocou descontração no momento delicado, fez muita gente rir, mas também desencadeou críticas. “É lógico que a pessoa pode sofrer, existe a dor da perda. Mas não precisamos escancarar essa dor, não precisamos provar nada para ninguém”, diz Alessandro.

O pensamento dele vai de encontro à profissão milenar das carpideiras. Na bíblia é possível encontrar trechos que fazem referência a essas mulheres, que eram contratadas para chorar em funerais. A justificativa está no pensamento de que, quanto mais choro, mais querida era a pessoa. A presença de coroas de flores segue a mesma lógica.

Na avaliação do doutor em teologia Antônio Magalhães, este é o reflexo de uma sociedade hipócrita. “O que chama a atenção no vídeo do cortejo de Mestre Bala é que se escancarou a alegria num momento que costumamos reprimi-la. Porque vivemos numa sociedade hipócrita, de um modo geral. Publicamente, só se deveria permitir o choro nestas horas, mas isso é hipocrisia, às vezes é só aparência”, diz.