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Thais Borges
Publicado em 17 de novembro de 2024 às 07:05
A escritora Sara Gusella, 25 anos, passou boa parte da adolescência escutando que livros como Harry Potter eram coisas ‘do diabo’. A experiência de crescer na igreja, contudo, sempre andou de mãos dadas com seu interesse pela fantasia, pela mitologia e pela cultura nerd. “Tinha aquele conflito”, lembra. Ela só não imaginava que, anos mais tarde, se tornaria um dos principais nomes da chamada ficção cristã no Brasil, escrevendo justamente sobre fantasia.
“O cerne da fantasia cristã é entender a fantasia como metáfora, como instrumento de percepção da realidade e até de desejo do que a realidade pode se tornar. Na Bíblia, a gente vê várias menções bonitas que poderiam ser contadas como fantásticas”, acrescenta, citando um versículo no livro de Romanos que afirma que a natureza espera que os filhos de Deus sejam revelados. Sara é a fundadora da Feira de Ficção Cristã e Cultura (Feficc), que reuniu mais de 11 mil pessoas em julho, em São Paulo, em sua terceira edição.
Do ano passado para cá, a ficção cristã cresceu tanto que saiu da bolha. Da fantasia ao romance, passando pelo suspense e pela ficção científica, livros com valores evangélicos e católicos atraíram o interesse tanto de quem lê ebooks publicados de forma independente quanto das editoras tradicionais. Plataformas de autopublicação como a da Amazon e até o Wattpad, famoso pelas fanfics, ajudaram a disseminar novos autores.
No Google Trends, que identifica tendências de pesquisa, o interesse por livros de romance cristão aumentou 400% nos últimos cinco anos. No mesmo período, a ficção cristã teve dois picos de impulso de pesquisa: em 2021 e em 2023. Outro ponto alto das pesquisas foi em setembro, durante a Bienal do Livro de São Paulo. A ficção cristã teve até uma mesa na programação oficial da feira, que é o maior evento cultural da América Latina.
Até editoras seculares, como a Verus, focada em romances, têm investido em grandes nomes do setor. Em agosto, a editora lançou Essa Dama é Minha, título da americana Francine Rivers, uma das referências mundiais em ficção cristã. A editora já tinha publicado Amor de Redenção, também de Francine, em 2011. Mas, para a editora da Verus Ana Paula Gomes, o momento atual é diferente.
“Um terço da população do Brasil é evangélica. A gente vê esse momento da produção cultural voltada para esse público não só na literatura, mas na cultura de forma geral. Esse público vinha ficando relegado a um segundo plano, mas, de uns anos para cá, a gente tem visto isso mudar um pouco. A gente está interessada em atender”, diz.
Estratégia
Apesar da tendência de crescimento nos últimos meses, de fato, a ficção cristã já está por aí há algum tempo. Até então, contudo, os principais expoentes do segmento sequer eram tão conhecidos como representantes do gênero. Só para dar uma ideia, alguns dos maiores exemplos internacionais são As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, e A Cabana, de William P. Young - ambos já adaptados para o cinema.
As Crônicas de Nárnia formaram uma trilogia blockbuster na primeira década dos anos 2000, produzida pela Disney, enquanto A Cabana ganhou uma adaptação audiovisual em 2017. Setembro, este último foi adicionado ao catálogo da Neflix e chegou a ocupar um lugar entre os 10 filmes mais vistos do streaming naquele período. Mas, provavelmente, muitos dos leitores das duas obras não fazem ideia de que elas podem ser incluídas nesse guarda-chuva.
De forma geral, a ficção cristã é definida por ter ensinamentos cristãos no texto, mas sem fazer proselitismo. Na Thomas Nelson Brasil, editora focada em livros cristãos e bíblias, as obras de ficção sempre existiram, mas eram títulos "de oportunidade", na avaliação da editora da empresa, Brunna Prado.
Não havia nenhum tipo de estratégia específica. Quando as vendas de algum estouravam, não existia associação com o termo ‘ficção cristã’. "Quando chamava de ficção cristã, não deslanchava. O que a gente foi percebendo é que, quando uma coisa se chamava de ficção cristã e tinha uma moral muito presente na capa, pregação disfarçada, eram de convertimento e não de entretenimento. Isso foi verdade por muito tempo", lembra.
Nos últimos anos, por outro lado, houve um movimento orgânico. Primeiro porque a ficção geral vive um momento de ascensão no mercado brasileiro, especialmente com o público ‘YA’ (young adult, ou jovem adulto, na tradução do inglês), que é um dos que mais se interessa por eventos literários. Ao mesmo tempo, leitores cristãos queriam ler livros com os quais se identificassem.
"Acho que muitas dessas pessoas passam a se perguntar: o que eu faço para ter uma literatura divertida, gostosa, mas que não vai ter nenhum valor que eu não acredite ou que não reflita coisas que não sejam as minhas? Essas pessoas começaram a escrever essas histórias no Wattpad e foram se encontrando. Depois, quando a Amazon e o Kindle Unlimited facilitam a autopublicação, esse movimento ganha corpo", explica.
Surge, assim, uma nova geração de autores nacionais - muitos nascidos nos anos 1990 - e que passa a produzir seus próprios livros. Atualmente, essa nova leva de escritores já tem se tornado referência para uma faixa etária ainda mais jovem. Na Thomas Nelson Brasil, a equipe começou a perceber esse fenômeno e fazer os primeiros movimentos no final de 2022. Brunna conta que começaram a entrar em contato com os autores e, aos poucos conhecendo essa nova comunidade.
Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, no ano passado, a ficção cristã foi a mais vendida no stand da editora. Em 2024, a estratégia foi mais agressiva, com o lançamento de um livro por mês, desde maio, e, no próximo ano, ela espera dobrar o número de autores. Atualmente, a ficção cristã responde por 16% das vendas da editora e é o segmento que mais cresce, depois das bíblias.
"Esse trabalho é apoiado pelo trabalho de autores internacionais também. Nos Estados Unidos, a ficção cristã tem um mercado literário consolidado, com diversidade de gênero e de autores. No Brasil, esse mercado está sendo construído. Poder trazer essa referência ajuda a alimentar, mas estamos centrados no nacional, que é quem vestiu a camisa e mostrou para a nova geração, na internet, que existe ficção cristã, que ela é literatura e é entretenimento".
Livrarias
No mercado editorial, há certo consenso de que esse fenômeno é novo. A editora Mundo Cristão é outro exemplo de uma casa que começou a pulicar ficção cristã a partir de junho do ano passado. O primeiro título foi Corajosas: os contos das princesas nada encantadas, que traz contos de fadas em linguagem moderna e com valores cristãos.
O título é assinado por quatro autoras: Arlene Diniz, Maria S. Araújo, Queren Ane e Thais Oliveira. Em um ano, a obra vendeu mais de 100 mil exemplares.
"Por causa do investimento das grandes editoras nesse segmento, a diferença é que são autores jovens, na faixa dos 20 ou 30 anos, que cresceram lendo muita literatura. Por gostarem de literatura, decidiram começar a escrever", diz o editor da Mundo Cristão, Daniel Faria.
Ele admite que esse movimento foi que começou a chamar a atenção das editoras. Tal como a Thomas Nelson, a Mundo Cristão decidiu ir atrás dessas autoras e publicar seus livros no formato profissional. Desde então, eles publicam um novo livro de ficção cristã por mês.
O público alvo começa com adolescentes entre 12 e 16 anos. "Os resultados têm sido muito superiores aos dos outros gêneros. Esse me parece ser o público para o qual as editoras precisam dar uma atenção maior, porque são consumidores e são apaixonados por leitura", pontua.
A presença da ficção, hoje, chega a um quarto das vendas da editora. Para Faria, o desempenho dos lançamentos vai até na contramão do restante do resto do setor. "O mercado tem tido dificuldade para emplacar lançamentos, desde a pandemia. As pessoas compravam aquilo que elas conheciam. No nosso caso, teve um crescimento significativo por causa da ficção cristã", acrescenta.
Ele atribui parte do sucesso também à força dos pontos de venda. Ainda que esses livros tenham uma presença forte nas redes sociais, também contaram com as livrarias físicas. "Se esses livros dependerem exclusivamente da divulgação em redes sociais, vão ter uma vendagem significativa, um público fiel que gosta de comprar livros, mas vão bater no teto”.
Isso porque ainda existem muitos leitores que vão às livrarias sem a intenção de comprar um livro específico, mas procurando por algo que se destaque. Um dos livros da editora, Meu Sol de Primavera, de Queren Ane, é um desses que chama atenção: a capa traz uma menina negra circundada por flores.
"Quando você bate o olho no livro, no ponto de venda, basta esse primeiro contato. As capas são muito alinhadas ao que se faz de melhor na literatura infantojuvenil. À medida que a adolescente vai lendo, vai percebendo que há valores e lições cristãos, mas não é feito como literatura evangélica. Quando a gente vai numa livraria secular, os livros evangélicos ficam num cantinho da livraria. Mas esses livros estão agora ocupando espaços de ficção ou ficção juvenil, que são espaços nobres", pontua.
Geração
Uma dessas autoras foi justamente Sara Gusella, que assina títulos como Os Clãs da Lua e A Escolha do Verão, ambos publicados pela Thomas Nelson Brasil, além de cinco ebooks disponibilizados na loja da Amazon. Em Os Clãs da Lua, a trama se passa em um futuro em que a terra se tornou inabitável e humanos vivem na lua. A história segue a princesa Taluya, que foi escolhida por uma força ancestral para mudar o destino da sociedade em que vive.
De acordo com Sara, a ideia é que sejam histórias que abordem a fé, mas não deixem de ser uma boa narrativa. "O que a gente viu antes, na produção cultural e artística evangélica, é que era focado em um público de dentro, como os filmes que eram uma pregação. Com a ficção cristã, a gente se propõe a ser diferente e a criar histórias excelentes até para quem não tem esses valores".
Ela criou a Feficc há três anos e, no início, a ideia era algo simples. Sara tinha acabado de viver a experiência de ter contato com o público durante a Bienal do Rio de Janeiro, em dezembro de 2021. "Voltei para Belo Horizonte, onde eu moro, com esse desejo: por que não proporcionar essa experiência para escritores e leitores de ficção cristã?", conta.
A primeira edição, em 2022, teve 20 expositores e um público de cerca de 900 pessoas. Já agora, em 2024, o evento aconteceu pela primeira vez em São Paulo e foram 22 editoras expondo, 57 autores independentes e o público chegou a 11 mil pessoas. "O cristão sempre fez parte do público leitor, que ia em bienais, em feiras de cultura pop. Esses leitores estavam desejosos de ter um evento como esse e a Feficc vem para sanar um pouco essa demanda".
Uma das autoras de Corajosas, a escritora Thaís Oliveira teve contato com a ficção cristã ainda no início dos anos 2010, na adolescência. Mas, como leitora de romances, começou a sentir falta de personagens com os quais se identificasse. Foi assim que decidiu escrever e, em 2016, publicou Meninas Adoradoras, seu primeiro livro.
No início, o livro Corajosas também veio de forma independente, como ebook na Amazon . As quatro autoras se conheciam do Wattpad, porque escreviam para adolescentes, até que se encontraram pessoalmente na Bienal do Livro de São Paulo, em 2018. "Foi surgindo a ideia de escrever um livro em que as princesas fossem garotas cristãs comum. A gente só conseguiu começar em 2020 e crescemos como amigas", conta.
Thaís e as outras autoras, contudo, defendem que Corajosas não é apenas um livro, até por ser chamado por elas de ‘ministério’. A ideia é, no futuro, criar uma plataforma que inclua palestras e workshops. Para ela, é possível evangelizar pela literatura, já que considera que a mensagem está presente de forma sutil. "Pelos relatos que a gente recebe, é impossível não ver os efeitos espirituais na vida das meninas", explica.
Romance
O romance cristão, assim como todos os outros subgêneros da ficção cristã, tem enredos e arcos baseados nos valores cristãos. Alguns se inspiram diretamente em passagens bíblicas, como lembra a editora da Verus, Ana Paula Gomes.
Quem olha apenas as capas coloridas, que são uma marca dos livros de romance de hoje em geral, pode nem perceber de que é um tipo de romance diferente. A maior diferença é que os livros não têm cenas de sexo. "A gente viu um crescimento grande da comédia romântica e são livros que geralmente trazem cenas de sexo; algumas um pouco mais ou um pouco menos explícitas. No romance cristão, não tem isso", pontua.
Escritora de romances cristãos, a autora Camila Antunes começou com uma distopia. No entanto, o romance sempre foi seu gênero preferido. Ela lançou Deixa Nevar pela Thomas Nelson este ano e o livro se tornou um bestseller, tendo quase três mil avaliações na Amazon.
A história apresenta Vânia, uma designer de joias que conhece Marco Remi, um herdeiro que pede que ela desenvolva uma peça exclusiva. "Acho que o foco dos conflitos no romance cristão está em Cristo. O romance entre homem e mulher não é desprezado, mas sempre tem Cristo como centro do relacionamento", diz.
Essa dama é minha - Fracine Rivers (Editora Verus, 2024)
O livro conta a história de Kathryn Walsh, uma dama rejeitada pela sociedade que chega a Calvada, uma cidade mineradora situada na região da Sierra Nevada, após ser banida de Boston pelo padrasto. Ela chega com o objetivo de reivindicar a herança do tio. Dono de um saloon e de um hotel, Matthias Beck se interessa pela moça e reconhece nela mesma tenacidade do falecido City Walsh, tio dela.
Meu Sol de primavera - Queren Ane (Editora Mundo Cristão, 2024)
A obra apresenta Chér, uma menina de 15 anos que tem uma paixão intensa por um colega de classe. Ela sonha dar o primeiro beijo, ser pedida em namoro e viver um lindo romance. No enredo, quando aparece uma oportunidade de fisgar o garoto, Chér decide bolar um plano para conquistar o coração do crush e finalmente conseguir viver o romance tão desejado.
Corajosas - Arlene Diniz, Maria S. Araújo, Queren Ane e Thaís Oliveira (Editora Mundo Cristão, 2023)
A coletânea é uma releitura moderna de quatro contos de fadas. A Branca de Neve de Arlene Diniz quer concluir uma pesquisa científica. Queren Ane reinventa o Príncipe sapo, com Tati, que sonha ser chef. Maria S. Araújo cria uma Cinderela que perdeu os pais cedo e Thaís Oliveira traz Isabela, só tem os livros e sua gata, após a morte da mãe.
Os Clãs da Lua - Sara Gusella (Editora Thomas Nelson Brasil, 2024)
A obra apresenta os leitores a um futuro em que a Terra se tornou inabitável e a humanidade foi morar na Lua. Lá, encontraram os lunares, um povo parecido com os humanos, exceto pela pele prateada. A paz foi estabelecida, até que lunares instauram um império opressor. A vida da princesa Taluya dá uma reviravolta depois que ela descobre uma surpresa.
Deixa Nevar - Camila Antunes (Editora Thomas Nelson, 2024)
É um romance que apresenta a designer de joias Vânia. Ela conhece Marco Remi, herdeiro de uma das famílias mais ricas do país, quando ele vai até sua joalheria pela primeira vez devolver a peça mais exclusiva que ela já produziu - um anel de noivado. Os dois buscam consolo um no outro e uma fuga de seus problemas. Em meio a reviravoltas, Vânia precisa encarar as dores e superar a culpa.