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Thais Borges
Publicado em 22 de março de 2025 às 05:00
Quase um ano após a Revolta dos Malês, o diplomata americano Gideon Snow chegou a Boston, em 1836, carregando um crânio roubado. Vindo de Salvador, o então vice-cônsul dos Estados Unidos em Alagoas (que logo se tornaria cônsul do país em Pernambuco), gabava-se de estar portando uma espécie de troféu. Era a cabeça de um combatente do levante, liderado por africanos muçulmanos, que tinha tomado as ruas soteropolitanas em janeiro de 1835, contra a escravidão. >
Há quase 190 anos, o crânio desse combatente está em solo americano - mais especificamente, no acervo do Peabody Museum, o museu arqueológico da Universidade de Harvard. Mais do que isso: os restos mortais do guerreiro, que pode ter sido um dos líderes da batalha, estão no centro de uma discussão sobre racismo científico e sobre o papel que grandes instituições, tal qual Harvard, tiveram para a propagação das teorias racistas de eugenia. Agora, a universidade finalmente confirmou que pretende devolvê-lo ao Brasil. >
Nos últimos três anos, uma articulação entre pesquisadores e o Centro Cultural Islâmico da Bahia promoveu uma campanha por esse retorno. O diálogo com a universidade, contudo, foi infrutífero durante boa parte do tempo. O cenário só mudou com a entrada do governo brasileiro, especialmente do Itamaraty. >
Para a comunidade muçulmana na Bahia, o combatente malê era um irmão. “A gente está fazendo a nossa parte. Nenhum de nós conheceu ele (o combatente), mas ele é um ser humano e é muçulmano, então a gente precisa honrar isso. O Islã não permite que o corpo muçulmano fique em museu", explica o sheik Abdul Ahmad, que é o líder do CCIB. Iorubano, Ahmad é também um malê. >
Uma vez que retorne ao Brasil, o crânio deve passar pelos rituais fúnebres do islamismo para, em seguida, ser enterrado. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) confirmou à reportagem que o governo federal está “em tratativas com a Universidade de Harvard para estabelecer os trâmites da devolução e destinação final dos restos mortais". A universidade ainda se comprometeu a devolver outro crânio roubado do Rio de Janeiro, nos anos 1870. De acordo com a documentação, também tratava-se de um homem africano, que teria sido ‘retirado das ruas'. >
O processo e a mobilização de diferentes segmentos têm sido vistos por especialistas como um primeiro passo para fundamentar a repatriação de restos mortais roubados do Brasil que estão em outras instituições pelo mundo. Há indícios de que crânios de indígenas brasileiros são mantidos por museus na Europa. >
Diálogo>
A existência de um crânio malê no Peabody Museum foi descoberta em 2022, quando o jornal estudantil The Harvard Crimson revelou o conteúdo de um relatório interno da universidade. Segundo o documento, Harvard mantinha restos humanos de pelo menos 19 indivíduos escravizados e cerca de sete mil indígenas americanos. O texto destacava o que entendia ser um símbolo do “compromisso e da cumplicidade” da instituição com a escravidão e o colonialismo. >
Naquele mesmo ano, o historiador Christopher D. E. Willoughby publicou o livro Masters of Health, que dedica um trecho detalhado ao crânio malê. Ele aponta que a história da Revolta dos Malês e a diáspora africana na Bahia eram desconhecidas da maior parte dos estudantes de medicina que manusearam a cabeça. “Os alunos provavelmente viram como apenas mais um crânio africano em uma prateleira cheia de crânios de pessoas negras (tradução livre)", escreve.>
Foi neste contexto que o historiador João José Reis, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e maior pesquisador da Revolta dos Malês no mundo, soube do crânio. Seu livro Rebelião Escrava no Brasil, publicado originalmente em 2003, acaba de ganhar uma edição comemorativa revista e “bem pouco ampliada”, segundo o autor, pela Companhia das Letras. >
Reis lecionou em Harvard em 2012 e logo acionou a rede de contatos que tem na instituição. Ele se reuniu com pesquisadores da universidade para discutir, ainda naquela época, o que poderia ser feito para a devolução do crânio. No mesmo período, o professor buscou o sheik Abdul Ahmad e a socióloga Hannah Bellini, que desenvolve pesquisas com a comunidade islâmica na Bahia. >
“O sheik e Hannah continuaram a negociação (com a universidade), mas com longos silêncios, porque Harvard alegava que tinha um conselho ético que só se reunia de vez em quando. A gente não sabia como esse conselho funcionava, nem seus resultados nos eram comunicados”, conta o historiador. No ano passado, eles decidiram dar um nome ao grupo de trabalho: Arakunrin - que significa ‘irmão’, em iorubá. >
Em 2023, o professor Bruno Véras, que é docente na Universidade de Toronto e também passou a integrar a campanha, organizou um seminário em uma de suas aulas com a participação do professor João José Reis, do sheik Abdul Ahmad e da socióloga Hannah Bellini. >
Naquele evento, estava o diplomata brasileiro Jackson Lima, acompanhando a discussão. Em novembro de 2024, Véras promoveu novamente a sessão de aula e contou com a presença de dois outros participantes do debate: a diplomata brasileira Tatiana Teixeira, que atua no departamento responsável pela repatriação de bens culturais, e da diretora do Peabody Museum, Jane Pickering. “Até aquele momento, Harvard não estava nos considerando um interlocutor legítimo. A gente tinha percebido, mas não queria acreditar”, diz o professor João Reis. >
Uma vez que uma representante do Itamaraty estava no local, o diálogo mudou. “Quando ela (a diretora) viu que tinha se tornado uma questão de estado, ela passou a levar mais a sério nossa demanda. Após dois anos de diálogo, ela nos fez entender que não éramos interlocutores legítimos, o governo brasileiro sim”, acrescenta. Desde então, a negociação passou a ser feita entre Harvard e o Itamaraty. Os Ministérios da Cultura, dos Direitos Humanos e Cidadania, da Igualdade Racial e da Ciência e Tecnologia acompanham e podem atuar na questão no futuro. >
Cabeça>
O crânio malê foi inicialmente enviado por Gideon Snow a J. C. Hayward, um médico de Boston que doou os restos mortais à coleção da Boston Society for Medical Improvement, antes do ano de 1847. Essa coleção foi oficialmente incorporada pelo Warren Anatomical Museum em 1889. De acordo com o professor Bruno Véras, existem documentos no Peabody Museum que tratam da chegada do crânio, a exemplo de livros de entrada e de relatórios médicos. >
A descrição feita por Gideon Snow, em uma carta que acompanhava o crânio, diz se tratar de um “africano genuíno, da tribo Nagô, valorizado entre os outros negros por sua grande estatura, largura de ombros, simetria e força dos membros” (tradução livre). Snow citava especificamente que o homem tinha sido um dos líderes da revolta acontecida em janeiro de 1835. “Ele foi morto após um combate violento, a coragem da sua tribo sendo totalmente igual à sua força hercúlea”, acrescenta. >
O professor Bruno Véras, contudo, é cauteloso. “Teria mesmo sido ele um líder? A gente não sabe. Mas é interessante ele (Snow) ter apontado o papel dessa pessoa, porque outra informação que temos nesse documento é que a cabeça desse homem foi retirada ainda fresca, pouco depois de sua morte”, explica. >
A descrição de Snow dizia, ainda, que o homem foi atingido por um tiro de mosquete (uma arma semelhante a uma espingarda) e morreu no Hospício de Jerusalém - era assim que os hospitais eram chamados na época. O local funcionava como hospital e hospedagem para peregrinos, com a intenção de coletar esmolas e recursos para serem enviados a Jerusalém, para manutenção dos lugares cristãos sagrados em Israel. >
“A leitura que eu faço é que esse homem estava participando das batalhas, sendo líder ou não, porque as duas coisas são prováveis, e foi ferido de bala. Ele foi levado até essa instituição ou conseguiu, ele mesmo, ir até lá, onde morreu desse ferimento”, explica. >
Além de Gideon Snow, seu irmão, Theodore Snow, é considerado alguém com possível envolvimento com a retirada do cranio do Brasil. Theodore, um comerciante que também era pastor protestante, estava no Brasil em 1836 e passou pela Bahia. Ele era ex-estudante de Harvard e, segundo Véras, ainda tinha conexões na universidade. Gideon, por sua vez, morava em Recife, mas tinha negócios de açúcar na Bahia e sempre vinha a Salvador. >
"Theodore escreveu um manuscrito de viagem que estou analisando agora. Ele não cita o crânio, o que é interessante tambem. É semelhante ao que ocorreu com o crânio do Rio, que também não aparece na documentação oficial e nesses registros pessoais. Isso mostra que essas pessoas tinham ciência da contradição do que eles estavam fazendo. Eles sabiam que o que estavam fazendo era errado", diz. O crânio do Rio foi retirado durante uma missão científica oficial americana ao Brasil. >
Identidade>
Uma vez que o crânio chegar a Salvador, ele deve passar também por um teste de DNA. Segundo o professor João Reis, esse exame será feito pela Ufba. Uma amostra deve ser retirada e enviada para laboratórios que tenham acesso a bancos de dados de DNA ancestral.>
“Naquela época, não morreram apenas malês. Teve gente que morreu do outro lado também. Então, para ter certeza de que esse crânio pertence ou pertenceu a um indivíduo que foi escravizado num território onde existia um grupo muito importante de muçulmanos, isso será feito”, diz. Os planos também incluem fazer uma reconstituição facial que possa dar uma ideia aproximada. Mesmo com o teste de DNA, ainda não será possível afirmar que realmente seria de um líder da Revolta dos Malês, tal como afirma o bilhete de Gideon Snow. >
Para chegar à idade do combatente malê, contudo, é preciso continuar a pesquisa também com o Hospital de Jerusalém. Segundo Bruno Véras, houve um incêndio no local e boa parte dos livros de registro do hospital foram perdidos. O que foi recuperado foi enviado a outros arquivos religiosos de Salvador. >
"A gente já começou a fazer pesquisas sobre a existência dessa documentação em alguns lugares. Se algum livro de 1835 sobreviveu, provavelmente a gente encontraria o nome desse africano com ferimento grave de bala nos idos do final de janeiro". >
O crânio não fica exposto no Peabody Museum, mas está em seu arquivo - a chamada reserva técnica. Para pesquisadores terem acesso a ele, é preciso passar por um processo burocrático grande. "Nenhum brasileiro conseguiu ter acesso a ele ainda", acrescenta Véras. >
Essa demora tem a ver também com o tamanho de Harvard, na avaliação do historiador Carlos da Silva Júnior, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e também membro do grupo de trabalho. >
"Harvard, em certa medida, se considerou um Estado que só dialogava com outro Estado. Mas esse diálogo entre a universidade e o estado brasileiro é muito pertinente, pensando no papel que a escravidão teve no Brasil. Ter uma intervenção do Estado brasileiro é uma forma de reparação também - uma das muitas que o Estado brasileiro deve fazer". >
É marcante também que isso aconteça quando se completam 190 anos da Revolta dos Malês. De acordo com Silva Júnior, isso faz com que a repatriação não seja importante somente para a comunidade islâmica, mas para a História da Bahia. "Foi um dos eventos mais traumáticos não só da Bahia, mas das Américas. É a maior revolta urbana das Américas". >
Comunidade>
Os ritos fúnebres do islamismo incluem a lavagem do corpo, que deve ser enrolado em tecidos brancos chamados de mortalha. Depois da oração, o corpo é enterrado. >
"Para a nossa religião, a morte significa que a pessoa deixou a vida para trás e abriu o caminho para uma segunda vida. Temos que honrar essa pessoa", diz o sheik Abdul Ahmad. "Claro que não dá mais para dar banho no crânio, mas vamos honrar e fazer o que precisa ser feito: dirigir a oração para o crânio e enterrar no chão", completa. >
A socióloga Hannah Bellini, doutora em Cultura e Sociedade, explica que toda a solicitação de repatriação foi feita com base étnica e religiosa. "Não é o pedido de retorno de um bem cultural ou material simplesmente. No contexto americano, existe até uma legislação que informa como deve ser feito esse pedido", diz, referindo-se à norma para repatriação dos Native American, os indígenas americanos. >
Independentemente de o dono do crânio ter sido protagonista ou mero participante da Revolta dos Malês, ele era um homem muçulmano. Por isso, devem ser aplicadas todas as premissas que são aplicadas a qualquer outro muçulmano. >
"Tem a dimensão política da presença do islã na Bahia, que é indissociável desse protagonismo que eles tiveram. A Revolta dos Malês é central nessa história", pontua. >
Durante o levante, estima-se que cerca de 20% dos escravizados em Salvador eram malês. Nas décadas que seguiram à revolta, o islamismo quase desapareceu da paisagem religiosa local. "Só tivemos o retorno dos malês com a chegada de um grupo em 1988 e com a fundação do CCIBA, em 1993. A África, hoje, é 40% islâmica, enquanto a Nigéria é 52%. Essa é uma tradição que estabelece um elo pouco visível entre a Bahia e o continente africano, mas é uma tradição significativa para esse diálogo na contemporaneidade". >
O Peabody Museum não respondeu aos contatos da reportagem e o Itamaraty não respondeu se já existe um cronograma ou prazo final para a repatriação. Ainda assim, o processo vem sendo encarado como um movimento que pode inspirar novos pedidos de repatriação no futuro. "Consegui fazer um levantamento preliminar e há indícios de que temos alguns crânios indígenas na Europa, mas eles vêm de relatórios antigos. Uma pesquisa mais detalhada de procedência e alocação desses materiais humanos precisa ser feita e deve ser em várias línguas", explica o professor Bruno Véras. >