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Thais Borges
Carolina Cerqueira
Publicado em 21 de setembro de 2024 às 05:00
No tatame, o sujeito recebe um soco. O corpo reage, mas é a cabeça quem decide. Daí, pode vir um contragolpe bem pensado ou um ataque sem aviso. "A pessoa vai perceber que a maneira como ela responde também é a maneira como estabelece estratégias de relacionamento. Tem gente que se expõe demais e, em um ataque, vai para cima. Mas é um movimento em que você pode se machucar", explica a consultora em comunicação, escritora e aikidoka Olga Curado.
A preparação parece de um atleta nas Olimpíadas, mas é de um candidato para um debate eleitoral televisivo. Famosa por ter dado uma chave de braço no presidente Lula em 2006, enquanto o preparava para um confronto contra o então adversário e hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, ela alia fundamentos do aikido (arte marcial japonesa) com técnicas de comunicação. "Tem três elementos que considero essenciais: vitalidade, estratégia e técnica", acrescenta.
A preparação para os confrontos televisivos ganhou mais notoriedade após os polêmicos debates das últimas semanas. No dia 15, o confronto entre candidatos da cidade de São Paulo transmitido pela TV Cultura foi o bastante para gerar memes e preocupação com o futuro do formato depois que José Luiz Datena (PSDB) deu uma cadeirada no concorrente Pablo Marçal (PRTB). Menos de uma semana antes, no último dia 10, Donald Trump e Kamala Harris protagonizaram um debate acalorado nos Estados Unidos em que o republicano teve fake news desmentidas em tempo real pela emissora ABC News.
Cada um desses momentos - da corrida do jornalista Leão Serva, mediador da TV Cultura, ao ver a cadeira em ação até a falsa alegação de Trump de que moradores de Springfield, no estado de Ohio (EUA), estavam comendo cachorros - virou um vídeo numa rede social. Mesmo quem não estava assistindo provavelmente viu algum desses trechos, na forma de cortes escolhidos a dedo tanto por um lado quanto pelo outro.
“A agressão de Datena viralizou. E ninguém está nem aí para o resto. O foco era ver o circo pegar fogo”, pontua a pesquisadora Janyellen Martins, que cuja pesquisa do doutorado em Linguística na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) analisou elementos verbais e não verbais de debates televisivos. Em meio ao espetáculo dos políticos influencers, contudo, há quem questione se esse tipo de conteúdo se converte em voto. “Parece que saiu do controle. O foco é só ver o que vai viralizar. As propostas estão em segundo plano”, diz.
Com 35 anos de debates no Brasil, especialistas acreditam que o gênero se transformou. Para o pesquisador Fábio Vasconcellos, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), até o nascimento da internet, existia um ‘debate 1.0’. Agora, o que está sendo assistido é o debate 2.0.
“Ele é multitela, porque o eleitor não só assiste, mas comenta online. O debate repercute imediatamente no mundo digital. Os candidatos incorporaram isso, tanto que falam ‘veja lá na minha rede, publiquei na minha rede’. O debate não acontece só naquelas duas horas, mas também depois, nas redes, com as pessoas discutindo quem foi bem e quem foi mal”, diz ele, que é cientista político do Instituto Informa e pós-doutorando na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Treino
De fato, o debate não se restringe às duas horas de transmissão nem para os candidatos, nem para os profissionais contratados para assessorá-los. “A partir do momento que você entra na emissora, já está debatendo”, afirma a jornalista e media trainer Silvana Oliveira, que assessora candidatos nessa preparação há nove anos. Da mesma forma, uma hora após o debate, eles ainda precisam estar focados nisso. O treino de concentração mínima, portanto, é de três horas e meia.
Com seus clientes, ela faz treinos tanto em uma sala quanto em estúdio, para que se acostumem com as luzes. Para as candidatas, ela recomenda que esse treinamento seja com a roupa que vão usar no dia. “Se você perde a concentração, corre risco de se desequilibrar, de não apresentar suas propostas, de só responder à pergunta do outro e deixar o outro controlar a narrativa”.
Para Silvana, a essência da preparação para um debate não mudou, mesmo com os cortes para redes sociais. No caso de políticos, é preciso entender a história do candidato, bem como suas vulnerabilidades, e estudar os principais adversários. Os estrategistas da campanha definem o que é importante para cada cliente e, a partir dali, ela começa a treinar as pessoas para que as perguntas tenham 30 segundos, assim como as respostas de dois minutos, as réplicas e tréplicas.
Quando o cliente já fez algum treinamento de mídia, em até dois dias, é possível treinar para o debate. Se não tiver acontecido, Silvana estima pelo menos quatro encontros de duas horas para que a pessoa comece a pensar como deve fazer e como sair de perguntas delicadas.
“Todo mundo tem uma história e eu não estou falando de honestidade ou desonestidade. Eu, por exemplo, perdi minha mãe no meio da pandemia, por covid. Ela só tinha tomado a primeira dose da vacina. Isso sempre me desequilibra. Se eu fosse candidata, esse seria um ponto que o treinador teria que insistir comigo e de diversas formas diferentes”.
No treinamento da consultora de comunicação e aikidoka Olga Curado, é importante ter cuidado com a voz, garantir as horas de sono necessárias e a hidratação. Ela sempre recomenda que a pessoa faça algum tipo de atividade física e que tudo isso seja incorporado à rotina da campanha. Até sessões de reeducação postural global (RPG) podem ser indicadas, já que o debate exige que os candidatos passem muito tempo em pé ou sentados em bancos e cadeiras pouco confortáveis.
Além disso, ela aborda a parte comportamental, que inclui o entendimento da própria função do debate e para quem se está falando. “O que a gente tem visto em São Paulo é o desvirtuamento do debate”, opina. Para ela, a estratégia de viralizar pelos cortes, adotada por candidatos como Pablo Marçal, usa provocações com linguagem chula e acusações mentirosas. “É diferente do que vimos em épocas anteriores em que você muitas vezes tinha falas acaloradas, mas não com uma linguagem que não se adota numa sala de estar”, diz Olga.
Os fundamentos do aikido ajudam porque essa é considerada a arte da comunicação. Olga explica que não adianta achar que um vai destruir o oponente só por entrar no espaço do outro - pelo contrário: a vulnerabilidade é maior quando a pessoa sai do próprio espaço.
“Você precisa redirecionar o outro para onde você quer, mas, para isso, precisa estar relaxado. Quanto mais eu fico na argumentação do outro, mas eu estou no campo do outro. Quando você pratica isso no tatame, consegue enxergar que tem que entrar e sair. Você precisa fazer isso com os movimentos de corpo, porque não é só falar. Falar todo mundo fala”, acrescenta ela, que já teve, entre seus clientes, o atual primeiro-ministro português, Luis Montenegro.
Já no dia do debate, a palavra final para o estrategista político Paulo Maneira, que trabalha com campanhas há 24 anos, é descanso. É um momento em que outras atividades de campanha são retiradas da pauta, para que o candidato fique tranquilo. “Não acho justo e nem correto colocar muita informação em um dia na cabeça da pessoa. Tem que prepará-la ao longo da jornada”.
Há quem faça as perguntas aos candidatos, escutem as respostas e, depois, expliquem o que é interessante ou não. "O importante é fazer com que a fala seja fidedigna, ao invés de simplesmente escrever um modelo", diz uma consultora de marketing político que não quis se identificar e trabalha no interior da Bahia. "O ideal é ter dias de preparação, porque tem muitos candidatos despreparados para debate".
No interior, ela acredita que a polarização entre grupos é diferente do que acontece em outros municípios. Mesmo debates em rádio atraem atenção. "Tem cidade que é Bavi e, quando um perde, tem que sair da cidade. A galera aposta carro, terreno. Por isso, no meu ponto de vista, sempre existiu essa performance. Você ensaia, como se fosse um teatro, para falar da melhor forma. Só que hoje é mais amplificado e mais intencional".
Na internet
Para os candidatos, o debate continua sendo um espaço importante. No entanto, mudaram as estratégias para que o que eles digam durante o programa ganhe repercussão. Em 2008, o estrategista Paulo Maneira chegou a gravar em DVDs um debate transmitido pela TV a cabo. Ele distribuiu o material com trechos de seu candidato para formadores de opinião.
A ideia era fazer com que aquilo reverberasse. "Você precisa preparar o candidato tanto para falar o que a população precisa ouvir quanto para provocar e desestabilizar o adversário. Esse é um elemento que sempre existiu, não é invenção de (Pablo) Marçal".
No dia seguinte ao debate entre os candidatos a prefeito de São Paulo na TV Cultura, as redes sociais estavam repletas de memes e opiniões sobre o episódio publicados por usuários comuns, famosos e especialistas. Entre as análises, a da jornalista Roberta Camargo, que se diz ‘infoencer’ por publicar notícias e reflexões sobre elas, tinha como título “Política não é meme”.
No vídeo, Roberta classificou o embate entre Marçal e Datena como “patifaria” e disse que era resultado da falta de seriedade na política. “A gente não está falando de um programa engraçado, de um programa de atrocidades. Mas foi isso que se tornou. É isso que vem se tornando a discussão política”, disse.
“Por que essas pessoas estão se batendo ao invés de dizer o que vão fazer pela cidade? Como dizem, o meme veio pronto, só que a gente não está falando de meme, a gente está falando do futuro da nossa cidade”, completou a jornalista e influencer. A resposta à pergunta, para especialistas, está na busca dos candidatos por espaço e atenção.
Como coloca a pesquisadora em linguística Janyellen Martins, o principal objetivo dos candidatos tem sido viralizar, enquanto a apresentação de proposta fica em segundo plano. Para conseguir a viralização, a estratégia é apostar em polêmicas.
“Os candidatos sabem que precisam estar nas redes, principalmente no Instagram, publicando, fazendo tudo para viralizar e gerar engajamento. Às vezes, acabam virando mais influencers”, coloca a pesquisadora. A psiquiatra e produtora de conteúdo Maria Clara Silveira, em um vídeo publicado no perfil @psiqclara, analisa os riscos deste contexto.
“O algoritmo está recompensando os candidatos com comportamento mais narcisista e mais absurdo. Ele está treinando essas pessoas a serem as versões mais ridículas delas mesmas. É o mesmo princípio de dar um petisco para treinar um cachorro. Se no dia seguinte está todo mundo falando dos absurdos, pode ter certeza de que, no próximo, o absurdo vai ser maior ainda”, diz.
O jornalista Ricardo Ishmael, que já mediou debates na TV Bahia/Globo, no entanto, defende que o papel dos eleitores não deve ser esvaziado ou desacreditado. “Aqueles que assim agem desrespeitam os eleitores, desprezam seu poder de discernimento e, ao fim e a cabo, desperdiçam a chance de investir num debate sério, civilizado, a bem da sociedade”, pontua.
O que pode no debate?
Ishmael defende o estabelecimento de regras rígidas pelas emissoras de TV para os debates, a fim de proibir ofensas de qualquer natureza. A união da vigilância dos setores jurídico e de jornalismo devem ter como objetivo fazer com que os candidatos sigam à risca as regras acordadas previamente.
Cada emissora tem independência para definir como serão os debates que vão promover e televisionar. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as regras devem ser “estabelecidas em acordo celebrado entre os partidos políticos e a pessoa jurídica interessada na realização do evento, dando-se ciência à Justiça Eleitoral”.
Apesar da liberdade, há condutas determinadas previamente pelo TSE, que envolvem quais candidatos devem ser, obrigatoriamente, chamados aos debates pelas emissoras. Segundo a Lei nº 9.504/1997, deve ser “assegurada a participação de candidatos dos partidos com representação no Congresso Nacional, de, no mínimo, cinco parlamentares, e facultada a dos demais”.
Como o PRTB, partido pelo qual Pablo Marçal concorre, não tem cinco parlamentares no Congresso, a presença do candidato não é obrigatória, sendo mantida por decisões individuais dos veículos de comunicação. Por outro lado, Marçal aparece com 19% das intenções de voto, conforme pesquisa Datafolha divulgada na última quinta-feira (19). Ele está em terceiro lugar, atrás de Ricardo Nunes (MDB), com 27%, e Guilherme Boulos (PSOL), com 25%.
Vira voto?
Para a media trainer e jornalista Silvana Oliveira, o modelo de agressividade nos debates não necessariamente vai se transformar em votos. “Hoje, todo mundo quer ver os debates de São Paulo para dar risada”.
De fato, fazer o desempenho em um debate se transformar em voto não é algo tão simples. Segundo o cientista político Fábio Vasconcellos, da Uerj e da UFPR, os efeitos são indiretos e cumulativos. São indiretos porque a imprensa e formadores de opinião vão falar sobre o programa, assim como a população.
Além disso, o debate passa a ser mais importante quanto mais acirrada for a disputa numa cidade - e esse tem sido o caso em São Paulo. “O segundo ponto é que o debate passa a ser muito importante também quanto maior for o número de indecisos. É maior a chance de conversão de votos”, explica.
No entanto, quem menos assiste os debates são os indecisos. Em geral, quem acompanha os programas são os eleitores que já têm posições políticas definidas. “O efeito para esse grupo é de reforço. Eles saem cada vez mais convictos, engajados e dispostos a disseminar informação de seu candidato. Esse efeito faz a informação chegar nos indecisos, porque eles assistem menos debate, e começa a ter um risco de conversão de votos”.
Quando Datena atingiu Pablo Marçal com uma cadeira, o corpo dele reagiu a um comando do cérebro, que por sua vez reagiu a uma provocação do candidato do PRTB. “Você falou esses dias que queria ter me dado um tapa, você não é homem nem para fazer isso”, foi a fala de Marçal segundos antes de ser atingido.
Nas redes, enquanto uns avaliaram a atitude de Datena como justificável diante da provocação, outros criticaram a falta de “controle emocional”. A psiquiatra Maria Clara Silveira, no entanto, no vídeo publicado no Instagram, rebate o pensamento, afirmando que é possível controlar atitudes e, não, emoções.
“As nossas emoções são leituras que o nosso cérebro faz do estado do nosso corpo a cada momento. Quando estamos vivendo um estado emocional de estresse, o cérebro levanta hipóteses do que pode fazer para reestabelecer o equilíbrio interno do corpo e do corpo em relação ao mundo”, explica. Para Datena, a hipótese acatada foi partir para a agressão.
“Naquele contexto, se Datena se sentiu engatilhado em relação a sua masculinidade por conta do que Marçal estava falando, o comportamento que ele teve restauraria a percepção dele em relação à própria masculinidade. Depois de demonstrar agressividade, é bem possível que ele tenha sentido alívio”, finaliza Maria Clara Silveira.
A palavra “masculinidade” foi usada por conta do trecho “você não é homem nem para fazer isso”, contido na frase de Marçal durante o debate. Para o doutor líder do grupo de pesquisa Masculinidades em Discurso da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Fábio Oliveira, a fala vem da associação do masculino à apresentação de força e coragem e reivindicação de respeito.
“É um psiquismo que conta com as singularidades do sujeito, mas também é construído a partir dos sentidos que circulam na sociedade, da ideia de que, para ser homem, deve-se ser respeitado e, se não for por bem, seria preciso utilizar qualquer estratégia para que isso aconteça. Não ser respeitado em sua masculinidade se torna insuportável para boa parte dos homens heterossexuais”, coloca o pesquisador.
A reação foi naturalizada por parte dos comentadores na internet, segundo Oliveira, seguindo o princípio enraizado na sociedade de “não levar desaforo para casa”, aliado à construção do heroísmo e da legitimação da violência masculina. “Datena constrói o sentido de cidadão de bem que chegou ao limite, que não aguenta desaforo, que faz justiça com as próprias mãos”, coloca o pesquisador.