Conheça triatleta que será 1ª pessoa cega da Bahia a fazer prova de 113 km

Aos 15 anos, Ricardo Muniz foi diagnosticado com uma doença rara que causa perda de visão. Aos 35, virou triatleta, e está prestes a realizar feito inédito

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  • Fernanda Santana

Publicado em 22 de setembro de 2024 às 05:00

Ricardo Muniz, à esquerda, e Rafael Peralva, treinador e atleta-guia
Ricardo Muniz, à esquerda, e Rafael Peralva, treinador e atleta-guia Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

O ponteiro do relógio não marca nem 7h, e quase 80 pessoas correm com pausas mínimas, e roupa ensopada de suor, na orla da Barra. “Respira e vai. Porrada”, grita um dos preparadores físicos, quando um dos alunos termina mais um quilômetro. Já foram três. Faltam dois. Vestido de azul, o atleta é um dos mais velozes do treino, ainda que seja o único a correr sem ver o caminho à frente.

Ricardo Muniz, 38 anos, precisa mesmo ser rápido. Está na preparação para ser o primeiro baiano com deficiência visual a realizar um Ironman, prova de triathlon que desafia os limites humanos, do corpo e da cabeça, por 70,3 milhas — 1,9 km na natação, 90 km ciclismo, e 21km corrida.

O objetivo dele é percorrer a distância equivalente ao percurso entre Salvador e Feira de Santana em 17 horas, no dia 24 de novembro, em Aracaju.

Nesse tempo suficiente para acordar, tomar café, talvez ir à praia e até viajar de avião para outro estado do país, Ricardo ainda estará em prova. “Isso [o esporte] me devolveu a vida”, diz o atleta da modalidade paratriathlon.

Aos 15 anos, ele foi diagnosticado com uma doença rara e genética chamada neuropatia óptica de leber, que afeta uma a cada 8,5 mil pessoas, e causa perda de visão. Aos 35, virou triatleta. Três anos depois, há uma semana, Ricardo pedalou sem parar 191,9 quilômetros de Salvador até Imbassaí, distrito de Mata de São João, por seis horas e 54 minutos.

“Ele já está muito preparado psicológica e fisicamente. Agora, quero o estado de presença ainda mais aflorado”, afirma o atleta-guia de Ricardo, que guia e auxilia o atleta com deficiência visual.

O educador físico e triatleta Rafael Peralva, 44, é “O” nome do treinamento de corrida em Salvador: tem 250 alunos, e já treinou mais de 2,5 mil. “Ricardo me ensina todos os dias. Ele me complementa e eu vou complementando ele”, diz.

Todos os dias, Ricardo segue à risca uma rotina de quem quer desafiar a si e ao tempo. Antes da 5h, ele está de pé. Embora ajuste o despertador para esse horário, não precisa esperar o escândalo do alarme. "Tomo café e já vou para o ponto de ônibus", conta.

Morador do Engenho Velho da Federação, ele vai sozinho aos treinos de corrida na Barra, agendadas sempre às quartas e sextas. Na volta, tem a companhia de um vizinho maratonista de 70 anos.

No treino da última semana, a velocidade deles era registrada por três instrutores - entre eles Peralva - posicionados no fim da linha de cones enfileirados na orla da Barra. Cada um ia em seu tempo. Ricardo, no entanto, tinha uma meta: percorrer cinco mil metros, intercalados por descansos de um minuto e 20 segundos. O desafio foi cumprido, e ele correu um quilômetro em quatro minutos e 10 segundos.

Na véspera de mais uma prova, a Maratona Salvador, neste domingo (22), os atletas amadores e profissionais passavam pela fase de polimento. É a última fase do treinamento, hora de reduzir tempo e intensidade de corrida para otimizar a performance na prova.

“Depois daqui, é nadar, nadar bem”, avisa Peralva, depois de uma hora de treino, com uma mão sobre o ombro do aluno e parceiro de treino.

O típico bon-vivant da Barra parecia ainda voltar da noitada anterior, com óculos escuros, e som do carro nas alturas, e Ricardo estava pronto para o segundo turno do dia. Nadar, nadar, nadar. 

A busca por patrocinadores

Antes de cair na água, Ricardo fala sobre outra saga diária — a da busca por patrocínio. Para as próximas provas de paratriathlon, ele precisa de pelo menos R$ 4 mil para custear viagens, estadia, transporte e reparo na bicicleta, adaptada para a modalidade, com dois guidões e assentos. O veículo foi comprado com o dinheiro arrecadado em uma vaquinha.

O atleta de paratriathlon já bateu em algumas portas, como a de um supermercado e uma grande loja de autopeças. Não recebeu as respostas esperadas. Hoje, Ricardo recebe dois benefícios voltados para atletas — o Bolsa Atleta Salvador, da Prefeitura, e o Bolsa Atleta Federal, que exigem requisitos como a participação em campeonatos nacionais.

Na capital baiana, Ricardo faz parte de uma lista seleta: é um dos seis atletas de modalidades paralímpicas contemplados. Ao todo, são 236, cadastrados em quatro categorias diferentes, de acordo com o nível profissional: as remunerações vão de R$ 2 mil a R$ 300 (valor suficiente apenas para um treino de longa distância de Ricardo, que inclui custos com pedágio, alimentação e gasolina).

O dia 14 de novembro em Brasília, por exemplo, será decisivo. É quando acontece o Campeonato Brasileiro de Triathlon e Paratriathlon, que rankeia os atletas da modalidade, o que impacta, positiva ou negativamente, na permanência da bolsa federal.

A modalidade que Ricardo escolheu é reconhecida pela União Internacional de Triatlo desde 2010 — a estreia olímpica aconteceu seis anos depois, no Rio de Janeiro. Há seis categorias, que consideram a deficiência física ou cerebral, critérios que Ricardo só descobriria em 2021 .

“Foi a pior parte da minha vida, minha mente voltou para a estaca zero”, conta Ricardo sobre o período da pandemia da covid-19.

Durante uma caminhada em Ondina, naquele ano, Ricardo foi apresentado por um conhecido a Peralva, que estava com uma turma de alunos. Era quarta-feira. Os dois trocaram informações básicas, como a história de Ricardo com os esportes.

Dois dias depois, às 5h30, estavam correndo juntos.“A gente começou logo”, lembra o treinador, que nunca tinha trabalhado como atleta guia. “Aquela foi a mudança da minha vida, de aceitação mesmo”.

Rafael, do plano da frente, e Ricardo Muniz Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Enquanto ganhava velocidade, Ricardo aguçava os outros sentidos. “Comecei a identificar o local que estava também através do cheiro”, conta. A subida do Morro do Cristo tem cheiro de moqueca, exalado pelos restaurantes. A chegada a Ondina revela um aroma forte de maresia.

Estudos têm apontado que a prática de esportes pode melhorar a memória motora de pessoas com deficiência visual, o que contribui para a funcionalidade no dia a dia. Entre atletas, é conhecida a história do nadador norte-americano Tharon Drake, pessoa cega que identifica o estilo de nado do oponente a partir do barulho do corpo na água.

Ricardo também sabe identificar os diferentes chãos da cidade, que revelam os obstáculos da falta de acessibilidade no caminho, como a ausência de pisos táteis.

A falta de calçada ou buracos em alguns pontos da cidade leva os corredores para os canteiros das pistas. “A gente ainda tem que ouvir cada coisa, gente xingando a gente no caminho, mandando a gente sair”, lamenta Peralva.

Os dois se comunicam durante o trajeto. “Esquerda”, “quebra mola” e “ladeira” são palavras básicas no glossário. “O que eu pensava, quando surgiu a ideia do triathlon, era: como vou pedalar?”, lembra Ricardo. O plano surgiu para que ele pudesse participar de competições oficiais e, assim, ser reconhecido como um atleta profissional.

No dia 12 de dezembro de 2021, a dupla terminou a primeira prova de paratriathlon, no Comércio. A bicicleta era emprestada. No percurso, quando as dores pareciam mais fortes, o cansaço piorava e a corrente da bike insistia em sair do lugar, os dois repetiam mantras, como "a minha capacidade é absurda”. Os dois terminaram no topo do pódio. 

A natação ainda é o principal desafio das provas. Na água, Ricardo revisita o trauma de ter visto um amigo morrer afogado. O “leão”, metáfora que ele usa para se referir aos obstáculos, parece mais feroz nessa hora.

“É quando você fica sozinho, você e seus pensamentos, e o silêncio”. Exceto quando o professor de natação Marcos Araújo, 50, precisa auxiliar o aluno.

“Tá bem, Rick, vai em frente”, diz ele , toda vez que Ricardo torce o pescoço para o lado para respirar e emendar o próximo crawl. Os dois nadam conectados por um elástico nas pernas, sexta e sábado, desde 2022

Ricardo posa ao lado do professor de natação Marcos
Ricardo posa ao lado do professor de natação Marcos Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

“Nunca tinha treinado uma pessoa com deficiência visual. Ele me ensinou os comandos, tudo que eu aplico na água”, diz o treinador.

No restante dos dias, Ricardo treina musculação, natação e bike indoor em uma academia no bairro da Pituba, onde é bolsista - as mensalidades chegam a custar R$800 mensais.

“Chega sempre cedo, antes da aula até, e evolui muito", conta a professora de natação Patrícia Villas Boas.

Os dois também se conheceram no Porto da Barra, depois de um dos treinos de Ricardo. Foi ela quem mexeu os pauzinhos para que o atleta conseguisse a bolsa no centro de treinamento, onde os boxeadores Robson Conceição e Herbert Conceição também batem ponto.

Como nadava sem auxílio de um guia, Ricardo despertou a curiosidade dos colegas. "Ele contava as braçadas, então sabia o que precisava fazer para avançar 25 metros”, diz. No início, eram necessárias 28 delas. Hoje, 24 bastam.

As redescobertas com o esporte

No início dos anos 2000, Ricardo percebeu os primeiros borrões na visão. As letras pareciam mais miúdas, o horizonte distante, até que, um dia, ele não conseguiu copiar no caderno o que estava anotado na lousa da sala. "Em 2001, a visão sumiu de vez", lembra.

A família iniciou um périplo a consultórios médicos. Foi o setor de patologias raras do Hospital das Clínicas que fechou o diagnóstico, após dezenas de exames, como ressonância magnética, tomografia e exame genético. O choque da descoberta se somou ao luto pela perda do pai, falecido pouco antes.

A neuroplasia diagnosticada em Ricardo afeta principalmente adultos jovens entre 15 e 35 anos (mas pode acontecer em qualquer idade), é causada por mutações no DNA mitocondrial, que são passadas de mãe para filho. 

Na infância, Ricardo não apresentava problemas de saúde. Cresceu no Engenho Velho da Federação, com as obediências e rebeldias típicas de cada idade, em uma casa simples com os pais e os dois irmãos. 

O esporte era parte da vida dele, batizado pela capoeira e o boxe, modalidades comuns oferecidas por projetos sociais de bairros da periferia soteropolitana, como o do antigo professor do triatleta, Josival Pinto.

"Mas depois do diagnóstico, me rebelei. Achava que agora era só esperar sentar e esperar morte chegar, foi horrível", recorda Ricardo. Abandonou os estudos e quase não saía de casa. A perda da visão dificultava, senão impossibilitava, os treinos de luta. "Fazia muita ignorância às pessoas sem entender".

Um primo, Victor Hugo, ao notar a apatia de Ricardo, perguntou se ele não queria acompanhá-lo em treinos funcionais que ministrava no Rio Vermelho. “Ele era fominha de corrida. Sempre ia bem, melhor que muita gente”, recorda o professor. Ricardo corria de mãos dadas com algum colega ou ouvindo os comandos de alguém ao lado.

Depois, Ricardo ainda passou por uma turma de corrida na Universidade Federal da Bahia (Ufba), até conhecer Peralva.

Hoje, quando não está em treinamento, Ricardo estuda. Em 2020, ele voltou à escola, e finalizou o Ensino Médio no ano passado. Matriculado na Universidade para Todos, um programa de pré-vestibular estadual, ele sonha em cursar Educação Física ou Fisioterapia. Mas a concentração, depois da Maratona Salvador, está em outros planos.

No dia 26 de outubro, Ricardo vai pedalar, com Peralva, os 325 quilômetros que separam Salvador de Aracaju. Será o treino mais longo já feito por ele. "Estou felizão", diz, "acredito que isso vai me fortalecer. O ser humano tem uma capacidade absurda de superação, é só querer".

Como contribuir com Ricardo? 

Instagram: @munizricardo398