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Thais Borges
Publicado em 23 de novembro de 2024 às 07:05
Por três meses, a menina Manuella Telles, 9 anos, trabalhou diuturnamente em um projeto especial. Dona de uma estante com dezenas de livros e de uma rotina de leitura incomum para muito adulto, ela queria que o móvel contasse com um título especial: As Abelhas, assinado pela própria. Além de escrever a história, ilustrou e confeccionou o exemplar - dentro das possibilidades que tinha.
Quando terminou, em setembro, queria dar sequência ao sonho: publicá-lo para valer. "Na minha escola, a gente estava estudando sobre guia turístico e minhas colegas foram falando que iam fazer revista em quadrinhos e publicar. Eu também falei que ia fazer meu livro e publicar", conta ela, que cursa o 4º ano na Escola Lua Nova.
Crianças como Manuella são parte de um contexto complexo quanto à leitura no Brasil. Ao mesmo tempo que o sucesso e a lotação de eventos literários como a Bienal do Livro da Bahia, que aconteceu em abril, mostram o engajamento e a frequência do público leitor, o Brasil nunca teve tantos ‘não-leitores’.
Lançada na última terça-feira (19), a última edição da pesquisa Retratos da Leitura mostrou que o país perdeu quase 7 milhões de leitores em 2024, em comparação à edição de 2019. Além disso, foi a primeira vez, desde o início da série histórica, em 2007, que os não-leitores superam os leitores. Isso significa que, nos três meses anteriores à pesquisa, 53% da população não tinha lido sequer um livro.
Manuella, por sua vez, já não sabe nem estimar quantos livros leu neste ano - ou mesmo na vida, desde que foi alfabetizada. Ela não tem, contudo, nenhuma dificuldade para listar alguns dos títulos que leu, pelo menos, nos últimos tempos: além de toda a série Harry Potter (J. K. Rowling), a lista inclui clássicos e contemporâneos bestsellers do segmento infantojuvenil, como o Diário de Pilar (Flávia Lins e Silva), Judy Moody (Megan McDonald) e O Diário de uma Princesa Desastrada (Maidy Lacerda).
"Sabe uma pessoa que gosta muito de videogame, quando fica sem videogame? Sou eu quando fico sem ler, porque gosto muito de ler", diz a garota, cujo primeiro livro que lembra ter lido foi ‘Detetives do Prédio Azul’, de Flávia Lins e Silva. "Ler, para mim, é como um feriado. Você deixa tudo para lá e vai ler", conta.
Importância
Apesar de queda no hábito de leitura, o segmento infantojuvenil ainda é um dos maiores destaques do mercado literário em geral. Em geral, os títulos infantojuvenis respondem por até um quarto de todas as vendas do setor, de acordo com as entidades que contabilizam os livros mais vendidos. Só para dar uma ideia, apenas no início de novembro, vendas de livros cresceram 42%, segundo o PublishNews, portal especializado na cobertura do mercado editorial.
Segundo o levantamento, o panorama está ligado a um aumento de 148% nas vendas da categoria infantojuvenil. A categoria Ficção veio logo atrás, com crescimento de 74% nas vendas. Parte desse volume se deve ao lançamento de sequências de sucesso, como o terceiro volume de ‘O diário de uma princesa desastrada’, para crianças, e de ‘Não é como nos filmes’ (Lynn Painter), para o público jovem adulto.
No caso de Manuella, ao contrário do que muitos poderiam imaginar, As Abelhas não é uma obra de ficção. O texto do livro é informativo, depois que a menina visitou um meliponário - local de criação das abelhas-sem-ferrão (conhecidas como meliponíneos).
Só que Manuella queria, de certa forma, fazer um alerta. "Eu vi no meliponário que as pessoas matam a abelha achando que é mosquito, vespa, marimbondo. Pensam até que essas abelhas só servem para picar, mas não sabem que, se uma abelha pica, a capacidade de vida dela acaba. O ferrão é uma parte necessária", diz. No início, teve uma parte que era inventada, mas acabou mudando de ideia. "Apaguei e achei melhor pesquisar um pouco. Vi uns vídeos sobre abelhas e consegui fazer de um jeitinho muito bom", conta Manu que gosta de assistir as aventuras de Harry Potter e brincar com seu shih tzu.
Mas mesmo em uma casa de leitores, o amor de Manuella por livros se destaca. A avó, Lígia Telles, professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é uma das principais incentivadoras - e tem sido, inclusive, uma das que mais presenteou a neta com livros. Desde o início, Lígia percebeu que Manuella lia mais do que os outros netos.
Ela sempre gostou de presentear filhos e netos com livros. "Dentro disso, as respostas variavam. Alguns gostavam mais do que outros", diz Lígia, que é doutora em Letras e dedicou boa parte da carreira à pesquisa na área de Teoria da Literatura. "Ela não só se destacou pelo interesse, mas porque lia vorazmente. Você dá um livro e ela já está pensando no próximo que vai ganhar", acrescenta.
O caminho em conjunto das duas com a leitura, para Lígia, é mais por afinidade do que de construção. "Eu sempre gostei muito de ler, desde que fui alfabetizada. Depois, eu resolvi ser professora. Estudei letras e me tornei professora na Ufba", afirma. Ela diz que vê o gosto de Manuella pelos livros mais como avó do que como especialista. "É uma alegria muito grande, porque a leitura é uma das maiores fontes de riqueza para alimentar a alma".