Conheça a companhia que oferece serviço de fiscalização contra importunação e assédio em eventos

Lugar Seguro: Flor de Cacto já atuou em 14 eventos e também está em estabelecimentos como A Borracharia e o Bombar, com atitudes preventivas que protegem mulheres nesses ambientes

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  • Priscila Natividade

Publicado em 23 de junho de 2024 às 11:00

 Carolina Dantas e Clarissa Hirs, criadoras da Cacto Companhia Feminina Antiassédio
Carolina Dantas e Clarissa Hirs, criadoras da Cacto Companhia Feminina Antiassédio Crédito: Marina Silva/ CORREIO

As puxadas de braço, o encurralamento. A insistência, o olhar invasivo, não correspondido. Foi após passar por uma situação de importunação sexual numa boate em Salvador, que a educadora física Clarissa Hirs percebeu o quanto sua indignação era relativizada e como aquele comportamento não consentido era naturalizado nesses espaços. “Constatei o quanto as mulheres estão vulneráveis nesses ambientes. Se não tem ninguém aqui olhando por nós, seremos os olhos umas das outras. Foi assim que o serviço de fiscalização surgiu”.

Junto com a advogada Carolina Dantas, Clarissa criou a Flor de Cacto (Companhia Feminina Antiassédio) (@flordecacto.antiassedio), primeira companhia baiana especializada em fiscalizar esses ambientes “desarmando” situações que possam ser nocivas para as mulheres. “Agimos antes que a situação se concretize. O serviço de fiscalização é categoricamente preventivo. A violência sexual nesses espaços acontece de forma sorrateira, invisível, disfarçada de paquera”.

De 2022 para cá, desde quando a Flor de Cacto surgiu, a companhia já atuou em 14 eventos e em estabelecimentos como A Borracharia e o Bombar, no Rio Vermelho. “O primeiro estabelecimento que adotou nossas ações foi A Borracharia, boate onde atuamos até hoje. Além disso, estivemos em sete edições do Quintal du Samba, no Tamo Junto, projeto do cantor Pedro Pondé, nas festas de verão da Pousada Des Arts, no Santo Antônio Além do Carmo, Fragmentos de Amor, na Tardezinha do cantor Thiaguinho e da Mafuá, no Pelourinho”.

Além de capacitar as equipes para a fiscalização de festas, a Cacto também oferece palestras e formações sobre condutas adequadas e combate ao assédio. Com base nos registros de relatórios chama muito a atenção a frequência com que as mulheres são “capturadas” por estarem alcoolizadas, como acrescenta Clarissa. O valor pelo serviço de fiscalização varia entre R$ 280 e R$ 2,1 mil, conforme o tamanho do espaço, do público do evento e da duração:

“O São João é uma festa de corpo a corpo, de alto consumo de bebida alcoólica, e sabemos que esse consumo está diretamente ligado à vulnerabilidade das mulheres e ao potencial agressivo masculino. Mostramos o quanto o evento ganha quando adota uma política eficaz de proteção às mulheres. Além de sentimento de confiança, essas mulheres se sentem mais seguras para consumir, se divertir. Mais que isso, o evento se resguarda de situações que possam gerar uma imagem negativa, como denúncias, processos e exposições em redes sociais”.

"Além de sentimento de confiança, essas mulheres se sentem mais seguras para consumir, se divertir"

Clarissa Hirs
criadora da Flor de Cacto

Não é não

Quando começaram a Flor de Cacto, Clarissa e Carolina foram na base da coragem na hora de pensar no protocolo e no formato do serviço. “Não havia referências de serviços de fiscalização nesse contexto. Foi entendendo comportamentos, meus gatilhos enquanto mulher, os de outras mulheres e dos homens que criamos um protocolo e ele foi sendo ajustado no decorrer das experiências, tendo como base os relatórios feitos após as ações”, comenta a advogada e coordenadora da Cacto, Carolina Dantas.

Clarissa e Carolina também buscaram referências na legislação brasileira e no protocolo No Callem, aplicado no caso do jogador Daniel Alves. Criado em 2018 pelo governo de Barcelona, o documento visa combater agressões sexuais e violência machista em espaços e discotecas e bares. “É um trabalho complexo, que envolve subjetividade (comportamento humano) e objetividade (legislação), e a gente segue aprimorando”, explica.

Em termos de Brasil, no âmbito federal, a lei 10.224/2001 trata o assédio sexual no ambiente de trabalho dentro e uma dinâmica de hierarquia de cargo, por exemplo, quando um chefe se aproveita dessa posição para obter vantagens sexuais de alguém que está numa função abaixo. Já a importunação sexual (lei 13.718/2018) condena a conduta de qualquer ato libidinoso, em qualquer lugar, sem consentimento. Qualquer toque não consentido, expressão verbal que cause constrangimento, configura importunação sexual e prevê pena de até cinco anos de detenção.

Salvador tem também a Lei do Assédio (lei 9.582/2021) que traz todas as nuances da lei da Importunação, mas prevê medidas administrativas com multas que podem variar de R$ 2mil a R$ 20 mil. A legislação tem passado por ajustes, mas também novas iniciativas estão sendo criadas como a Lei do Não é Não (lei 14.786/2023), que prevê a obrigatoriedade de bares, boates, restaurantes, eventos e qualquer estabelecimento que comercialize ou não bebida alcoólica, em adotar medidas de proteção à mulher.

Desde que surgiu, a Flor de Cacto já atuou em 14 eventos e em estabelecimentos como A Borracharia e o Bombar, no Rio Vermelho.
Desde que surgiu, a Flor de Cacto já atuou em 14 eventos e em estabelecimentos como A Borracharia e o Bombar, no Rio Vermelho Crédito: Divulgação

“No nosso trabalho, os sujeitos que têm comportamentos inoportunos são abordados e comunicados sobre a política de proteção às mulheres do estabelecimento ou evento. Cientes disso, caso insistam, são retirados pelos seguranças. Se a mulher quiser denunciar, essa denúncia é viabilizada, o sujeito é retido e a segurança pública acionada”, ressalta a advogada.

Além das ações de fiscalização e acolhimento, a Cacto tem um canal de comunicação direta com o público através de um QRCode que consta nos cartazes espalhados em pontos estratégicos da festa. “Com esse recurso, a mulher pode pedir ajuda onde quer que esteja. O gargalo ainda está está na falta de educação sexual nos espaços de ensino, falta de conhecimento da população sobre a legislação, e um fator muito contundente, que é um sistema e poder majoritariamente patriarcal e machista”.

"O gargalo ainda está está na falta de educação sexual nos espaços de ensino, falta de conhecimento da população sobre a legislação, e um fator muito contundente, que é um sistema e poder majoritariamente patriarcal e machista"

Carolina Dantas
advogada e coordenadora da Cacto

No enfrentamento à violência, a intenção da Cacto agora é expandir e aprimorar os serviços, como complementa a outra sócia, Clarissa Hirs. “Queremos alcançar cada vez mais nichos de atuação, como academias, shoppings, agências de viagem. Estamos entendendo esse mercado em outras regiões do Brasil e do mundo e estamos prontas para atuar em qualquer evento que se comprometa em adotar medidas efetivas de segurança para as mulheres. Esse serviço é essencial”, planeja.

Para o especialista em eventos e professor da Wyden, Thiago Duch, propostas que visam criar protocolos para tratar de casos de assédio nesses ambientes tem muito a agregar ao setor. “É uma excelente novidade para os organizadores de eventos. Sem dúvida a conscientização é o principal desafio das empresas que lidam todos os dias com festas e shows”, opina.

Existe hoje uma mudança de comportamento das empresas organizadoras, ainda que haja um longo caminho até que isso possa se consolidar. “Estamos vivendo em um momento muito importante, que é de não tolerar pessoas ou ambientes que permitam assédio ou qualquer outro tipo de violência. Toda essa temática é muito recente e há muito o que evoluir para proteger a dignidade e interesse de todos os participantes”.