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Carolina Cerqueira
Publicado em 28 de abril de 2024 às 05:00
Os móveis de luxo se exibem nas lojas de decoração, aguardando o dia de chegar a uma casa ou apartamento de alto padrão. As sobras de seus materiais seriam condenadas a um destino nada glorioso: o lixo. >
Mas não são graças a um instituto que transforma lixo em luxo com DNA baiano, conectando Nova Brasília de Valéria, em Salvador, com o mundo e gerando renda para a comunidade. >
As cordas e os tecidos chegam às salas de costura e de artesanato da Associação de Moradores de Morada da Lagoa (Amchamola) e são disputados pelas artesãs. >
Todas querem as cores mais vibrantes e ficam ansiosas para colocar as mãos na massa e ver prontos tapetes, cestos, enfeites, bolsas, sousplat e o que mais a criatividade permitir. >
Fazendo a roda girar >
Os resíduos são trazidos das sobras de produção da fábrica da Tidelli (marca brasileira de móveis para áreas externas), instalada no bairro em 2002. >
O percurso coloca em prática os conceitos de “economia circular” e “upcycling”, que pregam a ampliação da vida útil dos produtos para reduzir o impacto negativo no meio ambiente e aumentar o impacto positivo na sociedade. >
O responsável pela conexão é o Instituto Tidelli, que também oferece capacitação para as artesãs e vende as peças produzidas para empresas espalhadas pelo mundo, repassando a renda para as autoras das obras. >
Desde 2023, quando o Instituto foi criado, foram cerca de cinco mil itens vendidos e mais de 390 mil reais arrecadados pelas artesãs. >
A marca vende os produtos em suas 40 lojas no Brasil e outros 20 pontos nos Estados Unidos, Panamá, México, Uruguai, Emirados Árabes Unidos e Angola. >
De Salvador para o mundo >
Fernanda Tavares, de 36 anos, não conseguiu conter a empolgação com uma encomenda com destino a Miami, nos Estados Unidos. >
“Quando eu soube, já imaginei aquelas mulheres chiques passeando no calçadão de Miami usando a bolsa que eu fiz”, lembra, rindo e encaixando no ombro uma das bolsas do estoque guardado na sala de costura. >
Girlene de Deus, de 52 anos, lembra com carinho a primeira vez que viu seus produtos exibidos no exterior. >
“Nunca esqueço da foto que recebi dos clientes de uma árvore de Natal em Miami decorada com os enfeites que eu fiz. Foi muito emocionante”, conta enquanto manuseia com cuidado o ferro quente com a cola das cordas que vão virar um cesto. >
Transformação social >
Girlene está no Instituto desde a sua fundação, em 2022, e, conhecida por todos como Dona Gil, é a mãezona da turma de cerca de 20 mulheres, deixando as verdadeiras filhas, Cleide, de 37 anos, e Darlene, de 34, com ciúmes. >
Darlene se juntou ao projeto há oito meses, mas Cleide chegou junto com a mãe, que buscava para o neto um esforço escolar oferecido pela associação de moradores. Dona Gil se empolgou com a descoberta. >
“Eu sempre adorei artesanato. Quando eu cheguei aqui e vi tantas cordas lindas, fiquei encantada, parecendo criança em loja de doce”, lembra. >
“Na primeira oficina, uma moça veio aqui nos ensinar a fazer as bases dos vasos de tecido e eu prestei atenção direitinho. Ela foi embora e disse que eu seria a responsável por ajudar quem não tivesse aprendido. Assim eu virei a mãezona do grupo, a que coloca ordem na casa”, acrescenta. >
Desempregada, a filha Cleide foi inundada pela satisfação de poder trabalhar e ver sua dedicação reconhecida. >
“Eu estava assistindo a um programa da TV Globo e um cesto amarelo que eu tinha feito com minha mãe apareceu. Eu comecei a pular e gritar; tirei foto e mandei para todo mundo. Chorei muito de emoção, viu? Foi uma festa!”, lembra, animada. >
“Depois disso, outros produtos já apareceram muitas vezes em programas como o de Ana Maria Braga. Me sinto muito chique, fico muito orgulhosa de mim mesma”, diz ela, contendo as lágrimas. >
Terapia >
O orgulho parece ser o sentimento unânime. Dionísia Silva, de 54 anos, logo pegou o celular para mostrar fotos de suas produções. Ela gosta mesmo é de confeccionar tapetes e descreve sua experiência com uma pequena frase: “Para mim, é como uma terapia”. >
Há oito meses, se juntou ao grupo após ser afastada do trabalho com diagnóstico de artrose. Estava sempre presente com a ajuda das muletas, que hoje já conseguiu dispensar. >
Liliane Oliveira, de 37 anos, também traz a palavra “terapia” em seu depoimento. Ela descobriu o projeto após receber da psicóloga a indicação de que se envolvesse em algo que gostasse e que lhe motivasse. >
O momento era delicado: seu filho Heitor, hoje com três anos, havia recebido o diagnóstico de autismo. >
“O projeto me resgatou e me lembra todos os dias que existe vida para além das dificuldades de ser uma mãe atípica. O meu filho é a minha prioridade, mas eu também posso pensar em mim e ter as minhas próprias conquistas”, compartilha. >
Ela diz levar o filho para a produção e chora ao falar sobre o acolhimento que as colegas têm com ele. “Para mim é muito importante frequentar um lugar onde meu filho é bem recebido”, desabafa. >
Liliane chegou ao Instituto há cerca de um ano e conta que é com o dinheiro que ganha a partir das vendas dos produtos que consegue pagar o transporte para levar o filho à terapia. >
Fernanda Tavares compartilha que foi com o dinheiro que ganhou em novembro e dezembro do ano passado, com a produção para o Natal, que conseguiu pagar a tão sonhada festa de aniversário de dois anos de seu filho. >
Ampliação >
A tesoureira da associação de moradores, Elisângela Moreira, de 44 anos, diz ficar feliz ao ver a roda girando. >
“A gente tem a fábrica, que gera cerca de 500 empregos diretos e outros tantos indiretos, e tem o Instituto, através do qual as meninas vão poder ter o dinheiro delas. Para mim, isso é sinônimo de empoderamento e autoestima”, coloca. >
O consultor da Tidelli, Gervazio Lopes, coordena o projeto e também comemora os objetivos sendo alcançados. >
“A gente chama de Espiral da Prosperidade. A ideia é proporcionar o pontapé inicial, mas estimular o empreendedorismo e fazer elas caminharem com autonomia”, destaca. >
Tatiana Mandelli, fundadora da Tidelli e presidente do Instituto Tidelli, compartilha os planos de ampliação do projeto: >
“Queremos também reutilizar outros materiais como a madeira e vamos criar mais uma oficina para trabalhar com isso. E o próximo passo é passar a utilizar o e-commerce, criar uma plataforma para a venda online dos produtos”. >