Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Carolina Cerqueira
Fernanda Santana
Publicado em 13 de abril de 2024 às 05:00
Gal Costa colhia os louros do sucesso no fim dos anos 90. Havia gravado os principais álbuns, viajou o mundo em turnês míticas, já era um dos símbolos da música nacional. Nessa época, sem fazer alarde, imaginou o futuro do legado dela, e escreveu sobre isso em páginas que seriam reencontradas três décadas mais tarde. >
Naquelas folhas de 1997, Gal registrou um testamento em que destinava seu patrimônio à “Fundação Gal Costa de Incentivo à Música e Cultura”, que deveria ser criada na Bahia. O filho da cantora, Gabriel Penna Burgos Costa, soube desse projeto apenas em janeiro deste ano e se comprometeu a transformar o antigo sonho da mãe em realidade. >
“Decidi tomar conta das coisas dela para deixá-la orgulhosa e fazer com que a imagem dela siga sendo espalhada pelo Brasil e pelo mundo. Para fazer a arte dela alcançar mais gente”, disse o estudante. >
O futuro da sua obra era uma preocupação de Gal, e estava latente quando escreveu o testamento. Um problema de saúde do irmão Guto Burgos, à época empresário dela, a fez pensar sobre sua própria morte. Em um encontro com a amiga e advogada Luci Vieira Nunes, no apartamento dela no Leblon, no Rio de Janeiro, revelou o desejo de criar uma fundação. >
“Andei pensando bem, quando eu morrer, quero ajudar os músicos e pessoas da arte que tenham necessidades financeiras e não consigam estudar música", foi o que Gal disse naquela noite, segundo a memória de Luci, que hoje é advogada de Gabriel junto com Mariana Athayde. >
Durante dois meses, Gal organizou os detalhes do projeto, cujos documentos de registro ficaram em envelopes lacrados e engavetados. Só depois da morte de Gal, em novembro de 2022, aos 77 anos, que essa história começaria a vir à tona. Em janeiro deste ano, segundo Luci, ela compartilhou os velhos planos de Gal para Gabriel.>
Enquanto isso, em Salvador, duas primas da cantora, Verônica Silva e Priscila de Magalhães, já estavam cientes do projeto da ONG, depois de encontrarem uma cópia do testamento em casa. Estavam dispostas a fazê-lo valer. >
No dia 30 de março, em reportagem exclusiva do jornalista Ronaldo Jacobina, o CORREIO noticiou que elas tinham ingressado com um processo judicial para fazer valer o testamento de 1997. A ação foi arquivada depois que Verônica e Priscila firmaram um acordo extrajudicial com Gabriel, no dia 1º de abril, no qual ele assumiu o dever de criar a fundação. O documento foi acessado com exclusividade pela reportagem. >
O acordo prevê que a criação será feita nos moldes do que disse Gal no testamento. Os principais objetivos do instituto, que não terá fins lucrativos, são a formação de músicos e outros artistas, a promoção de festivais e concursos, a realização de cursos de música gratuitos para a população carente e a doação de instrumentos musicais. >
O instituto em homenagem à trajetória de Gal ajuda a preservar e projetar ainda mais, para as próximas gerações, a memória da cantora que alcançou o estrelato primeiro com a Tropicália e depois se tornaria uma das mais marcantes da história do Brasil. >
João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Caetano Veloso costumavam dizer que o som da voz de Gal era o próprio significado de música. >
"E isso fazia com que o espírito dela expressasse sentimentos, asperezas, doçuras, de modo espontâneo", escreveu Caetano, um ano depois da morte Gal, para quem compôs clássicos como “Baby” e “Meu Bem, Meu Mal”. "O que ela nos deu de beleza não nos deixará", previu.>
O que disse Gal em testamento sobre a fundação>
Quando escreveu o testamento, Gabriel ainda não tinha sido adotado, o que aconteceria apenas em 2007. Gal elegeu cinco primas maternas como responsáveis por fazer acontecer a futura fundação. Uma delas faleceu, outra não poderia pelas limitações da idade e a terceira não foi localizada pela reportagem. Sobraram Verônica e Priscila, mãe e filha, respectivamente. >
Com o acordo firmado com ele, no entanto, as duas delegam a Gabriel a gestão ou a escolha dos gestores da fundação. A pessoa administradora da fundação, previu Gal, terá direito a uma remuneração de "2% do valor do acervo dos bens inventariados". >
O testamento indica como a fundação deverá funcionar, com o propósito de "propiciar a musicistas carentes e já idosos uma melhor situação financeira”.>
A fundação prevê a cobrança de mensalidades dos alunos que puderem pagar e “admite mantenedores e contribuições de terceiros”. Não há, ainda, estimativas para os custos envolvidos na Fundação Gal. "Irei atrás de patrocinadores. Acho que muitas pessoas irão ajudar", acredita Gabriel.>
"Não há nenhum interesse nisso. A todo momento, nosso intuito era ajudar, garantir a fundação Gal Costa, porque ela merece isso [...] Gal é 'a mãe de todas as vozes", comemora Priscila, em referência a um trecho da música composta por Nando Reis em homenagem à cantora. Ela regravou a canção no disco "A Pele do Futuro", de 2018.>
O secretário Municipal de Cultura e Turismo de Salvador, Pedro Tourinho, afirmou que não houve conversas formais nesse sentido, mas está aberto ao diálogo. "Enquanto hipótese sim, recebemos consultas desse tipo de diversas fundações e famílias de artistas", disse. >
Gal não invalidou a participação de pessoas de outros estados ou países, mas exigiu que a sede da Fundação fosse na Bahia. >
A cantora, afinal, nasceu em Salvador, em setembro de 1945, e cresceu entre os bairros da Barra e Graça. Por aqui, tinha uma vida cultural intensa na juventude, frequentando teatro, cinema e concertos de música. Foi na Bahia, também, que deu os primeiros passos na carreira, influenciada por João Gilberto e ao lado dos também estreantes Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil e Tom Zé. >
Entre os anos 2000 e 2012, Gal voltou a viver em Salvador, já com o filho. Mas o acordo extrajudicial firmado por Gabriel, que mora em São Paulo, deixou em aberto o endereço da Fundação Gal Costa.>
Em conversas entre os advogados de Gabriel e de Priscila e Verônica, houve troca de informações sobre casas em Salvador para sediar o projeto. Ainda não houve conclusões.>
O que significa uma fundação para Gal Costa>
O ex-empresário e amigo de Gal, Paulinho Lima, aprova a ideia da Fundação. “É fabulosa!”, coloca, entusiasmado, o produtor do mítico show Gal Fa-tal, de 1971. Para ele, a fundação será um "marco para a cultura brasileira em moldes ainda não vistos para um cantor ou cantora". >
Isso porque até há alguns projetos desse tipo espalhados pelo Brasil, mas nenhum com este porte e proposta de formação de músicos. >
Carmen Miranda, por exemplo, nomeia um museu no Rio de Janeiro, desde 1976. O espaço, no Aterro do Flamengo, é aberto ao público e abriga só trajes sociais e cenográficos da cantora - são 3 mil, ao todo. Itens de Elis Regina também estão expostos ao público, em dos espaços da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre.>
As duas cantoras, assim como outros grandes artistas antecessores de Gal, produziram em uma época analógica, o que dificulta a criação de um acervo digital robusto delas. Já Gal aparece em incontáveis registros em vídeo e áudio. >
“Gal tem uma força artística e uma dimensão fabulosa. É um fenômeno que inclusive as novas gerações estão interessadas em conhecer melhor”, justifica Paulinho. >
A conexão de Gal com as novas gerações, expressa em seu testamento, se evidencia ao longo da carreira, recheada de parcerias com cantores ascendentes. >
Um mês antes de morrer, Gal gravou um dueto com Marina Senna de “Para Lennon e McCartney, do Clube da Esquina. No seu último álbum, intitulado “Nenhuma Dor” (2021), reuniu nomes como Silva e Tim Bernardes. Antes disso, em 2018, convidou Marília Mendonça, que morreu três anos depois, para gravar a inédita "Cuidando de longe". >
A cantora também gostava de estar rodeada de novas gerações de músicos. No CD Hoje, de 2005, ela interpreta canções de compositores na época pouco conhecidos como Moisés Santana e Junio Barreto.>
Paulinho acredita que a criação da Fundação dialoga com esse incentivo a novos músicos, e reafirma a força de Gal. "Acho que num período ela teve noção de quão grande era, depois perdeu isso. Quando ela esteve no auge, nos anos 1980 e 1990, ela tinha essa noção", diz.>
Na primeira entrevista depois da morte da mãe, ao programa Fantástico, da TV Globo, Gabriel também admitiu que não tinha visão da “dimensão dela como cantora”, o que mudou depois do enterro. “Eu só tinha a visão de que ela é minha mãe”, disse. >
A música foi um destino construído para Gal, primeiro, pela mãe dela, Mariah Penna Costa. Grávida, Mariah ouvia canções todos os dias para que o filho — ainda não sabia que seria uma menina — fosse um grande músico. >
Um dos principais desafios para a criação dessa fundação já foi superado. "A vontade de fazer", explica Gringo Cardia, arquiteto e artista visual por trás do mais bem sucedido projeto do tipo, a Casa de Jorge Amado, no Rio Vermelho, visitada por 30 mil pessoas por ano. O projeto é administrado pela família Amado, com apoio da Prefeitura de Salvador. >
"O segundo desafio são os custos de se levantar essas memórias, por isso a importância da participação de alguma instituição, governo, ou cenas particulares", exemplifica ele, hoje envolvido com dois projetos de casa-museu - um para o antropólogo Darcy Ribeiro e outro para a cantora Maysa Matarazzo.>
Para criar o instituto, explica Gringo, é preciso também entender como torná-lo vivo. “Só a história, por mais importante, com roupas e um terço na parede, não significa nada”, afirma.>
É preciso, na avaliação dele, conectar o passado com o presente, com a juventude mobilizada e instigada a fazer parte daquilo. Gal pensou nisso.>
Figurinos podem compor acervo da fundação>
Ao longo da carreira, Gal não deu muita importância para guardar artigos da carreira. Nos primeiros anos, inclusive, chegava a dormir com as roupas do show, as quais gastava até o último fiapo. Era uma das suas superstições. Mas ela reservou algumas, que devem fazer parte do acervo da fundação — embora, no testamento, ela não cite figurinos.>
Desde 1999, Priscila e Verônica guardam 11 artigos enviados para elas pela cantora. Naquele ano, depois de vender a casa que tinha em Trancoso, na Bahia, Gal enviou para Maria Lúcia, mãe de Verônica, um caminhão com móveis, figurinos e documentos (não se sabe se o testamento chegou nesse veículo). >
As duas se comprometeram a enviar os itens para Gabriel, que vai decidir se eles farão parte da fundação. Entre os artigos, está o vestido preto escolhido por ela para subir ao palco do mítico Wiltern Theatre, no show com Tom Jobim, em Las Vegas, em 1987.>
Os figurinos foram emprestados à atriz Sophie Charlotte, quando ela se preparava para interpretar Gal no filme “Meu Nome é Gal”, lançado em 2023. Das mãos de Sophie, os figurinos passaram para as de Priscila Trummer, produtora e amiga das primas de Gal, que vive no Rio. >
“Tenho um cômodo da casa só para os artigos de trabalho e as roupas de Gal estão lá. É um ambiente preparado com umidificação, para não danificar as peças. Elas já foram catalogadas, higienizadas e um reparo de um vestido foi feito por uma especialista”, conta.>
Uma das diretoras do filme que conta parte da história de Gal, Lô Politi ressalta que as roupas ajudam a contar histórias. >
“Ajudam a mostrar às pessoas quem foi Gal. Na verdade, não quem foi, mas quem é e sempre será. Ao contrário de outros artistas, as pessoas não conheciam detalhes da sua história e seus posicionamentos, por exemplo. Ela não se mostra pelo discurso, mas pela presença e comportamento”, diz. >
"Gal já era gigante e, quando morreu, a gente pode ter mais noção ainda dessa grandeza. A expectativa quanto a história dela cresceu ainda mais”, concluiu. >