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Como é o Natal de pessoas com demência que esquecem a tradição da festa e os próprios filhos

Especialistas dão dicas do que os familiares podem fazer no dia 24 para evitar prejuízos para quem tem o diagnóstico de algum tipo de demência

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 21 de dezembro de 2024 às 02:00

Maria José Lima tem 85 anos e foi diagnosticada com alzheimer há 9 anos
Maria José Lima tem 85 anos e foi diagnosticada com alzheimer há 9 anos Crédito: Arquivo Pessoal/Beto Castro

Há 11 anos, a família de Telma Saraiva, de 70 anos, perde aos poucos a magia do Natal. Desde o recebimento do diagnóstico de alzheimer, a cada mês de dezembro, ela compreende menos o que a data significa. A forma de celebrar de antes já não é mais lembrada. Era casa cheia, com amigo secreto e bingo que organizava, peru e docinhos que fazia, presentes que comprava. Agora, o dia 24 é apenas um dia qualquer.

Telma sempre foi a organizadora do Natal da família de 12 irmãos e mais de 30 sobrinhos. Sempre adorou reunir todo mundo naquela bagunça boa. Com o avanço do alzheimer, sair da rotina se tornou estressante. Ela fica irritada com muita gente presente. O barulho das conversas é angustiante. Levou um tempo, mas a família entendeu, apesar da frustração, que o Natal precisava ser diferente.

No próximo dia 24, sem tirá-la de casa e respeitando a rotina e horários dela, vai ter uma pequena ceia (sem os docinhos que ninguém sabe fazer como Telma), uma música natalina de fundo, uma fotografia para registrar o momento apenas com o esposo e os dois filhos.

Telma Saraiva tem 70 anos e foi diagnosticada com alzheimer aos 59
Telma Saraiva com o marido Moacir e os filhos Mateus e Raquel Crédito: Arquivo Pessoal/Mateus Saraiva

O Natal de Maria José Lima, de 85 anos, vai ter só a presença do filho e da cuidadora. Beto Castro, de 51 anos, lembra com pesar de quando ia com a mãe, sem ter muitos parentes em Salvador, para a casa de amigos nos dias 24 e, em seguida, para a missa do galo. Há nove anos, quando o alzheimer foi descoberto, o Natal tem outra cara.

Logo no início da noite, na casa que decorou com a ajuda da mãe, ceia com ela e a cuidadora, com as músicas de Simone ao fundo. Ela adora música e até é capaz de lembrar trechos das letras e cantar. Também adora comer e não pode ver um alimento na frente. Mas não consegue conversar e já não reconhece mais o filho.

Por volta das 20h, quando Maria José dorme, Beto vai sozinho à casa de algum amigo tentar resgatar o espírito natalino. “Além das limitações de mobilidade, ela estranha muito os ambientes quando sai de casa, não fica confortável, se incomoda muito com barulho. É triste, mas tenho que respeitar”, compartilha.

Maria José já não reconhece mais o filho
Maria José já não reconhece mais o filho Crédito: Arquivo Pessoal/Beto Castro

O papel da família

A psicóloga Larine Aquino, que atende pacientes com demência, explica o que acontece. “É comum, principalmente na fase inicial, que apresentem vontade de isolamento social porque eles sabem que vão estar em evidência, têm medo de apresentar comportamentos inadequados porque já não são mais capazes de controlar tudo. Têm medo de não reconhecer alguém presente ou se perder num ambiente diferente.”

A dica da psicóloga é que a família respeite as limitações e esteja sempre atenta ao comportamento da pessoa com demência, já que a verbalização dos incômodos pode não acontecer. O geriatra Leonardo Olivia, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), alerta ainda que, se a escolha for realmente por levar a pessoa à festa, é preciso ter um plano B e ir embora assim que necessário.

“Pode haver agitação, ansiedade, nervosismo e até agressividade. A gente entende a frustração, entende que a família quer que a pessoa participe, mas, às vezes, seria um benefício apenas para a família e um prejuízo para o idoso”, destaca o geriatra.

Larine recomenda a inserção do idoso em atividades mais simples, como enfeitar a casa para o Natal e a reunião de poucas pessoas, com apenas aquele núcleo reduzido dos filhos. “Prepare uma comida que ela gosta. As músicas são muito importantes para os pacientes com demência. Também pode ser positivo apresentar álbuns de fotografias, mas sem esperar que a pessoa reconhece quem está nas fotos”, indica.

“Ao invés de perguntar quem é, diga quem é. Ao invés de perguntar se a pessoa lembra de você, diga quem você é. Ao invés de perguntar que dia é hoje, diga que é Natal. Se a pessoa repetir muitas vezes a mesma coisa, não a repreenda, entre no jogo”, acrescenta Larine.

O que acontece com a memória?

O comprometimento da memória está inserido na deterioração gradativa das funções cognitivas, que pode ser entendida como sinônimo de demência. A demência não é uma característica normal do envelhecimento, mas uma doença que não afetará todos os indivíduos. O geriatra Leonardo Oliva destaca: "Não devemos achar que sintomas de esquecimento ou outros alertas são normais da idade, isso é preconceito. A qualquer sinal diferente, é preciso procurar médicos especialistas", coloca. 

O alzheimer é o tipo mais comum de demência. Também há outros tipos, como a vascular (segunda mais comum), que acontece quando a irrigação sanguínea é comprometida (ocorrência de AVCs, por exemplo), e a frontotemporal, que acomete a parte da frente do cérebro e gera rapidamente uma alteração de comportamento.

Esta última é a demência que acomete o ator Bruce Willis e o ex-jornalista da Globo Maurício Kubrusly, que tem 79 anos e mora agora no Sul da Bahia. Ele já não lê, não escreve, fala pouco, anda pouco e reconhece apenas a esposa, Beatriz Goulart. O documentário da Globoplay "Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí" foi lançado em dezembro e conta os detalhes da situação de Kubrusly.

O geriatra Leonardo Oliva pondera que questões, por vezes reversíveis, também podem causar o mau funcionamento do cérebro, como AVC, presença de líquido em excesso no cérebro, hipotireoidismo, deficiência de vitamina B12, sífilis e HIV. As demências vascular e frontotemporal citadas acima não têm cura, assim como o alzheimer, que pode ser de dois tipos.

O alzheimer familiar, também chamado de alzheimer genético, é mais raro e acomete o indivíduo mais cedo. Enquanto o alzheimer comum chega por volta dos 65 anos, o familiar pode chegar até 10 ou 15 anos antes. Ele também evolui mais rapidamente e pode ser identificado por teste genético. “Um filho ou filha de um pai ou uma mãe com alzheimer familiar tem 50% de chance de desenvolver a doença”, explica o geriatra.

“Já no alzheimer comum, esse fator genético entra apenas como um fator de risco, junto com outros fatores como tabagismo, etilismo, diabetes, hipertensão, isolamento social e até baixo letramento”, acrescenta. Segundo os especialistas, uma excelente forma de prevenção é a manutenção dos aprendizados; ensinar algo novo ao cérebro pode protegê-lo contra a instalação da demência.

Um relatório nacional sobre demência, divulgado pelo Ministério da Saúde este ano, aponta que cerca de 8,5% da população com 60 anos ou mais convivem com a doença, representando um número aproximado de 2,71 milhões de casos. Até 2050, a projeção é que 5,6 milhões de pessoas sejam diagnosticadas no país.

Por que o Natal é esquecido?

Como explica Leonardo Oliva, o alzheimer é a manifestação da doença degenerativa que causa a morte dos neurônios, que são as células do cérebro. A perda de memória recente costuma chegar primeiro porque é a área do cérebro responsável por ela, o hipocampo, que é acometida primeiro. É lá onde está a chamada memória de trabalho, responsável pela lembrança dos compromissos, de uma lista de compras, do manejo das finanças, do controle dos remédios.

Como a doença é progressiva, a memória do passado só será afetada mais tarde. Os esquecimentos vão ficando mais graves, a capacidade de verbalizar vai ficando reduzida, o comportamento muda. A pessoa pode ter alucinações e delírios e até agredir e ofender quem está ao redor. As funções motoras também são afetadas e passa a ser difícil ou impossível se alimentar, tomar banho e ir ao banheiro sozinho, por exemplo.

Telma Saraiva, que foi citada no início da reportagem e diagnosticada aos 59 anos, tem a capacidade física bastante preservada e, apesar de 11 anos da doença, anda sozinha e sobe todos os dias as escadas da casa onde mora. O filho Mateus, de 33 anos, explica que a família apostou na preparação física, mas, apesar de poder, ela não entende o que deve fazer.

“A gente coloca a escova de dentes na frente dela e ela coloca no cabelo, então a gente precisa explicar que aquilo ali é para escovar os dentes. A pessoa fica sem ter noção mesmo do que faz. Então ela não tem mais noção das datas comemorativas, não sabe mais o que é Natal”, diz.

Como lidar com isso?

Filho de Telma, Mateus lembra de quando a mãe começou a apresentar os primeiros sintomas. “A gente via a angústia dela de estar esquecendo. Ela era muito jovem ainda, muito ativa. Não aceitou de jeito nenhum o diagnóstico, disse que o médico estava mentindo e enganando a família”, relata.

Telma não aceitou fazer terapia, mas o marido e os filhos logo recorreram à ajuda de psicólogos. “A família toda vai adoecendo, é um adoecimento coletivo porque a sensação é que estamos enxugando gelo. O esforço só aumenta ao longo do tempo e a pessoa só piora”, desabafa Mateus.

Beto, filho de Maria José, também lembra do primeiro estágio. “Minha mãe viu o papa na televisão e dizia que era um amigo dela, confundindo as pessoas. Fomos a um chá de fraldas de uma amiga e ela tratou muito mal uma pessoa que nem conhecia. Foi um choque para mim, eu acho que quem mais sofre é quem está ao redor mesmo. Me sinto muito impotente”, compartilha.

“Eu sonho com minha mãe sã, acordo e demora um tempo para cair a ficha de que ela não está mais daquela forma do sonho. Bate uma saudade porque minha mãe está aqui, mas não é mais a minha mãe, eu sinto saudade da mãe que ela era”, acrescenta ele.

Beto já fazia terapia e, após o diagnóstico da mãe, o acompanhamento foi ainda mais necessário. “Eu precisei aceitar o diagnóstico, ir me acostumando. Quando ela esqueceu meu nome, isso doeu, mas eu me acostumei. Trabalho muito também para não pensar no futuro, em como ela vai estar no Natal de 2025”, diz ele.

A psicóloga Larine Aquino destaca o papel do acompanhamento psicológico tanto para o portador de demência quanto para os familiares. “Quem tem demência precisa de ajuda para lidar com as incertezas sobre o futuro, o medo de perder o controle da própria vida, principalmente se for numa fase inicial na qual ainda tem compreensão do que significa o diagnóstico” explica.

Quanto aos familiares, Larine defende que é preciso estar fortalecido para fortalecer alguém e aprender a lidar com o que chama de ‘luto em vida’. “A pessoa continua viva, mas começa a deixar de ser quem ela é, então quem está ao redor passa por um luto simbólico. Saber o que está por vir, conhecer a doença, aprender a lidar com a pessoa e ter sempre contato com profissionais é fundamental nesse processo”, finaliza.