Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 23 de fevereiro de 2025 às 14:00
Quando a série coreana Round 6 foi lançada originalmente, em setembro de 2021, um dos aspectos que mais chocou os espectadores foi a retratação gráfica da violência em brincadeiras infantis. O apelo das referências que incluem desde cabo de guerra e estátua até bolinhas de gude, contudo, fizeram com que a série chamasse a atenção das crianças e alertasse pais e responsáveis. >
Pouco mais de quatro anos depois, o lançamento da segunda temporada, no fim de dezembro, motivou que outras instituições fizessem um alerta semelhante às famílias. Na última semana, as escolas Gurilândia e Land School, do Inspired Education Group, enviaram um comunicado às famílias justamente após perceber o retorno das referências à produção da Netflix. >
No texto, ao qual o CORREIO teve acesso, o Núcleo de Apoio ao Estudante da instituição diz contar com o apoio dos pais para ‘preservar a infância das crianças e promover um ambiente escolar acolhedor e seguro’. “Nestes primeiros momentos de aula, temos observado entre as crianças diálogos pontuais e a reprodução de brincadeiras inspiradas na série Round 6, da plataforma Netflix”, informam. >
A nota lembra que a série tem classificação indicativa de 18 anos e que, embora aborde jogos que podem parecer brincadeiras infantis, estes são apresentados em contexto de extrema violência, punições severas e consequências irreversíveis. Para as escolas, conteúdos do tipo podem impactar o desenvolvimento emocional e psicológico das crianças, além de influenciar a forma de brincar e interagir com os colegas. >
“Nosso compromisso, enquanto instituição educativa, é garantir um ambiente seguro e saudável para a aprendizagem e o desenvolvimento integral dos alunos. Por isso, reforçamos a importância de que as famílias acompanhem de perto o que as crianças assistem e conversem com elas sobre os conteúdos consumidos”, acrescentam. >
Com as aulas tendo começado há poucas semanas, o episódio ainda é algo novo. Procurado pela reportagem, o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado (Sinepe), que representa as escolas particulares, disse ainda não ter relatos de casos em outras instituições. >
Orientação>
Em entrevista ao CORREIO, a diretora pedagógica do Inspired Education Group, Adriana Kac, explicou que a organização já tem o costume de promover encontros de orientação com as famílias e que esse assunto foi abordado em todas as escolas do grupo, especialmente na época do boom com a estreia da primeira temporada. >
No entanto, com a segunda temporada mais recente, os educadores identificaram episódios nas escolas de Salvador. O Inspired Education Group tem quatro instituições na cidade: duas Gurilândia (do grupo 1 à 5ª série) e duas Land School (que vão até o ensino médio).>
"Nós percebemos que nossos alunos eram afetados desde a idade de 8, 9 anos. Em geral, não eram programas que eles queriam ver, mas que um irmão ou irmã mais velha, por exemplo, via e eles eram expostos. Com a deliberação de ver a temporada, de abrir em casa para assistir, (houve casos) a partir dos 11 anos. Tivemos que trabalhar com esses grupos, porque eles estavam recomendando uns aos outros", conta Kac. >
Uma situação semelhante ocorreu na época do lançamento da série 13 Reasons Why, em 2017. Na produção, também da Netflix, uma adolescente comete suicídio e deixa fitas de áudio gravadas contando os motivos pelos quais decidiu fazer isso. Segundo a diretora, naquele período, crianças e pré-adolescentes que não assistiam ou que não tinham o mesmo grau de acesso às plataformas de streaming, por vezes, eram até deixadas de fora de rodas de conversa porque não sabiam falar sobre o tema. "Havia uma pressão do grupo maior para que todos assistissem". >
Isso porque, de acordo com Kac, o caso de Round 6 é apenas um exemplo entre muitos conteúdos e programas disponíveis na internet, incluindo o YouTube, as redes sociais e as plataformas de streaming. >
"Hoje em dia, filhos adolescentes, pré-adolescentes e até crianças têm uma vida muito além das famílias. As ferramentas e acessos que as crianças usam são iPads individuais, celulares individuais e televisões dentro do quarto. Tem pouca visibilidade das famílias quanto ao que de fato o filho está vendo, que tipo de mídia está consumindo", explica. >
Tópicos como o plot central de Round 6, além disso, não costumam ser tema de conversa em muitas famílias. Na trama, pessoas com dificuldades financeiras aceitam participar de um jogo de sobrevivência em troca de um prêmio em dinheiro. Por isso, segundo a diretora, a escola entra nesse lugar de alertar às famílias para que observem o que os filhos podem estar acessando. >
"Existe uma banalização e uma glamourização da violência. Em alguns lugares, isso pode estar associado ao crime ter se tornado foco de muitos programas e séries. Em outro, é simplesmente algo ligado a adrenalina, susto, raiva. Gera um pico de adrenalina naquele que está assistindo e que, de certa forma, tem um vínculo que se estabelece de que aquele tipo de programa é excitante de ver. Isso imprime, na cabeça da criança, a ideia de que a violência é algo corriqueiro e, às vezes, até desejável", analisa Adriana. >
Isso não significa dizer que toda criança ou adolescente que assistir uma produção como Round 6 vai tentar reproduzir esses comportamentos na vida - não é algo direto assim. Contudo, a imagem da violência pode se tornar algo que faz parte do imaginário da criança. O resultado é que a criança pode ter uma reação desafetada ou desinteressada diante de episódios de violência. >
"Se eu vejo frequentemente a violência, o soco, ou trato o soco como algo glamourizado, ao ver um colega ser agredido, posso ter uma reação desafetada. Posso ter uma reação que não é o que a gente espera, que é uma reação de horror, repúdio e de buscar um adulto para intervir e cessar". >
Inicialmente, na época em que foi lançada, Round 6 foi classificada para 16 anos. Depois, passou a ter indicação de 18 anos pelo Ministério da Justiça. Segundo a pasta, a obra foi descrita como tendo conteúdo sexual, drogas lícitas e violência extrema. >
O problema é que, na era dos streamings e de assistir a conteúdos por demanda, as indicações de idade perderam parte do filtro que tinham. Enquanto a televisão aberta e o cinema ainda continuam vetando conteúdos por idade e horário, a internet permite que eles sejam acessados facilmente por qualquer pessoa, em qualquer horário. >
"A gente precisa se antecipar", diz Adriana Kac. "Hoje em dia, (o conteúdo) está dentro da casa deles, dentro do quarto deles, de porta fechada, na madrugada, que é o momento mais sensível. Quanto mais a imagem da violência for banalizada, mais toma um lugar de algo que é comum ou excitante". >
Ainda que Round 6 seja apenas um exemplo entre outros casos semelhantes, a série coreana tem, por outro lado, uma particularidade: o uso das brincadeiras infantis. "Nesse contexto, as brincadeiras ganham um elemento de terror e a infância se torna algo aterrorizante. Há uma invasão gigante ao imaginário infantil ao que seria a cultura infantil, que se apropria de elementos dessa cultura. É uma perversidade adicional". >
Brincadeiras>
As brincadeiras fazem parte do cotidiano das crianças, como explica a pesquisadora Ilka Bichara, professora titular aposentada da Universidade Federal da Bahia (Ufba), docente do programa de pós-graduação em Psicologia e líder do grupo de pesquisa 'Brincadeiras em contextos culturais'. >
Brincando, a criança aprende normas sociais, desenvolve aspectos emocionais e a cognição, assimila a cultura e transforma a cultura. "As crianças inventam novos jogos, novas regras. Ao fazer isso, elas estão criando cultura. O brincar livre é fundamental para o desenvolvimento", afirma ela, citando estudos da neurociência moderna que apontam que o cérebro infantil é ativado em várias áreas durante uma brincadeira. >
Já o cotidiano que se torna referência pode ser inspirado por aspectos encontrados em livros, filmes, jogos, em casa ou na escola. "Isso é perfeitamente corriqueiro e normal. As crianças assistem e, se acham engraçado ou se provoca uma curiosidade, elas levam para seu grupo de brinquedo como forma de entender aquilo", diz. >
Ou seja: a brincadeira com referências, em si, não é um problema e é até algo esperado. "Se a criança está assistindo a série e indo brincar, para ela, é a mesma coisa que se tivesse vendo Chaves, a novela das 6 ou Frozen. É a mesma coisa, porque ela não discrimina o que é próprio ou impróprio. Quem deve fazer isso são os pais". >
O questionamento no caso de Round 6 nas escolas de Salvador, para a pesquisadora, deve ser por que motivos as crianças estão tendo acesso a esse tipo de conteúdo. "A escola está certa em alertar os pais sobre o que elas estão assistindo. A questão é se os pais estão sabendo ou estão controlando o que elas assistem", diz Ilka. >
Segundo a professora, as plataformas de streaming funcionam como outras plataformas da internet - são como um ambiente público. Assim como as famílias não deixariam um filme pequeno acessar a internet sem supervisão, deveriam fazer o mesmo com plataformas de filmes e séries. Uma saída recomendada por ela é bloquear certos conteúdos nos streamings. >
"É responsabilidade dos pais fazer isso em sua casa. O professor não vai estar dentro de casa para regular o que a criança assiste", pondera. "Especialistas classificaram que crianças não devem ver certos conteúdos não só porque podem ficar com medo, mas porque vão ter dificuldade de compreender", diz.>
A exposição à violência, na avaliação da professora, é uma questão polêmica que deve ser objeto de atenção. Para Ilka, a criança não deve crescer achando que não existe a violência, mas o acesso a esse conteúdo é que deve ser discutido. >
"Uma série da Netflix é a melhor forma de mostrar a crianças que o mundo é violento? Acho que não, até porque não se trata da violência com a qual estamos vivendo. É uma fantasia. A criança entende que aquilo é fantasia e não é a realidade? Vai depender da idade. Uma criança sabe discriminar desenhos de filmes com pessoas. Sabe que desenho é fantasia. Mas só a criança mais velha vai saber diferenciar a fantasia de um filme com pessoas", argumenta. >
Fenômeno >
O criador de Round 6, Hwang Dong-hyuk, já disse explicitamente que a obra não é para crianças. Ele declarou em entrevistas anteriores que não esperava tanto sucesso da série e se disse chocado por crianças estarem vendo. Produzida na Coreia do Sul e no idioma coreano, Round 6 é a série mais assistida da história da Netflix, quando se analisa a escala global. Ela superou todas as produções em língua inglesa da plataforma, inclusive hits como Wednesday (Wandinha, no Brasil), Stranger Things e Bridgerton. >
Até este domingo (23), de acordo com o streaming, a primeira temporada de Round 6 teve mais de 265 milhões de visualizações, o que contabiliza 2,2 bilhões de horas assistidas. Enquanto a primeira temporada é a detentora de todos os recordes globais, a segunda temporada vem na sequência do ranking das séries em língua não-inglesa, com 185 milhões de visualizações e 1,3 bilhão de horas assistidas. >
Os episódios mais recentes são a terceira temporada mais assistida da lista global (ficam atrás da primeira temporada da própria série e de Wandinha, que teve 252 milhões de visualizações e também caiu no gosto das crianças). >
Uma reportagem do CORREIO publicada em outubro de 2021 explicou como a Round 6 se tornou um fenômeno global por meio do boca a boca. Sem muito investimento em marketing, os resultados surpreenderam a própria Netflix. A curiosidade com a simbologia da série e a crítica social foram fatores apontados para despertar a atenção de tantos espectadores. >
Além disso, apesar de ser ambientada na Coreia do Sul atual, é como se a série fosse uma distopia. Não é como a franquia americana Jogos Vorazes ou o filme japonês Battle Royale, já que os participantes do jogo de vida ou morte em Round 6 escolheram estar ali. A eles, é oferecido inclusive a possibilidade de acabar com o jogo, mas os personagens decidem retornar.>
"Eles escolhem voltar porque o sistema é falido. Na realidade, as escolhas não existem. A falta de escolha no dia a dia e a falta de esperança indicam um potencial de ganhar lá. Pelo menos lá, eles vão morrer tentando", analisou a pesquisadora Daniela Mazur, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com estudos sobre a hallyu (onda coreana), na ocasião. >
A reportagem mostrou ainda que, naquela ocasião, pelo menos uma escola - o Colégio Montessori, em Cruz das Almas - também fez um comunicado às famílias sobre as crianças que tiveram acesso à obra. “São conteúdos explícitos na série: violência, tortura psicológica, suicídio, tráfico de órgãos, cenas de sexo, palavras de baixo calão, entre outros”, dizia o informe. >
Outros alertas semelhantes foram feitos em instituições de ensino de outros estados. Até a Secretaria da Justiça, Família e Trabalho do Paraná emitiu um posicionamento nesse sentido, em outubro de 2021. Na época, o Departamento de Justiça do órgão divulgou um alerta para a Rede de Proteção à Infância recomendando que pais e responsáveis ficassem atentos e orientassem crianças e adolescentes quanto ao conteúdo da série.>
A terceira e última temporada de Round 6 tem estreia prevista para 27 de junho. >