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Carolina Cerqueira
Publicado em 26 de maio de 2024 às 05:00
Do lado de fora, as paredes totalmente brancas e a discreta placa na porta onde está escrito Barracão das Artes enganam. Dentro, uma explosão de cores e sons. O espaço abriga instrumentos musicais, figurinos, pinturas, fotografias, livros, tecidos e arcos circenses pendurados no teto. Restrição é uma palavra que não cabe ali. Não mais.
Aquela sala e as outras vizinhas, no Forte do Barbalho, serviram como prisão e centro de tortura durante a ditadura militar. Hoje, respiram liberdade através da arte. Se aquelas paredes pudessem falar, teriam infinitas histórias para contar desde o século XVII, quando foram erguidas.
Se aquelas paredes pudessem falar, teriam infinitas histórias para contar desde o século XVII, quando foram erguidas. Com a pintura retirada e transparecendo um aspecto de ruína, denunciam que estão ali há muito tempo, mas que alguém lhes deu um toque de modernidade descolada.
Quando o diretor teatral Fábio Viana, 50 anos, chegou ali em 2011 para instalar o Barracão das Artes, as paredes já eram assim, mas estavam escondidas. Ele descobriu o espaço através do acervo de figurinos Boca de Cena, que também ocupa o Forte, e viu que havia uma sala desocupada.
“Nos deparamos com um depósito. Era muito entulho, pedaços de madeira, latas de tintas velhas, muita sujeira. Fizemos um mutirão de limpeza e depois fomos cuidando da parte elétrica, da estrutura, dos equipamentos”, lembra Fábio, que é fundador e diretor do projeto.
Formado em Filosofia, ele também fez Direção teatral na Escola de Teatro da Ufba, mas não concluiu a segunda faculdade. Em Cuba, fez o curso de Cinema da Escola internacional de San Antonio de Los Banos.
O Barracão das Artes oferece aulas gratuitas de teatro, música, dança, literatura, poesia, artes circenses, capoeira, karatê e boxe para cerca de 200 alunos, de crianças a idosos. Funciona graças ao trabalho de professores voluntários, editais e apoio de empresas privadas.
Mas hoje mantém as portas abertas sem nenhuma ajuda financeira. O projeto aguarda sua vez como suplente de um edital para artes cênicas da Secretaria de Cultura da Bahia (Secult-BA).
Arte em qualquer lugar
Uma das ações de apoio que ajudava o local a manter-se de pé era o Festival Barracão das Artes, que aconteceu de 2014 a 2018, movimentando todo o Forte com desfiles de moda, peças teatrais, música ao vivo e competições esportivas. A meta para 2024, é retomá-lo.
O nome foi escolhido para não deixar ninguém esquecer que a arte pode estar em qualquer lugar. “É uma referência aos barracões onde acontecem os ritos do candomblé, às tabas indígenas, aos galpões abandonados, aos espaços populares”, explica Fábio.
O projeto nasceu um ano antes de chegar ao Forte e funcionava no Alto da Terezinha, Subúrbio Ferroviário de Salvador, a partir de um sonho: democratizar o acesso à cultura. “Tanto para quem quer fazer arte quanto para quem quer assistir”, diz o diretor.
A formação de plateia é um dos pilares do Barracão, recebendo muitos estudantes de escolas públicas e moradores de todas as idades de bairros periféricos.
Mas não só eles. “Vem também gente da Pituba, do Horto, da Graça”, conta. O encontro de públicos diferentes nas apresentações, ensaios abertos, rodas de conversa e bate-papos após os espetáculos encanta Fábio. “O Barracão passa a sensação de que a cultura é para todos. E todos se sentem pertencentes, enxergam a arte como popular”, destaca.
As apresentações nunca são somente de teatro, música ou dança. No Barracão das Artes, há sempre uma integração de linguagens artísticas. No último espetáculo, por exemplo, em homenagem aos 110 anos de Dorival Caymmi, nos dias 10 e 11 de maio, havia teatro, poesia, dança, canto e arte circense.
Arte que conecta
Um dos atores era Vitor Santana, 18 anos. Ele está no projeto há dois anos e começou fazendo aulas de teatro e circo. Logo depois, passou a também dar aulas de capoeira no Barracão através do projeto Ginga Menino.
Quando o CORREIO chegou à sala no Forte do Barbalho para a reportagem, ele estava tocando berimbau cercado de 11 crianças que cantavam músicas de capoeira embaladas também na palma da mão.
“Não é só um esporte. Elas estão fazendo uma atividade física, dançando, cantando, tocando e aprendendo sobre cultura e história”, analisa Vitor. Ele começou na capoeira aos 8 anos, como aluno do mesmo projeto no qual hoje é professor.
“Eu pude fazer aulas gratuitas e hoje quero que outras pessoas tenham a mesma oportunidade que eu. Quero devolver para a cultura o que a cultura me proporcionou”, acrescenta.
Raynne Teles, 25 anos, é colega de Vitor no teatro. Ela participava de um projeto de teatro durante a infância e, quando descobriu o Barracão, se reencontrou no palco. “O teatro me desafia, sempre tive uma trava em público e o teatro me ajuda muito. Aqui eu me sinto bem, ninguém julga ninguém, eu posso ser quem sou”, avalia.
Hoje, no final das contas, o friozinho na barriga antes das apresentações empolga Raynne, que também sente falta das aulas e ensaios quando não consegue ir. “Aqui é como uma terapia”, diz. Ela tenta participar do máximo de aulas possível e também faz circo e percussão
Esta última, é ministrada pelo percussionista Marcus Musk, 47 anos, que também confecciona os instrumentos utilizados nas aulas.
Ele é luthier de muitos instrumentos utilizados pela banda de artistas como Carlinhos Brown, Ivete Sangalo, Saulo, Psirico, Àttooxxá, Timbalada. De congas, djimbês, alfaias, timbaus, pandeiros e agogôs saem “sons que refletem na alma”, como Marcus gosta de definir seu trabalho
O músico chegou à equipe de voluntários do Barracão este ano, mas diz que parece ter bem mais. “Já ouvi tantas histórias, já vivi tanta coisa. Fico imaginando as preciosidades disso aqui desde o comecinho, lá em 2010”, diz ele, que lembra bem do momento em que conheceu o projeto.
“Eu ouvia falar que era um lugar de conexões e fiquei curioso. Quando eu cheguei lá, estava tendo aula de capoeira, depois teve de karatê e, mais tarde, de teatro. Fiquei conversando com os professores e alunos. Foi impressionante sentir o local, o clima, a energia. Ficou claro que era um lugar de entrega afetiva com uma missão muito bonita”, lembra o professor.
Marcus já ministrou aulas gratuitas antes, no Parque de Pituaçu, e o que mais o encanta são os casos de alunos que, a partir das aulas, descobrem uma profissão. “A pessoa pode ir de curiosa e descobrir um dom a ser aflorado”, destaca o percussionista.
Arte que transforma
Esse é o caso de um jovem de 18 anos, morador do Pela Porco, em Macaúbas, que apareceu no Forte há seis anos e hoje atua como músico. O início dessa história, porém, foi diferente. Fábio Viana lembra que ele chegou tímido e curioso, como muitos. “Eles ficam sem saber se podem entrar, se aquele lugar é para eles, se têm que pagar para estar ali”, completa o diretor.
Viana notou a presença do garoto e o convidou para entrar. Ele não sabia atuar, dançar, cantar ou tocar nenhum instrumento. Mas tinha um ouvido musical, “uma música adormecida por dentro”, como analisa Fábio. O garoto, então, começou a participar das aulas de dança e percussão.
Um dia, chegou com um embrulho na mão, algo enrolado em um pano, e pediu para falar com Fábio. O menino entrou na sala e entregou o embrulho nas mãos do diretor.
“Quando eu abri, era uma arma. Eu perguntei, tentando passar calma, por que ele estava me entregando aquilo. Ele me disse: ‘Não quero mais isso comigo, não quero mais essa vida. O Barracão me mostrou que minha arma pode ser outra’”, lembra Fábio.
O diretor conta que deu um abraço no garoto e guardou a arma. Depois, em contato com uma assistente social, conseguiu dar um destino correto ao artifício. “Eu perguntei, sem julgamentos, se ele já tinha feito algo com aquela arma. Ele me garantiu que não. ‘Bote fé’, professor’. E eu botei fé”, diz o diretor.
Com uma média de dois espetáculos por ano, o Barracão das Artes coloca em prática os ensinamentos das aulas para a plateia desde 2012. Seja no Espaço Cultural da Barroquinha, no próprio Barracão das Artes ou ainda no Teatro Gregório de Mattos e na Sala do Coro do TCA. São encenações inspiradas em Glauber Rocha, Mãe Stella de Oxóssi, Vinicius de Moraes, Ariano Suassuna e até Platão.
No primeiro semestre deste ano, estreou o espetáculo Caymmi e o Mar, em homenagem aos 110 anos do cantor e compositor soteropolitano que morreu em 2008, aos 94 anos. Em homenagem ao autor de Modinha para Gabriela, a primeira temporada aconteceu nos dias 10 e 11 de maio.
A segunda temporada, com outras três sessões, vai acontecer nos dias 19, 20 e 21 de junho, às 19h, também no Barracão. Os ingressos funcionam no esquema “pague quanto puder”.
Como conta o diretor Fábio Viana, a peça é baseada em 10 canções de Dorival Caymmi, que são executadas ao vivo pelos atores. Em diálogo com a arte circense, também são feitas sequências coreográficas em tecidos suspensos no ar.
“Foi uma tarefa difícil fazer a curadoria e escolher essas canções, diante da vasta obra de Caymmi. Mas, a ideia é apresentar um resumo de sua contribuição cultural. Caymmi é uma das entidades da Bahia e deixou um legado incrível. Ele conseguiu projetar Salvador para o mundo através da música”, destaca Fábio Viana.
Inscrições para as aulas do segundo semestre poderão ser feitas a partir do dia 10 de junho, através do preenchimento de formulário (link na bio do Instagram)
Para doar materiais como elementos cenográficos, figurinos, tecidos, instrumentos musicais, livros e fardamentos de karatê, boxe e capoeira, entre em contato através dos canais a seguir: Site: https://barracaobtsn.wixsite.com/barracao | WhatsApp: (71) 99164-4537 | Endereço: End: Rua Marechal Gabriel Bota Fogo, S/N, Barbalho | E-mail: [email protected] | Instagram: @barracao _ das _ artes