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Cartas de alforria encontradas revelam que Maria Quitéria e Joana Angélica eram donas de escravos

Banco de dados reúne 20 mil cartas registradas em livros de notas na Bahia

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 11 de janeiro de 2025 às 05:00

Carta de alforria de Mauricio, concedida por Maria Quitéria
Carta de alforria de Mauricio, concedida por Maria Quitéria Crédito: Arquivo Público do Estado da Bahia

Entre os escritos difíceis de ler no português arcaico das quase 20 mil cartas de alforria, dois nomes saltaram aos olhos do historiador e pesquisador Urano Andrade, de 52 anos. Joana Angélica e Maria Quitéria. Nos documentos, as personagens históricas da independência do Brasil na Bahia concedem liberdade a escravizados dos quais eram donas.

A carta assinada por Joana Angélica comprova que ela foi dona de Florinda de São José, que aparece entre seus bens, e ainda a passou para duas irmãs do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa. O documento é de 1816, mas a data de registro em cartório é de 1824, o que indica que a alforria foi condicionada à morte da dona, que aconteceu em 1822. A condicionante é comumente encontrada nas cartas.

"A liberto de hoje para sempre e poderá gozar de sua liberdade como se nascesse livre do ventre de sua Mãe", diz um trecho da carta. Confira a foto e a transcrição completa a seguir:

Carta de alforria de Florinda, concedida por Joana Angélica
Carta de alforria de Florinda, concedida por Joana Angélica Crédito: Arquivo Público do Estado da Bahia

Carta de Liberdade de Florinda de São José:

Digo eu a Madre Abadessa Soror Joanna Angelica de Jesus que entre os bens que possui esta Religiosa comunidade é bem assim uma escrava de nome Florinda de São José, a quem foi dada a Madre Joanna Maria de Jesus e Madre Anna Maria da Encarnação para o seu serviço dentro desta clausura a que a dita escrava a liberto de hoje para sempre e poderá gozar de sua liberdade como se nascesse livre do ventre de sua Mãe. E para clareza passo esta por mim assinada. Bahia, e Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa 22 de junho de 1816. Soror Joanna Angelica de Jesus, Abadessa. Soror Joanna Maria das Chagas Escrivã, Soror Thomazia Maria do Coração de Jesus Disereta, Soror Maria Bernardina do Paraíso Disereta. Reconheço as firmas supra. Bahia, 27 de fevereiro de 1824, estava o sinal público, em testemunho de verdade. Francisco Teixeira da Mata Bacelar. Ao Tabelião Mata. Bahia, 27 de fevereiro de 1824. Simões. E nada mais continha a dita carta de liberdade que aqui lavrei da própria que entreguei a quem me apresentou, e abaixo assinei, e com outro oficial concertei nesta Cidade da Bahia aos 28 de fevereiro de 1824, eu Francisco Teixeira da Mata Bacelar Tabelião a escrevi e assinei.

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia - Seção Judiciária. Livro de Notas 210, página 23. 

Já Maria Quitéria era dona do escravizado Mauricio. A alforria dele teria sido avaliada em 400 mil réis, mas, na carta, a heroína da pátria e senhora de escravos a concede por 300 mil réis “por caridade”. A carta é de 1852 e também é assinada por Luiza Maria da Conceição, filha e única herdeira de Maria Quitéria.

"Cuja liberdade lhe permito muito de minha livre vontade, sem levar a terceiro, para que rogo as justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional a façam cumprir e guardar como nela se contem, gozando-a o referido escravo, como se de ventre livre nascesse", diz um trecho da carta. Confira a foto e a transcrição completa a seguir:

Carta de alforria de Mauricio, concedida por Maria Quitéria
Carta de alforria de Mauricio, concedida por Maria Quitéria Crédito: Arquivo Público do Estado da Bahia

Liberdade de Mauricio, nagô:

Ao Tabelião Neves. Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Seixas. Número nove. Cento e sessenta. Pagou cento e sessenta réis. Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Andrade Silva Rego. Pela presente carta assinada por minha filha Luiza Maria da Conceição, única herdeira que tenho, concedo a meu escravo Mauricio nagô sua liberdade pela quantia de trezentos mil réis, o que enquanto o seu valor seja de quatrocentos mil réis, eu lhe perdoo cem mil réis por caridade, recebida a dita quantia ao passar esta, presente as testemunhas abaixo assinadas, cuja liberdade lhe permito muito de minha livre vontade, sem levar a terceiro, para que rogo as justiças de Sua Majestade Imperial e Constitucional a façam cumprir e guardar como nela se contem, gozando-a o referido escravo, como se de ventre livre nascesse. Bahia, nove de outubro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Por Maria Quitéria de Jesus, Luiza Maria da Conceição. Como testemunha que esta escreve a rogo da Senhora Dona Maria Quitéria de Jesus, por em falta de vista Bernardo José Nobrega, Nicácio Jorge Martins, Maria Luiza da Conceição. Reconheço os sinais. Bahia, três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Em fé de verdade sinal público. Francisco Ribeiro Neves. Reportei, me reporto e conferi na Bahia, em três de novembro de mil oitocentos e cinquenta e dois. Eu Francisco Ribeiro Neves, Tabelião de Notas. Por mim escrivão. José Pereira França. Ribeiro Neves.

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro de Notas nº 305, página: 111.

O banco de dados

As duas cartas fazem parte do acervo total de 19.590 que constam nos livros de notas armazenados pelo Arquivo Público do Estado da Bahia. São 1.400 livros, digitalizados em 365 mil imagens. Foi em 2012 que o historiador Urano começou a se debruçar sobre elas, por conta de uma pesquisadora dos Estados Unidos que o procurou.

A professora Kristin Mann, da Universidade Emory, estudava escravos capturados na África e os respectivos destinos deles. Foi então que Urano teve a ideia de buscar as cartas de alforria registradas na Bahia e criar um banco de dados. Também participam do projeto João José Reis, Luís Nicolau Parés e Lisa Earl Castillo.

Os livros encontrados vão de 1664 a 1980. Agora, Urano está no ano 1855. Ele usa a técnica de paleografia para ler o material já em condições precárias, faz a digitalização, destaca os principais pontos e insere na planilha. Também compartilha as descobertas no blog Pesquisando a História.

Imerso por até 18 horas por dia nas pesquisas, ele diz sentir que vive o passado como se fosse o presente e dar vida a pessoas que já morreram há séculos. Chega até a sonhar com os personagens.

Pesquisador e historiador Urano Andrade
Pesquisador e historiador Urano Andrade Crédito: Savio Roiz/Divulgação

“São histórias de vida contadas através desses documentos. Quero narrá-las e preservá-las para que não se percam”, diz. As histórias são fortes e, apesar da empolgação a cada nova descoberta, diversos trechos das cartas são de arrepiar.

As cartas

Enquanto no campo “observação” é possível encontrar a frase “já velha” como justificativa usada para a concessão de algumas alforrias de mulheres, no campo “idade” é possível notar que muitos dos escravizados que ganharam liberdade por essas cartas eram crianças, incluindo casos de bebês de apenas um mês.

Urano explica que é podem ser filhos de escravizados da cidade, que, diferente dos do campo, conseguiam, por vezes, trabalhar e ganhar dinheiro para comprar a liberdade dos filhos. “Mas também são crianças fruto das relações entre as mulheres escravizadas e os seus senhores, como podemos encontrar como justificativa escrita em algumas cartas”, acrescenta.

Uma das histórias narradas que mais marca Urano é a de Anacleta Maria do Rosário. Já liberta, ela encontrou uma de suas filhas, que havia ficado no continente africano, sendo vendida por um homem chamado José Antônio da Costa. Anacleta comprou a filha por 190 mil réis, a mandou batizar com o nome Felicidade e foi a um cartório, sem saber ler ou escrever, pedir que alguém redigisse para ela a carta que concedia a liberdade à filha. Toda a história é narrada na carta que pode ser conferida neste link.

Os documentos costumavam ser assinados pelos donos dos escravizados e, então, levados aos cartórios para registro. Era uma forma de buscar uma garantia de que não fossem reescravizados. “Mas sabemos que a conquista da carta não significava, necessariamente, a conquista da alforria”, pondera Urano.

Os preços

Os valores pagos pelas alforrias registrados no banco de dados vão de 20 mil a 600 mil réis. Urano diz que, quanto mais novos e mais hábeis, mais caros. Tudo era negociado entre escravizado e dono e seguia as regras do mercado, conforme oferta e demanda.

Em 335 cartas, a alforria foi concedida porque o escravizado comprou outro para entregar a seu senhor em troca da própria liberdade. “Era comum que recepcionassem recém-chegados da África para treiná-los e, então, vendê-los a seus senhores porque estes eram os mais caros”, explica Urano.

“Uma das cartas conta que um homem, já liberto, ingressou no ramo de tráfico de escravizados e, ao ir ao continente africano e comprar um homem e uma mulher, deparou-se com um de seus irmãos. O ex-escravizado, então, comprou seu irmão em troca do casal”, acrescenta o pesquisador.

As imagens digitalizadas dos livros de notas encontrados no Arquivo Público do Estado da Bahia, com os registros desde 1664, podem ser consultadas no site do Endangered Archives Programme, mantido pela Biblioteca Britânica. Já o banco de dados organizado em uma tabela, que contém as cartas de alforria de 1800 a 1850, pode ser acessado no Journal of Slavery and Data Preservation Dataverse, com acesso público disponível no repositório de pesquisas acadêmicas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.