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Carta de alforria de 1840 mostra que fundadora do Gantois comprou a própria liberdade por 550 mil réis

Carta faz parte de acervo com 20 mil documentos que registram compras de liberdades na Bahia de 1664 a 1980

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 11 de janeiro de 2025 às 05:00

Carta de alforria de Julia, fundadora do Terreiro Gantois
Carta de alforria de Julia, fundadora do Terreiro Gantois Crédito: Arquivo Público do Estado da Bahia

Entre os escritos difíceis de ler no português arcaico das quase 20 mil cartas de alforria, uma delas saltou aos olhos do historiador e pesquisador Urano Andrade, de 52 anos. A de "Julia de Nação Nagô". O nome, a princípio, não dizia muita coisa, mas, ao analisar a carta como um todo, veio a descoberta. 

Foi pelo nome do dono, Antonio Soares de Sá, e pelo de uma das testemunhas, Manoel José d’Etre, já conhecidos na história do Gantois, que foi possível identificar que tratava-se de Maria Julia da Conceição Nazareth, fundadora do Terreiro Gantois. 

A alforria, comprada por 550 mil réis, foi registrada no dia 8 de outubro de 1840. Nove anos depois, o terreiro foi fundado, nas terras arredadas a Júlia pelo traficante de escravos belga Édouard Gantois.

Veja a transcrição da carta: 

Carta de Liberdade da escrava de nome Julia de Nação Nagô conferida por seu Senhor Antonio Soares de Sá:

Digo eu abaixo assinado que entre os bens de que sou possuidor é bem assim uma escrava de nome Julia de Nação Nagô que por receber dela a quantia de quinhentos e cinquenta mil réis, em moeda legal, a forro e liberto de hoje para sempre, e para seu título lhe passo a presente de minha letra e termo perante as testemunhas abaixo assinadas. Bahia, vinte e cinco de setembro de mil oitocentos e quarenta Antonio Soares de Sá. Como testemunha José Francisco Gonçalves Ramos e Antonio Ferreira Guimarães, Manoel José d’Etre ao Tabelião Tavares. Bahia, vinte e cinco de setembro de mil oitocentos e quarenta. Simões. Reconheço as três firmas das testemunhas supra. Bahia, cinco de outubro de mil oitocentos e quarenta. Em testemunha de verdade estava o sinal público Tiburcio Tavares de Oliveira. A qual carta depois de aqui lançada, conferi, concertei, subscrevi e assinei com outro Oficial companheiro na Bahia aos cinco dias do mês de outubro de mil oitocentos e quarenta. Eu, Tiburcio Tavares de Oliveira, Tabelião a escrevi e assinei.

Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção de Arquivos Judiciários, Livro de Notas número 269, página 48v.

O banco de dados

A carta de Julia faz parte do acervo total de 19.590 que constam nos livros de notas armazenados pelo Arquivo Público do Estado da Bahia. São 1.400 livros, digitalizados em 365 mil imagens. Foi em 2012 que o historiador Urano começou a se debruçar sobre elas, por conta de uma pesquisadora dos Estados Unidos que o procurou.

A professora Kristin Mann, da Universidade Emory, estudava escravos capturados na África e os respectivos destinos deles. Foi então que Urano teve a ideia de buscar as cartas de alforria registradas na Bahia e criar um banco de dados. Também participam do projeto João José Reis, Luís Nicolau Parés e Lisa Earl Castillo.

Os livros encontrados vão de 1664 a 1980. Agora, Urano está no ano 1855. Ele usa a técnica de paleografia para ler o material já em condições precárias, faz a digitalização, destaca os principais pontos e insere na planilha. Também compartilha as descobertas no blog Pesquisando a História

Imerso por até 18 horas por dia nas pesquisas, ele diz sentir que vive o passado como se fosse o presente e dar vida a pessoas que já morreram há séculos. Chega até a sonhar com os personagens.

Pesquisador e historiador Urano Andrade
Pesquisador e historiador Urano Andrade Crédito: Savio Roiz/Divulgação

“São histórias de vida contadas através desses documentos. Quero narrá-las e preservá-las para que não se percam”, diz. As histórias são fortes e, apesar da empolgação a cada nova descoberta, diversos trechos das cartas são de arrepiar.

As cartas

Enquanto no campo “observação” é possível encontrar a frase “já velha” como justificativa usada para a concessão de algumas alforrias de mulheres, no campo “idade” é possível notar que muitos dos escravizados que ganharam liberdade por essas cartas eram crianças, incluindo casos de bebês de apenas um mês.

Urano explica que é podem ser filhos de escravizados da cidade, que, diferente dos do campo, conseguiam, por vezes, trabalhar e ganhar dinheiro para comprar a liberdade dos filhos. “Mas também são crianças fruto das relações entre as mulheres escravizadas e os seus senhores, como podemos encontrar como justificativa escrita em algumas cartas”, acrescenta.

Uma das histórias narradas que mais marca Urano é a de Anacleta Maria do Rosário. Já liberta, ela encontrou uma de suas filhas, que havia ficado no continente africano, sendo vendida por um homem chamado José Antônio da Costa. Anacleta comprou a filha por 190 mil réis, a mandou batizar com o nome Felicidade e foi a um cartório, sem saber ler ou escrever, pedir que alguém redigisse para ela a carta que concedia a liberdade à filha. Toda a história é narrada na carta que pode ser lida neste link.

Os documentos costumavam ser assinados pelos donos dos escravizados e, então, levados aos cartórios para registro. Era uma forma de buscar uma garantia de que não fossem reescravizados. “Mas sabemos que a conquista da carta não significava, necessariamente, a conquista da alforria”, pondera Urano.

Os preços

Os valores pagos pelas alforrias registrados no banco de dados vão de 20 mil a 600 mil réis. Urano diz que, quanto mais novos e mais hábeis, mais caros. Tudo era negociado entre escravizado e dono e seguia as regras do mercado, conforme oferta e demanda.

Em 335 cartas, a alforria foi concedida porque o escravizado comprou outro para entregar a seu senhor em troca da própria liberdade. “Era comum que recepcionassem recém-chegados da África para treiná-los e, então, vendê-los a seus senhores porque estes eram os mais caros”, explica Urano.

“Uma das cartas conta que um homem, já liberto, ingressou no ramo de tráfico de escravizados e, ao ir ao continente africano e comprar um homem e uma mulher, deparou-se com um de seus irmãos. O ex-escravizado, então, comprou seu irmão em troca do casal”, acrescenta o pesquisador.

As imagens digitalizadas dos livros de notas encontrados no Arquivo Público do Estado da Bahia, com os registros desde 1664, podem ser consultadas no site do Endangered Archives Programme, mantido pela Biblioteca Britânica. Já o banco de dados organizado em uma tabela, que contém as cartas de alforria de 1800 a 1850, pode ser acessado no Journal of Slavery and Data Preservation Dataverse, com acesso público disponível no repositório de pesquisas acadêmicas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.