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Carolina Cerqueira
Publicado em 17 de agosto de 2024 às 11:00
Ao ver Usain Bolt e César Cielo competindo, é difícil não acreditar que a raça humana se divide entre os meros mortais sentados no sofá em frente à TV e os atletas deuses do Olimpo. Se eles já impressionavam apenas com treinos, do que seriam capazes se o doping fosse liberado? Essa é a pergunta que os “Enhanced Games” ou “Jogos Aprimorados”, em português, pretendem responder.
A competição é anunciada no site enhanced.org. “A corrida pela super-humanidade começou. Bem-vindo aos Jogos Aprimorados, a demonstração definitiva do que o ser humano é capaz”, diz o anúncio na página principal. A proposta é “melhorar” os melhores atletas do mundo.
Os primeiros Jogos Aprimorados estão previstos para o segundo semestre de 2025. De acordo com o projeto, o processo está em fase de “negociação com as cidades-sede” e ainda não há data e local específico. As categorias já anunciadas são: atletismo, esportes aquáticos, ginástica, combate e levantamento de peso.
O projeto ainda incentiva a participação oferecendo dinheiro. “Todos os atletas que competirem nos Jogos Aprimorados serão pagos. Aqueles com maior potencial receberão um salário base de seis dígitos e os primeiros atletas a estabelecerem novos recordes mundiais para os 100m rasos e os 50m livre receberão um milhão de dólares”, diz o anúncio.
Quem está por trás
Na equipe, os investidores revelados são Peter Thiel, Christian Angermayer e Balaji Srinivassan. O primeiro, dos EUA, é cofundador do PayPal e um dos investidores do Facebook. O segundo, da Alemanha, é presidente Cambrian BioPharma, que desenvolve medicamentos. O terceiro, também dos EUA, é cofundador da Consyl, uma companhia de testes genéticos.
Christian Angermayer também aparece como um dos líderes da iniciativa, junto com o advogado Aron D’Souza e o ex-banqueiro Maximiliano Martin. Também há na equipe um diretor de Segurança do Atleta e uma Comissão Consultiva Científica e Médica.
Seis atletas já aderiram à iniciativa, quatro deles nadadores: Brett Fraser, das Ilhas Cayman; Roland Shoeman, da África do Sul; David Karasek, da Suíça; e Lucas Pechmann, dos EUA.
Como não estarão sujeitos às regras da Agência Mundial Antidopagem, os resultados conquistados nos “Jogos Aprimorados” não poderão ser homologados oficialmente. Ainda assim, há atletas animados. O nadador James Magnussen, durante entrevista em um podcast, se disse animado para bater o recorde de César Cielo nos 50 metros livre.
O presidente do projeto, Aron D’Souza, defende a iniciativa: “O teste de drogas feito nas Olimpíadas busca a justiça e, não, a segurança dos atletas”, diz a fala divulgada no site. “Os Jogos Olímpicos tornaram-se jogos de gato e rato, nos quais alguns atletas buscam substâncias de maior risco porque são mais difíceis de detectar”, acrescenta.
O médico do esporte Roberto Nahon, que atuou durante 6 anos no Comitê Olímpico Brasileiro (COB), discorda. “As substâncias são proibidas no teste de doping também porque trazem riscos para a saúde. O que fez o movimento do doping crescer nas décadas de 1980 e 1990 foi o fato de que as pessoas estavam morrendo em nome do showtime. Os ‘Jogos Aprimorados’ não são uma coisa do futuro, são um retrocesso ao passado”, pondera.
Desafiando o corpo humano
O nutricionista esportivo João Paulo Mendes explica que existem diferentes categorias de substâncias capazes de melhorar o desempenho físico e tudo depende do que os “Jogos Aprimorados” irão permitir. Desde cafeína e creatina, passando por esteroides anabolizantes e até cocaína.
“Não há problema no uso de cafeína e creatina; já a cocaína é proibida. Mas existe um meio termo onde estão as substâncias farmacológicas, que são medicamentos legalizados com funções diversas que podem ser usados indevidamente para desempenho físico”, explica.
A também nutricionista esportiva Sinara Nery cita outras substâncias: hormônio do crescimento (GH), eritropoetina (EPO), estimulantes (anfetaminas, por exemplo), beta-bloqueadores, etc.
João Paulo Mendes explica que, em geral, as substâncias podem ser capazes de fazer o atleta reagir mais rápido e ter maior potência muscular, além de minimizar o cansaço e otimizar a oxigenação.
O fenoterol, que fez a judoca Rafaela Silva ser suspensa e não participar da Olimpíada de Tóquio-2020, é usado para tratamentos pulmonares. A atleta disse que teve contato com um bebê que estava fazendo uso do medicamento. A efedrina é outro exemplo.
Assim como esses medicamentos citados, esteroides anabolizantes são legalizados, mas precisam ser adquiridos com receita médica. No entanto, muitas vezes esse sistema é burlado e quem está fazendo uso não está recebendo acompanhamento médico.
“Esses medicamentos podem provocar arritmia ou problemas mais graves no sistema cardiovascular, assim como ocasionar problemas nos rins e fígado. Eles também podem aumentar o risco de desenvolvimento de câncer”, alerta o especialista.
Sinara Ney acrescenta: "Distúrbios hormonais e problemas psicológicos, assim como aumento do risco de trombose também estão entre os riscos que o uso de substâncias para melhorar o desempenho esportivo pode causar. Além disso, o uso de agentes mascarantes pode levar à desidratação severa", pontua.
O projeto dos “Jogos Aprimorados” prevê que serão feitos exames médicos antes de cada competição para garantir que os atletas estejam saudáveis. A triagem envolverá ecocardiograma, exames de sangue e sequenciamento genômico, além de ressonância magnética para rastrear a saúde cerebral de atletas de esportes de combate.
O site informa que o uso de substância terá supervisão clínica regular e que estão proibidas substâncias que sejam classificadas como drogas, que causem danos significados a si mesmo ou aos outros, que sejam altamente viciantes e que causem modificação corporal irreversível.
Ainda assim, o nutricionista esportivo alerta que não há como estabelecer ausência de risco. “É possível fazer uso de forma menos agressiva e minimizar efeitos colaterais, mas não dá para dizer que será de forma saudável. Um nível de alto rendimento, nível olímpico, já não é saudável. Não é o esporte que os profissionais recomendam que fará bem para a saúde; o objetivo aí é a competição”, coloca.
“Ver até onde o ser humano vai pode ser interessante, mas é potencialmente perigoso. Vale a pena? Precisamos pensar sobre a resposta social disso. A gente já vive um momento de medicalização da saúde e da estética muito forte, não acho que seja bom incentivar isso”, finaliza João Paulo Mendes.