Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Fernanda Santana
Publicado em 11 de maio de 2024 às 05:00
Depois de um voo de duas horas, a encomenda aguardada por um casal chegou no Aeroporto Internacional de Salvador. Eram os óvulos congelados de uma espanhola branca, com cabelo castanho, olhos azuis e 1,60 metro de altura, que vendeu os próprios gametas por mais de mil euros. O material viajou 10 mil quilômetros, da Europa com escala em São Paulo, antes do destino final.
O casal pagou, em média, R$ 60 mil pela vinda dos óvulos — valor que incluia os outros custos com a reprodução assistida em uma clínica na capital baiana, que intermediou o embarque do material que gerou o primeiro filho dos dois. No ano passado, essa história se repetiu centenas de vezes.
Desembarcaram no Brasil 3.366 gametas, as células responsáveis pela formação de uma nova vida, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A importação saltou na última década. Em 2011, foram importadas só 11 amostras de sêmen.
Desde 2013, a quantidade desse material trazido só para a Bahia está até cinco vezes maior, mostra levantamento feito pela reportagem.
O adiamento da maternidade e a diversidade no formato de famílias — com mulheres solteiras e casais LGBT+ autorizados a passar por reprodução assistida — são o que impulsionam esse percurso internacional. O Brasil não possui um banco nacional de gametas: as doações em clínicas devem ser apenas espontâneas e estão aquém da demanda.
Como a Anvisa autoriza a importação desde 2008, ela veio a calhar para famílias e mulheres que têm pressa — e dinheiro. Se a espera por gametas brasileiros demora até mais de um ano, a importação reduz esse aguardo para 30 ou 45 dias, segundo médicos e pacientes, mas também pode triplicar o preço do tratamento reprodutivo.
Os óvulos são os mais raros, caros e procurados. Dos mais de três mil gametas importados em 2023, 2.668 eram óvulos, que começam a se tornar mais escassos quando a mulher completa 35 anos. Diferentes estudos estimam que 10% das mulheres necessitam de gametas doados para engravidar.
Os principais fornecedores internacionais estão na Espanha, Argentina, Dinamarca e Ucrânia, onde é permitido remunerar doadores. Na Espanha, uma doadora recebe 1,2 mil euros (R$ 6,6 mil), pelo ciclo de hormônios e a sedação a que ela é submetida para ter os gametas extraídos. O procedimento, do início ao fim, leva 20 dias. Já a coleta do sêmen é feita por masturbação.
Até desembarcarem aqui, no entanto, os gametas dependem do funcionamento de um trajeto sustentado por diferentes idiomas, especialidades e brecha, que é acompanhado com ansiedade por futuras mães e pais.
Por ligação, o médico de Bruna Barros, à época com 36 anos, a avisou que o sêmen do espanhol escolhido por ela tinha chegado em São Paulo.
Todo o material genético importado, congelado a -196ºC em um tanque que lembra um cilindro de oxigênio, desembarca primeiro lá, onde estão as duas importadoras de gametas habilitadas pela Anvisa, a CrioBrasil, a única que pode importar óvulo e sêmen, e a Pro-Seed, que importa sêmen.
Os gametas precisam aguardar a liberação da Anvisa e da Receita Federal. O processo leva uns 10 dias, mas os reservatórios suportam até 20 sem reabastecimento do nitrogênio que gela o pequeno contêiner.
Se precisarem reabastecê-los, as empresas contratam despachantes nos aeroportos. Depois da liberação, elas checam se está tudo ok com os gametas, que permanecem congelados.
A veterinária Bruna sequer cogitou uso de sêmen nacional para evitar essas burocracias. Não pela possível demora que poderia enfrentar, mas pela possibilidade de investigar bem as características do doador. Analisou fotos de dezenas deles, quando crianças, até se decidir.
Para os mais esotéricos, também dá para conferir o signo. Ver imagens de doadores adultos, na teoria, é proibido, para garantir o anonimato deles. Só não dá para escolher a idade - homens não podem passar dos 45, e mulheres dos 37 - e nem os doadores podem ter doenças congênitas, psiquiátricas, nem sexuais.
De resto, as escolhas, que também são autorizadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), têm seguido um padrão.
Dos doadores estrangeiros até 2022, 91% eram brancos e 45% tinham olhos azuis, de acordo com a Anvisa. Entre as mulheres, 88% eram brancas.
"Podia imaginar como ficaria a ‘mistura’ com meu óvulo", conta Bruna, cinco anos depois da importação. Valentim tem os fios dourados, que não herdou da mãe. O nariz arrebitado é um traço comum entre os dois.
"Ele foi a melhor decisão da minha vida", diz ela, que engravidou em um procedimento de fertilização in vitro, ou seja, a fecundação do óvulo dela e o sêmen doado, em laboratório.
As empresas de importação afirmam garantir, inclusive em contrato, a integridade dos gametas, seja no fluxo entre países ou para os estados aos quais eles são remetidos, por ação de transportadoras especializadas em materiais biológicos.
“Tem dias que fazemos sete embarques”, estima Rafael Pontes, gerente comercial da Biologística. “É um mercado muito aquecido”, dimensiona.
Só neste ano, a Biologística, de Belo Horizonte, fez 19 envios de gametas em voos comerciais para a Bahia, um dos seis estados para onde mais há viagens. A última delas aconteceu no dia 6 de maio. Às 13h46, uma picape baú com gametas no fundo estacionou em uma clínica do centro da cidade.
O que preocupa os pacientes que optam pela importação, além do sucesso da fertilização, é algo mais íntimo. “Quem quer importar, acha que há um sigilo maior”, diz Genevieve Coelho, ginecologista e diretora técnica da IVI, filial de uma clínica de reprodução espanhola.
"O anonimato é sempre garantido, mas esse assunto ainda é tabu", completa a médica. Tanto é que pacientes dela não quiseram dar entrevista.
Em uma manhã de abril, quatro casais heterossexuais e três mulheres aguardavam atendimento no espaço, na Pituba.
O setor da medicina reprodutiva movimenta, por ano, R$ 1,3 bilhão no país, calcula a Redirection International, que realiza pesquisas corporativas. A importação não é viabilizada pelo Sistema Único de Saúde.
“Aqui na clínica, as pessoas que querem importar são a minoria, pelo preço”, frisa Genieve, uma das 15 especialistas em reprodução humana na Bahia. Desde 2018, ela calcula 15 importações.
Para a Anvisa, não é tão minoria assim. Diante do crescimento da procura pela importação, o órgão revisou, em 2022, as regras de compra de células reprodutivas estrangeiras, que entram no Brasil, de diferentes formas, há pelo menos duas décadas. A última mudança era de 2011.
O órgão permite que o próprio paciente solicite autorização para trazer seu material reprodutivo, quando ele estiver armazenado em clínicas do exterior, e reviu a negociação realizada pelas importadoras.
Antes, a Anvisa supervisionava cada caso. Agora, as empresas habilitadas devem provar que cumprem as normas a cada seis meses. A Crio Brasil foi a primeira habilitada, pelas novas regras, a importar o sêmen, o que fazia há 12 anos.
Depois, em abril deste ano, ela recebeu a permissão para trazer óvulos, o que pode baratear o serviço.
"Podemos fazer isso em um pedido único. É mais fácil importar 30 lotes de óvulos do que um por vez, com taxas separadas. Óbvio que, quando falamos de qualquer importação, é mais caro, mas com o tempo ela vai se tornando mais viável", pondera Mariana Husek, diretora de inovação da CrioBrasil.
"Se custava R$ 60 mil cada importação, já conseguimos viabilizar por cerca de R$ 38 mil", estima ela.
O barateamento da importação deve incluir o sêmen, avalia Patrícia Fehér Brand, responsável de parcerias e desenvolvimento de novos negócios do Pro-Seed, que importa células reprodutivas masculinas desde 2012.
"Acreditamos que essa tendência vai se intensificar, agora que a nova regulamentação permite disponibilizar amostras importadas à pronta-entrega. As grandes dificuldades do passado eram a espera, com prazos prolongados, e o custo elevado das importações", diz Fehér.
O primeiro país a pôr os olhos no Brasil foram os Estados Unidos. Representantes de clínicas locais vão até em universidades para buscar doadores. Mas logo surgiu uma desvantagem aos brasileiros.
Cada kit com quatro óvulos de norte-americanas custava até 12 mil dólares (R$ 60 mil aos brasileiros), sem incluir as despesas associadas, como a posterior fertilização in vitro.
Já as empresas espanholas surgiram no páreo com um preço mais competitivo: 6 mil euros (R$ 33 mil), explica a socióloga Rosana Machin, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) que pesquisa há 30 anos o mercado da reprodução assistida.
“Essa diferença de preço tem a ver com nível da regulação espanhola”, diz Machin, “já que a Espanha tem uma grande capacidade de captar doadoras, e porque há uma quantidade expressiva de mulheres que encontram nesse mercado uma renda extra“.
Durante dois anos, Machin e dois colegas espanhóis estudaram o percurso dos óvulos importados da Espanha para o Brasil, a partir de documentos oficiais e entrevistas, para produção de um artigo. Identificaram algumas tendências, como a influência das brechas legais.
O país europeu estudado, por exemplo, restringe a exportação direta. É permitido, no entanto, que o material circule pelos territórios da União Europeia, e seja despachado por outros países do bloco. Era o caso da Eslováquia, de acordo com os pesquisadores.
Eles também identificaram os discursos envolvidos no incentivo às “doações”. “As empresas preferem essa palavra, essa dimensão do altruísmo, até por ser uma forma de diminuir o custo com os doadores. Não gostam da ideia de comprar e vender”, pontua Machin.
“Tem uma dimensão ética já discutida”, acrescenta ela. Pela lei espanhola, as mulheres podem doar óvulos seis vezes, pela complexidade do processo. Como não há um sistema unificado de dados, o governo não pode garantir o cumprimento dessa regra. No Brasil, o CFM não limita as doações.
A médica geneticista Angelina Acosta, que pesquisa genética há mais de 25 anos e é professora da Universidade Federal da Bahia, reflete sobre outra questão — os possíveis impactos genéticos da ascensão das importações. "A longo prazo, podem não ser diferentes dos da imigração natural", diz.
"Mas podem ter alterações genéticas 'silenciadas', que se expressam devido a alguns fatores. A seleção se dá pelo fenótipo (características externas), em geral não se analisa a constituição genética propriamente, que pode conter alterações não expressas sendo transmitidas", completa.
Hoje, no Brasil, o direito a conhecer a própria origem genética não se confunde com o direito à filiação. No país, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) cita o direito ao reconhecimento das próprias origens para pessoas adotadas.
Por dez vezes, a baiana Aline Caires, 29, doou óvulos em uma clínica em São Paulo, onde mora. Foi incentivada pela irmã, também doadora, e não se sente ligada a embriões gerados a partir deles. No horizonte, não enxerga a possibilidade de ser mãe.
“Tenho consciência de que crianças geradas a partir deles não são nada minhas”, conta a criadora de conteúdo, que quis doar para ajudar outras mulheres com dificuldade para engravidar e pela possibilidade de passar por exames gratuitos. Se pudesse, venderia os próprios gametas.
O CFM, apesar de proibir esse comércio, autoriza a redução de custos em tratamentos reprodutivos para os doadores. É uma forma de incentivá-los. A possibilidade de existir um comércio de óvulos ou sêmen não é discutida no Brasil. Representantes do setor divergem sobre o tema.
“O que ouvimos é que há grupos com percepções religiosas fortes que tentam inserir a discussão com conservadorismo. Alguns querem a lei. Outros acham que como é um campo em que a tecnologia avança muito rápido, a lei ficaria caduca”, afirma Machin, a socióloga da USP.
Renato Husek, presidente da CrioBrasil, importadora de gametas, é a favor de um mercado nacional de material genético. Mas com ressalvas, pela desigualdade social existente no país.
"O Brasil tem grandes índices de desigualdade, é preciso pensar nisso. Então, sou a favor, mas se houver um processo bem coordenado de acompanhamento. Talvez isso até alargasse nossas possibilidades para atuação. Exportar, não só importar”, pondera.
Já Álvaro Pigatto Ceschin, presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida, acredita que antes de discutir a venda de gametas, é preciso pensar em uma lei para a reprodução assistida. “O que existe são resoluções sobre reprodução assistida”, diz. Desde 2012, o CFM editou cinco delas.
“Se há intenção de normatizar, é preciso normatizar o próprio assunto. Até acredito que, hoje, nosso país é bastante flexível, tem países que proíbem a própria importação", completa Ceschin.
O Conselho Regional de Medicina da Bahia afirmou que “discute a reprodução assistida quando há processo ético” contra médicos. Não calculou, contudo, as vezes que isso aconteceu.
Sem lei específica, o futuro jurídico de discussões associadas à reprodução assistida é incerto, avalia Ana Thereza Meirelles Araújo, biojurista, advogada e coordenadora da pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética da Faculdade Baiana de Direito
"Hoje, se uma pessoa gerada com o uso de gametas doados pleitear na Justiça o conhecimento à sua origem genética, a decisão judicial pode seguir um dos dois caminhos: o reconhecimento desse direito e a quebra do sigilo da origem da doação ou o afastamento do direito e a manutenção do anonimato do doador".
No Reino Unido, por exemplo, desde 2005, qualquer nascido por meio de gametas doados pode cobrar informações sobre seu doador a partir dos 16 anos.
"Toda vez que se fala sobre reprodução no Brasil é como abrir uma caixa de pandora, já que o assunto costuma ser discutido com influência de aspectos religiosos sobre a concepção", avalia Tereza. Mas o cenário atual mostra que não vai adiantar evitá-la.