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Bahia sem dendê: para agradar paladar de turistas, azeite perde espaço para ouro, flores e até caviar

Em Arraial d’Ajuda, na famosa Rua Mucugê, por exemplo, dos 52 restaurantes apenas 1 é especializado somente em comida baiana

  • Foto do(a) author(a) Jorge Gauthier
  • Jorge Gauthier

Publicado em 1 de junho de 2024 às 05:00

Bahia sem dendê
Pratos sem dendê fazem sucesso nas mesas dos turistas em Arraial d'Ajuda, distrito de Porto Seguro  Crédito: Jorge Gauthier/Correio

O alaranjado do dendê não brilha mais sozinho. Agora, ele compete com o dourado das folhas de ouro e até mesmo com o preto do caviar. Para agradar os turistas e outros paladares com restrições, os sabores regionais estão compartilhando o protagonismo com queijos, crostas de amêndoas e flores nos pratos de restaurantes de Arraial d’ Ajuda, distrito de Porto Seguro, no Sul da Bahia.

- Você pode fazer uma moqueca sem dendê?, pede, sem cerimônias, o turista sudestino.

- Sim, dá pra fazer a moqueca com azeite de oliva no lugar de dendê, responde a garçonete do restaurante de frente para o mar.

Quase infartei quando ouvi esse diálogo. Ao olhar para os lados, vi os outros pratos das mesas e me surpreendi. À beira-mar da praia da Pitinga, o cheiro da picanha com molho de ervas finas e penne com molho de quanto queijos se unia com a “moqueca” sem dendê pedida pelo paulista.

Autor da ‘moqueca sem dendê’, chef Toninho, que desde 1985 comanda a cozinha do Saint Tropez Praia Hotel, naquela praia, mostra que a mudança de ingredientes tradicionais nas receitas tem crescido. “Sempre tem alguém que tem alguma restrição ou não gosta. A gente fica aberto à restrição do cliente”, enfatiza o chef. Ah, e antes que julguem Toninho, a falsa moqueca é saborosa, bem temperada, mas, de fato, carece da textura e da intensidade do dendê.

Moqueca sem óleo de dendê
 Moqueca sem azeite de dendê: peixe dourado, camarões e acompanha pirão e arroz  (R$ 190 para duas pessoas), do Saint Tropez Praia Hotel Crédito: Jorge Gauthier/Correio

"Ali não é moqueca porque moqueca é baiana. Se é moqueca baiana tem que ter dendê. Ali é uma peixada. Tirou o dendê é peixada"

Chef Toninho

alfineta o próprio cozinheiro alimentando a polêmica com os capixabas

A Rua Mucugê - já eleita pelo Guia Quatro Rodas a mais charmosa do Brasil - é a mais conhecida do distrito e o polo central dos principais restaurantes. Dos 52 estabelecimentos localizados em seus 500 metros apenas 1 é especializado somente em comida baiana como carro-chefe. A experiência dos turistas que por ali circulam em muitos casos passa bem longe do dendê.

Ouro, muito ouro no prato 

Risoto de lagosta com champanhe, caviar mujjol e lâminas de ouro 24k. Esse é um dos pratos carro-chefe do Roza Bistrô - Cozinha Internacional e Contemporânea que o chef Flávio Vasconcellos faz para dialogar a regionalidade com outros ingredientes e sem dendê... Com 25 anos de gastronomia e 3 comandando seu espaço em Arraial, ele destaca que foi mudando o perfil dos pratos de acordo com as exigências dos clientes para que os visitantes pudessem ter uma boa experiência de viagem.

Risoto de lagosta com champagne, caviar mujjol [
Risoto de lagosta com champanhe, caviar mujjol [de origem espanhola] do Roza Bistrô (R$170/prato individual) Crédito: Jorge Gauthier/Correio

“Eu tinha muitos pratos clássicos e depois eu percebi que não era isso que o turista queria. Ele quer um prato com toque de originalidade mas sem excesso de dendê e leite de coco. Hoje, eu faço um prato sofisticado com toque de regionalidade sem ser uma comida pesada. A minha moqueca mesmo é feita com menos dendê e leite de coco porque se você usar a quantidade que normalmente o baiano usa pode ‘não cair bem’ e estragar a viagem do turista”, explica Vasconcellos que é carioca apaixonado pela Bahia.

O dendê é um símbolo da Bahia, mas na concepção do chef Vasconcellos o horizonte de ingredientes regionais é muito mais amplo - composição que ele reflete nos pratos do seu restaurante que tem como outro destaque o carpaccio de carne de sol com queijo coalho maçaricado, crispy de couve ao perfume balsâmico de mel de laranja (entrada, R$ 70).

“A Bahia não é só o dendê e o coentro. Há outros ingredientes regionais que temos aqui que são vastos para serem provados como banana da terra e aipim”, afirma o chef que tem passagens por resorts e restaurantes em Fernando de Noronha, em Pernambuco.

Acolhimento culinário

Estima-se que há 300 bares, restaurantes e cabanas de praia em Arraial. Dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) da Costa do Descobrimento indicam que esse número cresceu aproximadamente 25% desde o começo da pandemia. A expansão trouxe mais diversidade gastronômica para o distrito.

“Arraial atraiu empresários de outros lugares do Brasil e do exterior que escolheram a nossa ‘esquina do mundo’ para viver e empreender”, destaca Alex Di Pasquale, presidente da Abrasel Costa do Descobrimento na Bahia e membro do Conselho Nacional Abrasel.

“A diversidade gastronômica é muito grande. A mistura mágica e multicultural da proposta gastronômica de Arraial d'Ajuda é um diferencial maravilhoso e super atrativo para os turistas, que ficam encantados, apreciando muito isso. Cada empreendimento tem o próprio público alvo, a própria identidade que se reflete na culinária. Acredito que o importante seja fazer tudo com amor e com espírito acolhedor, não por acaso Arraial d'Ajuda foi eleito o lugar mais acolhedor do mundo”, pontua Pasquale referindo-se ao recente título conquistado pelo destino.

Em 2024, Arraial d’Ajuda foi eleito o destino mais acolhedor em todo o mundo. Pela primeira vez uma localidade brasileira figura em primeiro lugar na pesquisa Traveller Review Awards, feita anualmente pela empresa turística Booking.com.

Sinceridade nas escolhas

‘Se eu fosse você não pediria o bobó. Bobó de camarão você pode comer em outro lugar’. Foi assim que a garçonete desviou a atenção do dendê ao explicar o cardápio do restaurante Cajoá, que funciona desde dezembro de 2020 na Praça Brigadeiro Eduardo Gomes.

Apesar de ser o terceiro prato mais pedido na casa, o chef Leonardo Januckaitis preferiu apostar em valorizar outros ingredientes brasileiros e regionais e combiná-los com influências internacionais. E, sim, a equipe do restaurante não se exime em sugerir para os clientes outras combinações como peixe com farofa de coco ou camarão com molho tailandês.

Restaurante Cajoá
Filé de Peixe do dia envolto em folha de taioba e assado servido sobre purê de aipim manteguinha, farofa de coco e molho levemente picante (R$ 98, prato individual no Restaurante Cajoá) Crédito: Jorge Gauthier/Correio

“Gostamos de tomar caminhos diferentes dos convencionais e optamos por um cardápio enxuto e sem redundâncias, onde podemos prezar pela qualidade de cada preparo e assim oferecer uma melhor experiência. Temos bons restaurantes no Arraial que oferecem pratos típicos da cozinha baiana. Por isso acreditamos que a melhor forma de contribuirmos para nossa região, é oferecendo diversidade”, avalia o chef que antes de escolher residir em Arraial já teve passagens pelo restaurante D.O.M em São Paulo, dentre outros.

Januckaitis acredita que o turismo influencia na concepção dos cardápios. Dos 50 pratos do restaurante apenas o bobó tem dendê no seu preparo. “Procuramos fazer o que acreditamos, e colocar no nosso cardápio pratos que reflitam nossa identidade. Mas não deixamos de considerar pessoas que tenham um paladar mais restrito ou famílias e dar opções para eles. Acho que a resistência a algumas pessoas em relação ao dendê deve-se em parte aos casos de intolerância ao ingrediente, mas também existe uma parcela que erroneamente acha que é um ingrediente ‘pesado’, talvez até sem mesmo conhecer”, argumenta o chef que vê o dendê como um ingrediente potente.

"Único prato que temos com dendê, o bobó foi adicionado ao cardápio, primeiramente, por que é um dos pratos que mais gosto da cozinha brasileira, e também por que sentíamos necessidade de ter algum clássico regional, faz parte da essência. Hoje ele é o terceiro prato mais pedido em nossa casa."

Leonardo Januckaitis, 

chef do Cajoá

Afinal, o dendê é pesado?

‘Óleo de baixa qualidade’, ‘que não tinha sabor’, ‘que era comida de negros’ e ‘que só estragava a comida’. Essas foram algumas frases que ouvi de alguns turistas - especialmente do Sudeste - durante a semana que estive em Arraial d’Ajuda visitando restaurantes. Conversei com 15 turistas - a maioria do eixo Rio/São Paulo - e questionei se eles já haviam provado pratos com dendê e o que eles haviam achado do sabor. Destes, somente 3 deram declarações positivas sobre o óleo.

Ao contrário dos profissionais dos restaurantes que respeitam o ingrediente, as frases de alguns visitantes reforçam estereótipos criados historicamente com a nossa culinária e que podem ser considerados racismo culinário.

“A partir das frases apresentadas, podemos, sim, ter relatos de racismo culinário onde o ingrediente identitário de nossa culinária está associado a aspectos negativos. Chega a ser engraçado o relato de que o azeite de dendê 'não tem sabor'. Sua presença em um prato é marcante e inconfundível, seja na cor dourada, no cheiro e no sabor. Porém, ele é comumente associado às religiões de matriz africana, o que pode reforçar esta repulsa ao ingrediente, sob as mais diversas justificativas, como a redução da qualidade do prato ou a sensação de saciedade (ou sensação de peso) decorrente dele. Ora, a comida baiana tem o azeite de dendê como ingrediente principal, assim o seu sabor também está associado ao sabor do azeite, e sua substituição por qualquer outro ingrediente faz com que seja outro prato, e não mais aquele de origem”, afirma Fabiana Paixão Viana, doutora em Antropologia, com estudos na Antropologia da Alimentação.

No candomblé, o dendê tem importância vital para alguns orixás, a exemplo de Iansã. Mas, existem os orixás que não podem usar o azeite de dendê como é o caso de Oxalá.

Gastroenterologista do Itaigara Memorial, Rebeca Esteves de Castro explica que, por ser rico em ácidos graxos, o dendê pode causar ‘desconforto’ em indivíduos que não estão acostumados a consumir esse tipo de gordura. “Além disso contém beta-caroteno, que pode ter efeitos laxativos em algumas pessoas sensíveis. Os óleos ajudam na lubrificação das paredes intestinais acelerando o trânsito intestinal favorecendo também a defecação”.

A nutricionista Isabela Ribeiro, que atua na área clínica e fitoterápica, explica que o azeite de dendê contém vitamina E, antioxidantes e carotenoides, que podem ter benefícios para a saúde da pele e dos olhos. O óleo, que é extraído do dendezeiro, tem a mesma quantidade de calorias do azeite de oliva.

“O dendê deve ser consumido com moderação, pois possui o teor muito alto de gordura saturada, em relação a quantidade e frequência. Entretanto, em 100 ml o azeite de dendê tem 884 calorias e 100 gramas de lipídio, a mesma quantidade encontrada no azeite de oliva extra virgem, por exemplo”, destaca a nutricionista.

É óbvio que cada um come o que quer e da forma que achar melhor, mas ir à Bahia e não provar o dendê é como ir ao Vaticano e não ver o papa. Ainda bem que eu moro aqui e quando voltei para casa fiz logo uma moqueca cheia de dendê, coentro e pimenta! 

Pratos sem dendê
1. Salada de camarões (R$ 68, no OCTO Cozinha do Mar) 2. Camarão empanado na farinha panko e risoto de queijo gouda (R$ 100, individual no Saint Tropez Praia Hotel 3. Arroz negro com polvo e camarões grelhados no azeite, alho, açafrão e manjericão (R$ 129, individual no OCTO Cozinha do Mar) Crédito: Jorge Gauthier/Correio

'Retirada do azeite de dendê dos pratos tipicamente baianos contrapõe ao viés cultural do ingrediente', analisa antropóloga

A Bahia é um estado plural, e sua culinária segue a mesma lógica. Apesar da comida à base de azeite de dendê ser a mais identitária, segundo Fabiana Paixão Viana, doutora em Antropologia, com estudos na Antropologia da Alimentação, não podemos desconsiderar outras comidas que também fazem parte das mesas dos baianos, principalmente quando analisamos diferentes cidades e/ou regiões da Bahia.

“A ‘comida baiana’, aquela com azeite de dendê, não está presente cotidianamente nas mesas de todos os baianos; por aqui, em Salvador, tendemos a comer a combinação arroz, feijão, carne (bovina, frango, suína e, mais raramente, peixe) e verdura. Isso é tão marcante, que exceto em pontos turísticos, não é comum encontrarmos restaurantes que comercializem caruru e vatapá, por exemplo, sem ser nas sextas-feiras. Assim, apesar de ser uma região turística, a ausência de pratos à base de azeite de dendê em Arraial d’Ajuda não me causariam total espanto, visto que seguramente existem outros pratos denominados 'típicos' ou 'baianos' em seus cardápios, com o uso de ingredientes locais, como frutas, bebidas e temperos”, pontua.

Fabiana Paixão
Fabiana Paixão Crédito: Divulgação

No entanto, conforme Fabiana, a justificativa apresentada para esta ausência demonstra, por um lado, uma preocupação dos donos dos restaurantes em atender os gostos de sua clientela e, por outro, a reprodução, já disseminada por outros estados brasileiros, da ideia de que a comida preparada com azeite de dendê é pesada e indigesta, ainda que tenha como base um óleo vegetal e, frequentemente, peixes ou frutos do mar, destaca a especialista.

A antropóloga ressalta que culturalmente o dendê faz parte de nosso cotidiano, sobretudo com os tabuleiros das baianas e o tradicional consumo da “comida baiana” na Sexta-Feira da Paixão. “Confesso que me causa estranhamento estas alterações na culinária típica e tradicional visando exclusivamente 'agradar o paladar dos turistas'. Inquestionavelmente, as alterações nas culinárias típicas são relativamente comuns, sobretudo na atualização das formas de preparo (como a substituição dos pilões manuais por equipamentos elétricos) e ingredientes (com a adequação das receitas de acordo com necessidades de saúde dos comensais e prescrições médicas, como celíacos, por exemplo), porém, a retirada do azeite de dendê nas comidas típicas baianas atinge a identidade de um povo”, avalia.

A grande “marca” da moqueca baiana é justamente a presença do azeite de dendê, em oposição, temos a moqueca capixaba que não tem o ingrediente. Não se trata de qual é melhor, mais saudável ou mais leve. Ambas são moquecas e são consideradas pratos-totem de seus estados.

"A retirada do azeite de dendê dos pratos tipicamente baianos, principalmente naqueles comercializados em restaurantes, cujo argumento se resume a adequação ao paladar do turista, contrapõe ao viés cultural e religioso do ingrediente que está associado a identidade do povo baiano e as religiões de matriz africana."

Sem acarajé: do cuscuz ao suco de açaí é possível lanchar/merendar sem dendê

Coxinha, suco de açaí e cuscuz com queijo maçaricado e ovo pochê. Essas são algumas opções de cardápios que os turistas que visitam Arraial d’Ajuda têm para lanchar sem saborear o famoso acarajé. Confere o que provei e recomendo fugindo da rota dos restaurantes:

1. Cuscuz 'gourmetizado', mas cheio de sabor; A gema mole faz toda a diferença com a crosta do queijo 

Cuscuz de milho com queijo mussarela maçaricado acompanhado de ovo poché no Santa Aldeia Hotel (incluso na diária)
Cuscuz de milho com queijo muçarela maçaricado acompanhado de ovo poché no Santa Aldeia Hotel (incluso na diária) Crédito: Jorge Gauthier/Correio

2. Patrimônio cultural de Porto Seguro, a sorveteria Coelhinho é parada obrigatória (fica na Rua Mucugê). O brownie de chocolate com sorvete de chocolate belga tem dulçor na medida certa

Coelhinho
Brownie de chocolate com sorvete de chocolate belga, R$ 18  Crédito: Jorge Gauthier Correio

3. Comer a coxinha da Giovanna (R$ 8) é parada obrigatória. Há pontos de vendas em diversos locais, inclusive na Balsa que liga Arraial a Porto Seguro. 

Coxinha da Giovanna
Coxinha da Giovanna Crédito: Jorge Gauthier/Correio

4. Canudinho com doce de leite, no Café da Santa  (R$4,50) - Massa crocante recheada e coberta com doce de leite caseiro. Fica na Praça Brigadeiro Eduardo Gomes)

Coxinha da Giovanna
Canudinho de doce de leite  Crédito: Jorge Gauthier/Correio

5. Suco de açaí no Point do Açaí (R$18/300 ml) - Que me perdoe o Norte do Brasil, mas o suco de açaí é uma pérola de Porto Seguro. Refrescante e energizante. Fica na Praça Brigadeiro Eduardo Gomes. 

Suco de açaí
Suco de açaí Crédito: Jorge Gauthier/Correio

Vai lá!

Vai lá - Arraial D'Ajuda
Vai lá - Arraial D'Ajuda Crédito: Gabriel Cerqueira/Correio

Arraial d’Ajuda, distrito de Porto Seguro

Habitantes: 16 mil

4 milhões de turistas visitam a cidade de Porto Seguro

Como chegar:

Aeroporto mais próximo de Arraial d'Ajuda é o de Porto Seguro (BPS)

Saindo de Porto Seguro pega-se uma balsa até Arraial

Vale a pena conhecer: praias dos Pescadores, do Apaga Fogo, de Taípe e Pitinga; Beco das Cores e Rua Mucugê.

*o jornalista viajou a convite da Booking.com