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Thais Borges
Publicado em 8 de março de 2025 às 05:00
Quando descobriu que estava grávida de um menino, a jornalista, escritora e ativista Nana Queiroz não conseguiu evitar o sentimento de luto pelo próprio filho. "Não porque as mulheres fossem de qualquer forma superiores. Mas porque o homem era a criatura mais triste que eu conhecia", escreveu, em seu livro ‘Os meninos são a cura para o machismo’, publicado pela editora Record em 2021. >
Uma das ativistas feministas mais conhecidas do Brasil, ela criou a campanha #NãoMereçoSerEstuprada, em 2014, e fundou a Revista AzMina, referência no Brasil. Para Nana, uma década após a Primavera Feminista, o próximo passo da luta pelas mulheres é o desenvolvimento dos homens. >
"A responsabilidade sobre homens jovens, adolescentes, pré-adolescentes e meninos pequenos é de toda a sociedade e também nossa, das feministas. Pelos homens adultos, a gente não é responsável. A gente é aliada", diz ela, que critica a cultura do cancelamento e do ‘cala a boca, macho’. "Claro que as minorias têm que falar, mas não pode trocar um cala a boca por outro", diz. >
Em entrevista ao CORREIO, ela falou sobre como educar meninos, o que significa ter uma educação feminista amorosa e por que as crianças são as maiores vítimas do patriarcado. >
Vamos para mais um 8 de Março e, ainda que o debate sobre feminismo e violência de gênero tenha crescido muito na última década, temos um caminho longo a percorrer. O que falta?>
Vai parecer uma contradição, mas acho que a próxima fronteira que a gente vai ter que atingir na luta pelas mulheres é o desenvolvimento masculino. A gente foi muito corajosa e inteligente para chegar até onde chegou, mas conseguiu fazer isso à custa de força. E tem uma parte da luta que deve vir a partir de convencimento, amor e perdão também. Quando eu falo de amor, não é o amor vazio, do tipo ‘tudo bem, vamos nos abraçar’, mas o amor no sentido de bell hooks*, do amor como ação e como política. >
A gente tem hoje em dia um cenário que nos mostra muito claramente o que acontece quando a gente esquece o amor na luta politica, que é o cenário em que as mulheres jovens ficam cada dia mais progressistas e os homens jovens ficam cada dia mais conservadores. >
Por que essa diferença acontece? Por que eles não conseguem esse desenvolvimento?>
Eles estão fazendo isso porque nós, enquanto sociedade, falhamos em dar às crianças, aos meninos pequenos e aos jovens uma alternativa. A gente disse para eles que o que os homens vinham fazendo até hoje estava errado. A gente fala para eles que o que os homens vinham fazendo, até então, era abusivo, tóxico, vilania. E a gente falhou em dar para eles uma alternativa. >
É que nem você estar na sua empresa e seu chefe te conta que você é um péssimo profissional, fala tudo que você faz de errado e não diz o que você pode fazer. Ou você se demite ou vira a turma do cafezinho, que fica lá metendo o pau. Todo o ser humano em formação precisa de acolhimento, de um espaço seguro para fazer perguntas e cometer erros, receber respostas e ser corrigido de forma amorosa. Isso não quer dizer que não seja firme, mas precisa ser firme respeitando a dignidade daquela pessoa. >
Às vezes, em alguns ambientes progressistas, a gente adotou essa política do cancelamento e ‘cala a boca e deixa as minorias falarem’. Claro que as minorias têm que falar, mas não pode trocar um cala a boca por outro. Esses meninos ficaram perdidos, sentiram que não eram convidados a falar e eram vistos como vilões. >
Eles precisavam de alguém que falasse que estava tudo bem ser eles. Quem falou que estava? Foram os redpill. Eu fiquei muito espantada observando as comunidades redpill do Reddit [fórum online]. Uma das descrições dizia: ‘esse é um espaço seguro e acolhedor para homens se reunirem’. Veja as palavras ‘seguro’ e ‘acolhedor’. >
Os homens da nossa geração e anteriores foram criados para ignorar o acolhimento, o respeito, o pedido de desculpa e o autodesenvolvimento e parece que eles nasceram sem precisar disso. Mas todo homem começou como um bebê, como uma criança e precisando de orientação. Se a gente não oferece um espaço seguro para que essas perguntas sejam feitas e os erros sejam cometidos - não estou falando de acomodar e validar erros, mas acolher com firmeza -, a gente falhou coletivamente com esses jovens meninos. >
Como deve ser a orientação?>
Para escrever meu livro, entrevistei 600 homens adultos para saber como tinha sido a infância deles. Essas entrevistas me levaram a fazer uma jornada pela neurociência, pela psicologia, pela pedagogia, pela história e pela filosofia. Uma das grandes discussões que Paulo Freire ajudou a promover é que qualquer pessoa aprende não só ouvindo, mas falando, se expressando, digerindo o que fala e transformando em algo seu. Se você cria um ambiente em que os meninos participam com um ‘cala a boca, macho’, como eles vão interiorizar aquela pregação e transformar em formação? Não vão. >
O aprendizado é a mesma coisa: tem que digerir o aprendizado, senão, é apenas encenação. Depois, a gente está lá vendo aquele monte de homem que a gente chama de ‘esquerdomacho’, porque estão performando uma masculinidade desejável. Mas como essa masculinidade vai ser incorporada neles se a gente não criar esses espaços? Existe, sim, uma preguiça masculina em criar esses espaços. As mulheres podem estender a mão, mas quem vai seguir o caminho são eles sozinhos. >
Um estudo internacional fez entrevistas com homens jovens que estavam se radicalizando e uma das coisas que ficou clara é que os homens estão se afastando do discurso feminista e progressista, em geral, porque sentem que a gente está pregando. Eles querem o diálogo, não a pregação. Onde esse diálogo está surgindo? No Reddit, no redpill, nos canais do YouTube de Pickup Artists, que ensinam a pegar mulheres de formas tóxicas. Essas são as pessoas dispostas a dialogar com eles. A gente tem que parar de palestrar e dialogar. >
Você começa o seu livro falando que sentiu um luto por seu filho, quando descobriu que estava grávida de um menino. Por que o homem era a criatura mais triste que você conhecia?>
O homem era a criatura mais triste que eu conhecia e nem sabia que ele era triste, porque não conseguia saber a cara da tristeza. Os homens que eu estava cercada estavam tão desconectados das emoções que não eram permitidos viver suas alegrias de forma intensa. A gente não só proíbe o menino de chorar, mas proíbe toda grande expressão de afeto e emoção para os meninos. E a vida sem afeto e emoção é uma vida muito vazia e triste. Eu me considero uma mulher que chegou muito longe, vindo de onde eu vim. Sou a mais velha de sete irmãos, em uma família muito pobre, mas tinha um ambiente em que eu podia almejar coisas, receber críticas construtivas e me avaliar. >
Mas se tudo que você faz crescendo é incrível, você precisa de muito pouco para ser considerado incrível e sua faixa de crescimento é limitada. É preciso tão pouco para ser considerado um paizão e a gente está chamando pais medíocres de incríveis, enquanto das mulheres é exigido tanto. A gente cria uma certa condescendência em relação ao que eles podem ser. "Ah, foi moleque". Não. É homem, é adulto, é responsável. Imagina o quão longe os homens poderiam chegar se a gente não os castrasse de emoções logo cedo na primeira infância. >
Por que as crianças são as maiores vítimas do patriarcado? >
Tem uma frase de um livro de bell hooks que é ‘the will to change’, a vontade de mudar. A gente estava acostumada a pensar que as maiores vítimas do machismo são as mulheres, mas, na verdade, são as crianças. E esse processo de generificar meninos e meninas é uma violência física para os meninos também. Os relatos dos 600 homens que entrevistei para o meu livro era de que choraram porque apanharam muito, porque tinham uma roupa rosa, ou porque queriam dançar, porque não gostavam de futebol ou porque tinham expressões de afeto com os amigos na rua. Eles foram moldados violentamente e foram moldados com violências sexuais dolorosíssimas. >
Se eu contasse para você hoje que tenho uma filha de 12 anos e que, para ter certeza de que ela não seria lésbica, eu chamei um homem de 35 anos para estuprá-la, para que ela saiba o que é ser mulher de verdade, qualquer ser humano que ouvir isso vai ficar chocado. Mas até hoje tem meninos de 11 a 14 anos levados por pessoas de confiança a prostíbulos para serem estuprados. Por que a gente não reage da mesma forma? É estupro segundo a lei. Não é opinião minha, é a legislação do nosso país. >
E a gente tem milhares de gerações de homens iniciados na sexualidade dessa forma e, depois, a gente quer que eles entendam as nuances do consentimento. Como eles vão entender, se o primeiro ato de sexualidade foi uma violência sexual? Eles foram ensinados a dar graças a Deus por isso (pelo estupro). Um dos homens que contou sua história disse que foi abusado por uma babá e, quando contou a alguém - um homem de sua família - a resposta foi: ‘você é viado? Você deveria dar graças a Deus que ela quis transar’. Você quer que esse menino cresça e entenda o que é consentimento, sendo que ele teve que crescer no autoengano para superar uma violência sexual.>
Como educar meninos? Por que você defende que eles são a cura para o machismo?>
Falo cura porque comecei a escrever esse livro na pandemia e me lembro de uma conversa que a gente teve sobre os jovens que estavam furando o isolamento, pegando covid e levando para os mais velhos. Alguém virou e disse: ‘tem vezes que dá vontade de pegar todos e trancar’. Eu pensei: ‘já imaginou se a gente fizesse isso com os homens?' Eles dominaram o mundo e o mundo está à beira do colapso. Mas ninguém vai sugerir matar os homens, assim como ninguém sugeriu matar os jovens na pandemia, porque eles eram o vetor da doença, não o vírus. >
Os homens são os vetores da doença, assim como algumas mulheres. O machismo é o vírus. Eles estão enfermos, doentes, e eles são tratados por remédios. O movimento feminista é o remédio, a legislação é o remédio, as delegacias da mulher são o remédio. Mas qual é a cura? A cura é uma geração de homens e mulheres que possam fazer diferente. Quando a gente criar esses homens para fazerem diferente, vai curar o machismo. Aí é uma vacina, porque gente vive uma pandemia machista hoje. >
Seja lá qual for o número - de feminicídio, estupro e diversas violências de gênero - são os índices de uma pandemia séria mundial. E se a gente não se dedicar a uma vacina para inocular as pessoas contra o pensamento machista, se a gente não criar meninos fortes, emocionalmente resilientes, abertos, empáticos, não vai mudar. Meninos que são criados de forma acolhedora, firme, amorosa e equitária são imunes ao discurso machista quando chega para eles. >
Mas se meninos recebem uma pregação e depois não recebem acolhimento, é dessa insegurança que o machismo vai se alimentar. >
No livro, eu cunhei uma expressão que chamei de educação feminista amorosa, que é uma educação pela equidade. O primeiro passo é falar menos que ‘meninos são assim, meninas são assado’ e perguntar mais para eles ‘quem você é’. Meu filho me pergunta se brincar de boneca é de menino ou de menina. Eu respondo: ‘não estou interessada nisso. É coisa de Jorge (seu filho)?’. É liberar os meninos para eles se descobrirem, porque quanto menos frustrados a atender as expectativas do mundo, traindo as próprias aspirações e identidades, menos violentas essas pessoas vão ser. Respeitar a alma única do seu filho é já uma maneira de imunizá-lo contra a violência de gênero. >
As outras formas são claras. Você vai passar para eles uma série de valores, mas começa no brincar. É no brincar que eles aprendem o mundo. Um dos primeiros brinquedos que meus filhos me pediram foi uma cozinha com panelinhas. Eles adoram brincar e são duas crianças que cedo se interessaram por me ajudar na cozinha. Tenho um filho de 3 anos que toda vez que me vê no fogão, empurra o pufe para me ajudar a colocar coisas na panela. Uma das séries preferidas dele é o Masterchef e isso mostra também a importância dos bons modelos. Cerque seu filho de bons modelos masculinos. Se você é um homem, seja um bom modelo masculino. >
Infelizmente, no Brasil, temos uma quantidade absurda de mães solo que fazem o trabalho heróico de criar meninos, sozinhas, mas às vezes tudo que você precisa é ser uma testemunha consciente. É ser uma pessoa que está ali para comentar o que é bom e o que não é bom nos homens aparecendo ao redor. É dizer: ‘nossa, que coisa bonita Rodrigo Hilbert cozinha e limpando a cozinha’. Ou dizer: ‘que piada feia esse humorista fez sobre as mulheres’. A gente tem que indicar aos meninos o caminho para onde ir. Não basta dizer onde não ir, mas dialogar, perguntar e deixar eles pensarem. Se eles pensam, eles se transformam. >
Algumas feministas defendem que os homens precisam aprender sozinhos, que não têm obrigação de ensiná-los a não serem machistas. Você fala expressamente que escolheu acreditar nos meninos. Por que você acha que essas duas visões opostas ainda coexistem no movimento feminista?>
Acho que essa visão não é tão oposta ao que estou falando. Qualquer homem adulto é responsável pelas próprias escolhas e pela própria transformação. Não acho que é responsabilidade de nós, feministas, achar o caminho para os homens. Mas é produtivo não atrapalhar esse caminho, porque a política do ‘cala a boca’ e cancelamento atrapalham a transformação masculina. De fato, as feministas não têm obrigação (de ensinar), mas não têm que atrapalhar. E essa postura atrapalha. >
O número 2 é que, quando a gente fala de meninos e adolescentes, estamos falando que nós adultos temos responsabilidade pelas crianças da geração. A responsabilidade sobre homens jovens, adolescentes, pré-adolescentes e meninos pequenos é de toda a sociedade e também nossa, das feministas. >
Dos homens adultos, a gente não é responsável. A gente é aliada. É uma postura diferente, porque as mulheres já têm muito para carregar. Vi muitas mulheres adoecendo porque elas, além de terem que lidar com os próprios traumas, tinham que ajudar seus parceiros. O que é ser uma aliada? Ser uma pessoa que tem escuta ativa, disposta a dialogar, construir, responder perguntas. >
Entre a obrigação das mulheres de dar o caminho dos homens e o ‘não sou obrigada, sai do clubinho’, existe um caminho muito grande, que é o da aliada, que se envolve quando quer porque sabe que é estratégico, inteligente e bom para ela. Porque sabe que um homem curado vai causar menos feridas a mulheres. >
E, nós, mulheres, quando menos feridas pelo machismo, ferimos menos as mulheres. Todos nós temos teto de vidro. Sempre penso nas crueldades que já falei para mulheres na minha vida, principalmente as que não se adaptavam a determinados padrões de beleza ou do que a sociedade esperava delas. Tenho certeza de que ainda estou em transformação todos os dias e a humildade é saber que as pessoas podem se transformar. >
Temos visto alguns episódios nos últimos anos que têm buscado extinguir direitos já conquistados, como as restrições para o aborto legal tanto pelo Congresso quanto por entidades como o Conselho Federal de Medicina. Como você vê esses movimentos? >
Para mim, tudo isso parte desse movimento de homens inseguros. Quando olho a política, gosto de pensar no ser humano de maneira holística. Quando se tem um monte de homens inseguros com a evolução feminina, com medo de não serem amados, admirados e ficarem para trás, tudo que essas pessoas conseguem pensar é que não têm alternativa. Que é melhor voltar para antes, porque estava melhor. >
Você tem uma situação cômoda para eles e desconfortável para as mulheres. As mulheres estão caminhando, está desconfortável para eles. Se não tiver um discurso inteligente para mostrar para eles, a gente trava determinados homens num espaço de medo. Essas pessoas são pessoas que estão embrutecidas pela vida e já estão corrompendo outras pessoas. Tem um movimento de homens extremamente inseguros que, no fundo, são pessoas que acham que não vão ter espaço num mundo em que homens e mulheres compitam de igual para igual. >
Aí, estão manipulando homens mais jovens - esses, sim, sob os quais a gente têm responsabilidade. Estão estendendo a mão para conseguir apoio e quem está apoiando são os homens jovens. O espaço que o Partido Democrata, nos Estados Unidos, mais perdeu foi o de homens com menos de 25 anos. Por que? Porque são homens que estão sem orientação, sem alternativa. >
Quem deveria estar dando essas alternativas? Na minha opinião, outros homens. As mulheres são aliadas, mas os homens têm que tomar as rédeas dessa transformação. É preciso que esses homens se organizem, como as mulheres organizaram as últimas ondas de evolução feminista. É necessário que haja novas ondas de evolução feminista lideradas por homens. Não estou dizendo de homens liderando mulheres, mas homens liderando homens e mostrando o caminho para os homens jovens. >
Ao mesmo tempo, a luta de pessoas trans parece vir sendo mais invalidada nos últimos tempos. Tivemos a suspensão de gênero X nos passaportes nos Estados Unidos e alteração de gênero, como caso de Hunter Schafer. Como esses episódios se relacionam com o contexto de repressão? Por que vemos acontecer, mesmo após esses anos de intenso debate feminista? >
Infelizmente, a população trans é alvo mais fácil da extrema-direita por um conservadorismo por parte das religiões. Tem que ter muita sabedoria ao falar disso, porque geralmente se bota todo mundo no mesmo saco. Eu vi muitas igrejas evangélicas que lutavam contra o preconceito contra pessoas trans, mas a gente sabe que existe um movimento teológico conservador que contamina esse movimento da extrema-direita e escolheu as pessoas trans como alvo fácil para distrair os olhos da população do que importa. >
Tem políticos que se tornaram muito hábeis em manipular os olhares das redes colocando as pessoas trans como vilãs, porque elas são corajosas e estão desafiando nossas certezas sobre o gênero. Mas quando desafio a sua certeza sobre gênero, se a sua identidade é toda construída em caber numa caixinha, há uma crise de identidade. Sinto que as pessoas trans mexem com as inseguranças de quem já está muito inseguro. >
*bell hooks usava a grafia do nome em letras minúsculas >