Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Carol Neves
Publicado em 5 de janeiro de 2025 às 02:00
Soberano em Minas Gerais, o queijo minas artesanal tem uma longa história que acaba de ganhar mais um capítulo de sucesso: o modo de fazer esse queijo se tornou patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco. A decisão foi anunciada no início de dezembro, em reunião no Paraguai.
O estado tem dez regiões que fabricam o queijo artesanal: Araxá, Campo das Vertentes, Canastra, Cerrado, Diamantina, Entre Serras da Piedade ao Caraça, Serra do Salitre, Serro, Triângulo Mineiro e Serras da Ibitipoca. Em todos, a receita é sempre a mesma: leite cru, coalho e o pingo. O que é o pingo? “É a alma do queijo”, define a veterinária Ana Helena Cunha, consultora da Fazenda Taquaral, em Sacramento. “Depois de 12h que o queijo está pronto, você coleta o restinho de soro que sai do queijo e vai usar no próximo. Esse soro/fermento é rico em bactérias lácteas que são benéficas e dão sabor, aroma, textura de cada queijo. Por isso que se você pegar um queijo que é feito da mesma forma, com mesmos ingredientes, aqui e do meu vizinho, são diferentes. Porque essas bactérias lácteas sofrem influência do ambiente, alimentação do gado, altitude, temperatura. Tudo isso influencia”, explica.
O processo do modo de fazer, agora reconhecido como patrimônio da humanidade, também é similar. O leite, que precisa ser produzido na própria fazenda onde o queijo será feito, é ordenhado e coado. Recebe o pingo e o coalho, passa por um corte da massa para separar e retirar o excesso de soro. A formagem é feita em seguida, tirando o excesso de soro e dando a forma ao queijo. Por fim, pronto, o queijo fica maturando – cada região tem seu tempo mínimo. Em Araxá, são 14 dias, enquanto na Canastra são 16, por exemplo. Esse processo, também conhecido como cura, ajuda a combater possíveis bactérias patogênicas no queijo.
Ana Helena lembra o início dos anos 2000, quando um caso de intoxicação alimentar fez a produção correr risco e gerou as primeiras leis para o queijo minas artesanal. “São mais de 30 mil produtores que vivem disso. Lógico que ainda tem um universo pequeno cadastrado, regularizado, mas esse trabalho que vem sendo feito desde a primeira legislação melhorou a qualidade do queijo e do leite em geral, porque mesmo quem não conseguiu cadastramento recebeu as boas práticas”, diz. “É apaixonante trabalhar com queijo minas artesanal. É um produto que não carrega só a questão nutricional, sabor, é uma história”, completa.
O queijo da região Canastra saiu na frente e para muitos acabou se tornando sinônimo do que é o produto. “Acabou que o queijo minas artesanal ficou muito vinculado ao nome Canastra, porque eles foram os primeiros a conseguir fazer o uso da indicação geográfica. E também organizar os produtores para fazer gestão dessa marca. Então, o pessoal confunde, fala queijo Canastra, mas é uma região, não é um tipo de queijo. O queijo é da Canastra”, acrescenta Ana Helena.
TRADIÇÃO E MODERNIDADE
A regularização, que derrubou uma lei que proibia a venda de laticínios não-pasteurizados, foi essencial para o queijo minas artesanal chegar aonde está hoje, inclusive, com o reconhecimento da Unesco. Todo processo facilita a comercialização em maior escala e abriu portas para o produto em outros estados do país. Com todas as mudanças, fazendas mais automatizadas e com foco no negócio convivem lado a lado com outras que têm um trato mais familiar.
A Queijaria Reis Moreira, em Carmo do Parnaíba, na Serra do Salitre, está há mais de 60 anos no negócio. Vanderlino dos Reis Moreira, atual dono, trabalha ao lado da esposa, filha, genro e netos, tendo herdado a fazenda do pai, que, por sua vez, assumiu o lugar do avô.
Ele lembra que a seca que o estado passou em 2024, com seis meses sem chuva, prejudicou a produção, mas normalmente a fazenda produz de 110 kg a 120 kg de queijo por dia. “É bastante gratificante saber que o queijo está sendo reconhecido”, diz, relembrando a época pré-legislação, quando o alimento tinha limites inclusive geográficos. “Eu tenho um irmão que mora em Goiás e era amigo de um gerente de um mercado. Levou um queijo de presente e ele quis comprar, mas não tinha legislação, não tinha nada”, conta. “Aí, começou esse movimento. Teve uma época que quiseram acabar com o queijo”, complementa. Seu Vanderlino foi o primeiro da região a conseguir o selo da Vigilância Sanitária, em 2004.
Apesar da produção ter ficado mais profissional, ele diz que o que importa não mudou: “A gente tem que manter uma regularidade. O sabor do queijo sempre foi o mesmo, só muda pelo tempo de cura. A nossa região tem um sabor mais suave”.
A alguns quilômetros dali, na fazenda do Queijo Eudes Braga, na mesma Carmo do Parnaíba, uma história diferente. Eudes Braga, o dono, iniciou a vida profissional comprando e revendendo queijo em Minas, até que viu a oportunidade de comprar uma fazenda e fazer seu próprio produto, em 2008. Na época, a produção era de 18 litros por dia, com apenas cerca de 20 queijos por dia. Em 2015, o valor já havia chegado a 200 kg de queijo por dia e atualmente a produção de leite já ultrapassa 8 mil litros, necessário para produzir mais de uma tonelada de queijo diariamente. Os números são impressionantes considerando a área de nove hectares – a área de plantio para alimentação dos animais é arrendada.
O impacto do reconhecimento do Unesco ainda é uma incógnita. “É tudo muito recente ainda”, diz a produtora Kécia Braga. A maior parte das vendas é na própria região e para Belo Horizonte. Nesse momento, há esperança de que o queijo minas consiga alçar voos mais longos para fora do estado. “A ideia agora é fazer o selo, que já está em produção, para colocar nas embalagens. O produtor pode colocar impresso ou só selar, para quando chegar no consumidor final ele ter o processo de rastreabilidade do queijo. O objetivo é ter todas as informações, como já existe em outros produtos, identificando que é um queijo típico do Cerrado, reconhecido como indicação geográfica pelo INPI e com um modo de fazer único dessa região”, explica Naiara Marra, analista da regional Noroeste do Alto da Parnaíba do Sebrae, que acompanha o processo.
De volta a Sacramento, na Fazenda Taquaral, o queijo era um amor familiar, com a mãe produzindo para consumo próprio. Dois dos nove filhos dela, José Américo Bernardes e José Artur, o Kiko, viraram empresários no setor de transportes e frete em São Paulo e mantiveram a fazenda familiar com gado de corte. “A gente passava férias aqui. E eu trazia clientes. Fechei muito negócio aqui”, diz Kiko. Na época da pandemia, eles decidiram se aventurar na produção de queijo, em um negócio que vem crescendo rapidamente.
“Na pandemia, vim ficar aqui e meu irmão lá de São Paulo, apaixonado por vaca, entrou num leilão pela televisão e comprou as primeiras 50 vacas (leiteiras). Desceu as vacas, mas cadê a comida para essas vacas? Cadê o berçário para os bezerros? O negócio era mais complicado”, relembra Kiko. “Depois, a gente criou estrutura, bezerreiro, ordenha, fomos profissionalizando. Passou a ter 30 funcionários e aí já virou indústria", diz.
A fazenda hoje é bastante automatizada, com controle artificial da umidade na produção do queijo para maior qualidade, e investimento também em sustentabilidade. Hoje, eles produzem 12 mil litros de leite por dia, com parte da produção se transformando em cerca de 200 quilos de queijo minas artesanal.
MERCADO AGREGADO
O destaque é o queijo, mas a expectativa de produtores mineiros é que o reconhecimento do alimento como patrimônio ajude a lançar luz sobre outros produtos agregados da região, como o café e o vinho.
Em Patos de Minas, no Cerrado mineiro, a Reserva Heitor investe em práticas sustentáveis na fazenda de café. São 141 hectares de área produtiva com café. Marina Rosa, gerente administrativa do local, explica que a bebida anda de braços dados com o queijo. “Toda mesinha que você sentar para tomar um café vai ter um queijinho, e se você for comer queijo vai querer também tomar um café”, diz.
Na mesma região, a Casa Bruxel oferece variedade de cafés e vinhos – em sua loja principal, já oferece uma degustação que inclui harmonização com diferentes queijos da região. Daniel Bruxel, diretor executivo da DB Agricultura e Pecuária, diz que hoje em dia as pessoas se interessam também pelo processo da feitura, o que abre outras possibilidades. “A pessoa quer vir conhecer, entender o processo. Ficou muito pessoal. Mesmo em volumes grandes, as pessoas querem comprar café dessa maneira”, diz. Além de fabricar sua própria linha, a empresa vende grão de café para produção fora do país também.
A entrada no mercado do vinho é mais recente. “O cuidado que a gente tem no café a gente vai ter no vinho, mas acho que a história é o contrário, o café ainda tem muito a aprender com o vinho nessa cultura de tantos anos, tanta tecnologia, qualidade. Casa uma com a outra e uma região que é boa para café tem todo potencial para ser boa com o vinho”, pondera.
Minas Gerais são muitas, repetem os mineiros. Em seus 586.528 km² estão 853 municípios, número maior que qualquer outro estado brasileiro, com mais de 20 milhões de habitantes. Sempre à mesa para as visitas, o queijo une todos, apesar de suas diferenças, seja com um cafezinho ou um vinho de boa safra. “É até queijo com queijo, muitas vezes”, resume seu Vanderlino, rindo.
*A repórter viajou a convite do governo de Minas Gerais