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Fernanda Santana
Publicado em 9 de novembro de 2024 às 05:00
Dia sim, dia também, os comerciantes de uma rua comercial do bairro de São Cristóvão têm visita. Os forasteiros, mulheres e homens estrangeiros, passam para lembrar, por meio de cartões de visita, que emprestam dinheiro. E para dizer um "oi", amigável ou violento, a depender da recepção, a quem está devendo.
Os visitantes saíram da Colômbia para engrossar a massa da agiotagem existente na Bahia. A prática de empréstimo a juros existe em toda a América Latina, impulsionada pelos índices de pobreza e endividamento da população, mas, em cidades colombianas, ela foi um esquema arquitetado em décadas por uma receita que combina cartéis de tráfico e domínio de territórios.
Para abrir novas rotas, criminosos puseram os olhos no Brasil. Sob a lupa, a Bahia apresentou pré-requisitos atraentes aos agiotas: as pequenas empresas locais devem R$ 1,2 bilhão à Receita Federal, possui a segunda maior taxa de desemprego do país (11,4%), e 40% da população está com o nome sujo, ou seja, não pode apelar a bancos.
Instalados na Bahia, os agiotas se espalharam pelo mapa, do sul ao norte, em cidades de médio e grande porte. Uma delas é Juazeiro, onde, na noite do último dia 1º de outubro, dois colombianos (pai e filho) foram assassinados.
O bairro do Coliseu, onde os homicídios ocorreram, é comercial e, segundo comerciantes, estrangeiros aparecem diariamente para emprestar dinheiro. O crime é investigado pela Polícia Civil.
“O triplo homicídio ainda está sendo investigado, a relação do caso com a agiotagem colombiana é uma possibilidade, pois há um grupo deles que está lá há algum tempo, fazendo cobranças, empréstimo diário, e cometendo violência contra quem não consegue pagar”, afirma o diretor do Sindicato dos Policiais Civis da Bahia, Edvaldo Santos. “Todavia, a polícia tem dificuldade em apurar crimes de agiotagem, em virtude da falta de registro, já que a população não vai à delegacia denunciar geralmente".
Como acontece em Juazeiro, em Salvador os agiotas também elegem bairros com potencial no comércio e populosos para trabalhar, como São Cristóvão, Liberdade, Cajazeiras e o centro. Em uma das calçadas da Avenida Aliomar Baleeiro, em São Cristóvão, três dos cinco vendedores ambulantes de plantão por ali já recorreram aos colombianos.
Um deles, inclusive, fechou o box em uma das manhãs chuvosas de outubro em que a reportagem esteve no bairro. Não pelo tempo. "Ela deve a dois ‘gringos’ e fecha quando não pode pagar", afirma um dos vizinhos, também habituado a pedir dinheiro aos estrangeiros.
Cartões deixados na véspera naquelas bancas, que vendiam de CDs a bananas, mostravam como funciona o sistema de empréstimos: quem tomar, por exemplo, R$ 100 emprestado deverá pagar R$ 6 por dia, por 20 dias. No final, pagará um valor 25% maior.
Segundo o Banco Central (BC), a taxa média de juros mensais em bancos é de 13%. Alheios a esses dados ou inadimplentes, os vendedores de hortaliça são os principais clientes dos estrangeiros. A mercadoria deles é perecível: o que não é vendido estraga rápido e precisa ser reposto. Faltar dinheiro é tão frequente quanto um cliente apertar a fruta antes de levar.
Em agosto, uma das vendedoras tomou R$ 8 mil emprestado para repor a mercadoria, comprada em um centro de abastecimento. Foi o segundo empréstimo em dois anos. "A gente conseguiu pagar e hoje não deve nada", contou a mulher, que passa o dia à frente da barraquinha.
"Empréstimo no banco não gosto", acrescenta ela, com a justificativa de que as burocracias dessas instituições são um empecilho para pequenos empreendedores.
Quem prefere o financiamento dos colombianos também alega que o acordo é mais rápido; além do mais, estão mais acostumados a tratar com agiotas do que com atendentes de banco. "No banco querem saber até o que você come", reclama outra comerciante, que pede dinheiro a colombianos há mais de 10 anos.
O negócio é antigo. "Mas aumentou muito nos últimos dois anos", diz um vendedor de lanches. "Vejo uns dez colombianos diferentes aqui", estima ele, enquanto tira cinco cartõezinhos de colombianos de um pote transparente.
No papel, estão escritas as condições de pagamento, um contato com DDD local e o aviso: "Sem fiador, pagamento diário". Se preferirem, os clientes também podem ir até uma das dezenas de salas de empréstimo no bairro.
O intervalo em que os comerciantes observam um aumento da presença de colombianos no bairro coincide com o crescimento da imigração da Colômbia para a Bahia, impulsionada pelas sucessivas crises econômicas, políticas e de segurança no país. Em 2010, 30 colombianos solicitaram moradia temporária na Bahia. No ano passado, foram 97.
Sem encontrar trabalho formal no destino, ou recrutados para a agiotagem antes da imigração, alguns estrangeiros iniciam como "gota a gota".
A função do “gota a gota”, cobrar diariamente as dívidas, é uma das que sustenta a pirâmide da agiotagem colombiana — ela não existe na agiotagem brasileira, que opta pela cobrança mensal.
Esse “gota a gota”, ou cobrador, recebe R$ 300 semanais, o aluguel de uma casa e uma moto para trabalhar. Os chefes são os agiotas, os donos do dinheiro, que ocupam o topo da pirâmide. Na base, está o “tarjeteiro”, que distribui os cartões de empréstimo e cataloga os nomes dos devedores. Quem está nessa lista sabe do risco.
"A mulher daquela banca ali", diz um vendedor de frutas de São Cristóvão apontando para um box fechado, "vivia com medo porque era ameaçada por um 'gringo' e morreu sem conseguir pagar, mas não sei como está isso".
Em março deste ano, a Justiça baiana analisou um caso de violência contra devedores. Um baiano foi assassinado dias depois de relatar à namorada ameaças sofridas após não quitar dívidas com colombianos. O assassinato ainda é investigado pela Polícia Civil.
É da Colômbia que partem as ordens de recrutamento pelos operadores da agiotagem no Brasil, seja de pessoas que ainda querem emigrar ou daquelas que desembarcaram por aqui. Os mais buscados são cobradores.
"Precisando de cobrador em Salvador, Bahia", escreveu um homem no dia 29 de setembro, em um grupo público no Facebook que reúne 21 mil colombianos que moram ou querem morar no Brasil. A convocação despertou o interesse de 19 pessoas.
O recrutamento acontece às claras, apesar de, no Brasil, a agiotagem ser crime passível de detenção de dois anos (que podem ser acrescidos se houver outras infrações praticadas durante a atividade, como ameaça e assassinato).
Os homens são os principais interessados nas vagas, mas não há restrições quanto às mulheres. Em fevereiro, uma colombiana avisou sobre a busca por um “tarjeteiro”, homem ou mulher, para atuar em Candeias, na RMS. Três pessoas responderam.
Os integrantes também se candidatam. “Alguém necessita de cobrador para Salvador?”, perguntou um homem, no último dia 20 de outubro. Dessa vez, ninguém respondeu. Um colombiano que mora na capital baiana há três anos respondeu a duas publicações desse tipo, mas nega ter trabalhado para a agiotagem.
"Eles [os agiotas colombianos] não ajudam os colombianos, exploram", afirma o homem de 40 anos sobre os manda-chuva da agiotagem. "Muita gente trabalha com isso por desespero, da situação econômica", opina.
Os recrutadores custeiam a viagem, a cinco dias de ônibus ou a dez horas em voo com conexão para Salvador. “São pessoas pobres”, afirma um ex-agiota baiano sobre os recrutados para essa rede.
Um velho conhecido colombiano dele, no entanto, não está mais no "quintal" dos negócios. A atividade criminosa permite ascensão interna. Hoje, ele mora em um condomínio fechado e está expandindo os negócios por conta própria. Agora, segundo o ex-contraventor, o colega quer dominar uma fatia do empréstimo ilegal em Alagoinhas. “Eles compram rotas, digamos assim, e tem sempre mais gente chegando", explica o hoje comerciante.
A Polícia Civil da Bahia se limitou a dizer que não possui "recorte estatístico" para dimensionar a agiotagem no estado.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública reconhece a atuação de alguns imigrantes colombianos na agiotagem e afirma atuar de forma "preventiva e repressiva no combate ao tráfico de pessoas" que seriam recrutadas para essa atividade. Em abril, os governos do Brasil e da Colômbia assinaram um memorando para o enfrentamento desse crime.
Entre si, há colombianos que participaram da agiotagem e agora sugerem outro caminho para conterrâneos. No dia 31 de dezembro de 2023, um homem publicou no grupo de imigrantes colombianos no Facebook o desejo de vir morar no Brasil. “O conselho que te dou”, respondeu uma das 69 pessoas que comentaram o post, “é que consiga um trabalho primeiro. Se não, é um ‘gota a gota’ e corre muito perigo”.
O "perigo" da função fica evidente, por exemplo, em um pedido de habeas corpus analisado e negado pela Justiça baiana em 2020. Naquele ano, dois policiais civis foram acusados de matar três agiotas colombianos que atuavam no sul da Bahia, três anos antes.
Segundo o inquérito policial, os agentes cobravam propina de Andrés Zuluaga, Alejandro Cerón e Jaime Cardona para ignorar as atividades ilegais deles. O atraso do pagamento do suborno, ainda de acordo com a investigação, motivou os assassinatos em Eunápolis e Porto Seguro. A Polícia Civil não atualizou a situação dos agentes.
Consultado sobre a quantidade de processos judiciais que citam o termo "agiota colombiano", o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ) afirmou que seu sistema de dados não possui um filtro específico para essa busca. A Receita Federal, que participa de operações contra a agiotagem, afirmou que não se manifesta sobre operações em andamento.
“Quando eu falo que sou colombiano, há um estigma", afirma um imigrante que vive em Salvador há 10 anos e pediu anonimato. "Como se eu tivesse associação com algum crime", reclama. Em conversas com amigos, a agiotagem é um dos temas.
"Uma das minhas teorias é: houve uma guerra interna, entre guerrilhas, paramilitares e Estado. Quando houve os ‘diálogos de paz’, o Estado negociou com muitos atores armados e pagou muita gente para que criassem uma outra vida. Muitos deles viraram agiotas."
A suposição do colombiano não é unânime no país — há também os defensores dos diálogos de paz com as Farc, por exemplo. O conflito na Colômbia existe pelo menos desde 1948. Naquele ano, o assassinato do líder liberal colombiano Jorge Eliecer Gaitán provocou o conflito entre liberais e conservadores.
Desde então, os eventos violentos se sucederam. No início dos anos 90, em cada canto do país, passaram a atuar grupos paramilitares que matavam políticos de esquerda, líderes sociais, professores, estudantes, etc.
O tráfico de drogas também teve influência sobre o conflito armado colombiano. De acordo com investigações internas, os cartéis viraram financiadores de alguns movimentos guerrilheiros e dos grupos paramilitares.
"O controle econômico é fundamental para o controle das pessoas. Se olharmos, por exemplo, para a Colômbia, há um embaralhamento das perseguições políticas com a situação financeira, e muitas vezes a causa da saída do país é a desestruturação econômica”, explica a antropóloga colombiana Angela Facundo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora de imigração.
"Durante muito tempo, a Colômbia ocupou o topo da lista de deslocados internos e, depois, externos", acrescenta. O Brasil foi um dos países na América Latina a colocar em prática um programa de reassentamento solidário para colombianos, em 2004. "Desde a época do meu doutorado, nesse período, pessoas falavam da existência de alguns grupos de colombianos dedicados a práticas. [de agiotagem]".
Não há estudos que apontem a agiotagem como uma atividade à qual imigrantes recorrem ao não encontrar trabalho formal. A pobreza, no entanto, é um fator que deixa pessoas vulneráveis.
"O que tem sido narrado: há um chamado para jovens desempregados, sem muita possibilidade, que veem aquilo como fonte de renda e como prestígio. O cobrador, por exemplo, recebe uma moto. Isso dá uma ideia de prestígio para a pessoa que saiu do seu país, que pode enviar, para quem ficou, uma foto com esse veículo", afirma Angela.
A pesquisadora destaca que sistemas paralelos de empréstimos podem ser a única maneira de pobres e migrantes conseguirem dinheiro. “As cidadanias financeiras estão muito marcadas pelo acesso ao celular, uma boa rede de internet”, afirma, “mas há pessoas que tentam, inclusive, ter acesso a bancos, e não conseguem. Quem já era excluído dos sistemas financeiros oficiais é novamente deixado à margem dos benefícios das soluções virtuais”.