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Fernanda Santana
Publicado em 31 de agosto de 2024 às 05:00
A equipe de assistência social de Wanderley, no Oeste da Bahia, estava no meio do turno. Era 10h, o sol já estava quente e a próxima casa a ser visitada não tinha reboco, nem piso, mas vasos com flores ao redor da porta recepcionavam os visitantes, que bateram palma na falta de campainha. Para espanto deles, saiu lá de dentro uma mulher que não existia.
Vestida com blusa e saia coloridas, Euracy Ramos da Cruz, 51 anos, não era uma miragem. Só que, oficialmente, ela tinha outro nome, outra idade, outro CEP, outros filhos. Outra vida. Não era ela, e sim Neuracy Ramos da Cruz, uma irmã três anos mais velha, com a qual ela não conviveu, moradora de Brasília.
A dona de casa ainda não sabia disso, e convidou os quatro funcionários da prefeitura para conversarem sob um pé de mangueira, onde havia uma tábua feita de banco. Atrás deles estava a casa de dois quartos, com panos feitos de portas, na zona rural de Pixaim, distrito rural a 92 quilômetros de Wanderley, avarandado pelo Rio Grande, afluente do São Francisco.
A visita fazia parte do projeto Cras volante, direcionado ao atendimento de pessoas vulneráveis em locais de difícil acesso, que acontece de segunda a quarta-feira em Wanderley, onde moram 12,9 mil pessoas entre a sede urbana e 20 povoados.
Os forasteiros introduziram a conversa com a anfitriã com as perguntas padrões, como a data de nascimento e a composição familiar. Depois, eles perguntaram: "Alguma demanda específica?". "Eu tenho uma irmã que tem o mesmo nome que eu", respondeu. "Acho que ela está sacando o meu Bolsa Família primeiro".
Na verdade, a dimensão do problema, descoberta a conta-gotas ao longo de mais de uma década, era pior. O pai de Euracy nunca a registrou, mas a entregou como se fosse dela a certidão de nascimento de outra filha, Neuracy. Sem saber disso, Euracy emitiu documentos, como o Registro Civil (RG) e o Cadastro de Pessoa Física (CPF), registrou os filhos, votou, acessou serviços públicos com se fosse outra pessoa.
A certidão de nascimento é o primeiro e mais importante documento do brasileiro, só ele permite a emissão dos demais registros e o acesso a serviços públicos. Sendo o símbolo oficial da existência de alguém, é intransferível. Mas Euracy sempre acreditou que aquele papel amarelado guardado por ela em uma pasta verde lhe pertencia. "Nunca soube que a certidão não era minha", diz.
Analfabeta, ela acreditava que por engano do cartório ou dos pais aquela letrinha “N” sobrava à frente do seu nome, ou que era homônima da irmã.
“Nos demos conta da gravidade da situação, mas achando que as duas tinham o mesmo nome, gêmeas talvez”, lembra Nívea Bastos, coordenadora municipal do sistema de cadastro único, instrumento federal que identifica as famílias pobres, que ganham menos de metade de um salário-mínimo (R$ 706) por mês — caso de 53% dos habitantes locais.
Anos mais tarde daquela entrevista a Euracy, ela se perguntaria como alguém pode envelhecer sem saber que viveu a vida de outra pessoa.
Euracy, uma mulher autodeclarada preta de olhos amendoados e cabelo na altura do ombro, é um dos cinco filhos do casal Domiciano e Amélia. Quando ela nasceu, era costume que as famílias mais pobres riscassem em uma parede de casa as datas de nascimentos dos filhos e só depois — se muito — fossem a um cartório registrá-los.
A certidão de nascimento de Neuracy, por exemplo, é de 1974, três anos após o nascimento dela. A suspeita é de que essa seja a data em que Euracy veio ao mundo. A família não conversava sobre esses detalhes, que no futuro ganhariam o peso de um fardo. Até porque, depois da separação dos pais, cada irmão foi para um canto.
Domiciano ficou com três filhos, entre eles Euracy. Juntos, iniciaram uma vida nômade que, nos anos 70, os levaram à fazenda do lavrador Antônio Barbosa. Como ela estava na beira do rio, a propriedade era esperança de renda e comida. Enquanto isso, Amélia, hoje falecida, criava os outros filhos, entre eles Neuracy, em outro povoado.
Euracy tinha 5 anos quando chegou à fazenda, onde moravam em uma casa de pau a pique, com teto de palha de carnaúba. Wanderley ainda era um distrito de Cotegipe — só se emancipou em 1985 — e a maioria da população vivia da pesca e da agricultura. Hoje, a base da economia local é agropecuária.
Uma cheia do rio, em 1989, forçou uma nova migração. Domiciano partiu, os filhos ficaram. Olindina, professora da comunidade e esposa de Antônio, se comoveu com a situação das crianças, sobretudo a de Euracy. Sempre quieta, a garota apresentava uma deficiência óssea relacionada à desnutrição. Tomou remédios e ganhou peso, mas só andou aos 8 anos.
"Minha infância não foi muito bem. Toda vida judiadinha, criada pelos outros. Meus pais me deram para outra família. Você pode dizer que fui adotada, porque os pais são os que tomam conta”, recorda Euracy, que estudou um tempo na escola comunitária, mas não conseguiu ser alfabetizada.
“Era uma região precária de tudo”, conta o lavrador e pescador Sandro Barbosa, 48, um dos filhos dos donos da casa onde Euracy morou. “Nem tínhamos acesso direito a Wanderley. Tinha que ir de barco a Jupaguá subindo o rio, para chegar a Cotegipe, ou ir descendo o rio até Barra, que era nossa cidade de referência”.
Aos 15 anos, Euracy conheceu o futuro marido, Erenaldo, e foi a vez dela deixar a fazenda para trás. Os dois não casaram no papel, mas tiveram seis filhos e quatro netos, registrados com os dados incorretos da mãe e avó. A vida correu, e uma das irmãs de Euracy, com quem ela não conviveu, foi quem especulou que ela poderia estar vivendo, para a burocracia brasileira, como Neuracy.
"Depois que soube desse engano, aí as coisas pioraram", conta Euracy, que, no entanto, ainda pensava que o único erro nos documentos era ser homônima da irmã.
Não existe um levantamento oficial sobre uso indevido, sem má fé, de documentação alheia. O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pergunta apenas sobre a falta de registro de nascimento de menores de 5 anos.
O resultado em 2002 foi: 77,6 mil crianças nessa faixa etária não tinham certidão, 3,7 mil delas na Bahia. A última pesquisa que apontou a quantidade de pessoas inexistentes para o Estado foi a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015.
Segundo esse estudo, existiam 3,049 milhões de brasileiros sem certidão, 100,6 mil deles na Bahia.
“Muitas famílias desconhecem sua história. O quanto de constrangimento e problemas isso pode causar. São situações que refletem questões históricas de documentação no Brasil”, introduz a antropóloga Cintia Müller, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que pesquisou o tema no mestrado.
“Durante décadas, o país centralizou nos homens a responsabilidade do registro dos filhos, o que já poderia causar problemas. Além disso, o Brasil é grande, tem acervos documentais que não dialogavam. E há o problema com os cartórios, que até pouco tempo não tinham acervo digital”, elenca a pesquisadora.
Para ela, a nova Carteira de Identidade Nacional (CIN), que substituirá a estadual até 2032, evitará duplicidade de documentos, pois o registro será emitido a nível federal e unificará o banco de dados dos cidadãos.
Hoje, a lei também proíbe a emissão da certidão 15 dias depois do nascimento. Nesses casos, é preciso solicitar judicialmente o registro. A Defensoria Pública da Bahia, que presta esse serviço, não informou quantas vezes prestou esse serviço.
No dia seguinte ao primeiro encontro com Euracy, em 2013, a equipe de assistência social da cidade estava encucada com a história dela. Já haviam se deparado com infortúnios no trabalho, como quando uma mulher saiu de casa com facão à mão, desconfiada dos visitantes à porta. "Mas igual ao caso de Euracy, nunca vi", conta Nívea, uma das agentes do Cras volante.
Como a queixa principal de Euracy não eram os documentos incorretos (por achar que se tratava de um registro duplo), e sim o saque do Bolsa Família, Nívea tentou resolver o problema, pois já coordenava as demandas relacionadas ao tema na Secretaria de Assistência Social.
"Começamos a puxar a documentação, e aí a Caixa Econômica informava que, na verdade, a pessoa do documento morava em Brasília", recorda. Soava estranho. "Aí partimos para uma busca mais ativa, descobrimos umas tias mais velhas, irmãs, conversamos com ela, e vimos que havia um erro nos documentos, mas não sabíamos exatamente qual".
"Só que cidade pequena, você sabe como é, a história vazou, e um ou outro surgiu dizendo que ia ajudar", conta Nívea, "e tudo começou a ganhar outras complexidades, porque levaram ela para tirar RG, CPF, com os dados daquela certidão de nascimento".
Nívea conta que só souberam desse desdobramento tempos depois. Na época em que o trâmite de correção de documentos deveria ser iniciado, a dona de casa avisou a ela sobre a suposta solução dos problemas, tanto com o Bolsa Família quanto com a certidão. Só em 2021, Euracy percebeu que não. Estava novamente com problemas para receber o benefício.
A cidade de Wanderley, como o restante do mundo, estava isolada devido à pandemia da covid-19, mas a dona de casa deu um jeito de ligar para Nívea para relatar a situação.
No sistema do programa, acessado por ela depois da chamada, estava um recado: bloqueado para a averiguação do cadastro. E só. Depois de liberações manuais do valor do benefício, a situação, não se sabe como, aparentemente estava resolvida. O Ministério de Desenvolvimento Social, que administra o programa social, não respondeu à reportagem.
Quase três anos depois desse último imbróglio, em fevereiro deste ano, as coisas desandaram de vez. O CPF de Euracy foi suspenso pela Receita Federal, junto com o Bolsa Família. "Vimos que o problema não eram os nomes iguais, mas que só havia uma certidão para as duas”, conta Nívea. “E aí acionamos advogados".
A Receita admitiu a existência de casos como o das irmãs Ramos, embora não tenha calculado quantos. “Temos visto muitos casos de pessoas que compartilham o mesmo registro de nascimento. Muitas vezes pelas mesmas razões [do caso de Euracy], outras sem relação de parentesco, inclusive por fraude”, disse o analista-tributário da Receita Cid Marocci da Silva.
Isso acontece, segundo ele, por “brechas e imperfeições do CPF desde sua instituição”, em 1965. “[Mas] aos poucos, o sistema implementa validação e travas de segurança que impedem ou dificultam isso”. Além disso, o órgão realiza operações de “depuração na base [de dados] para detecção de irregularidades, quando os contribuintes envolvidos são convocados a apresentar documentação. Um ou os dois CPFs são suspensos até que a situação seja resolvida e se apresente uma certidão válida”.
Descobertas desse tipo, ainda que não apresentem indícios de fraude, podem ser encaminhadas à corregedoria dos tribunais de Justiça, que aciona os cartórios envolvidos. Já quando há cheiro de ilegalidade, o órgão notifica o Ministério Público da Bahia (MP), que apresenta ou não uma ação penal. “Não são todos os casos que são fraudulentos”, ressalta Marocci.
Era isso que a equipe jurídica contratada pela Prefeitura de Wanderley para resolver o caso de Euracy precisava provar. Mas o grupo conta ter se deparado com um nó górdio para desatar. O contato com as irmãs Euracy e Neuracy era precário, ainda mais pelas distâncias a serem percorridas até elas, e o afastamento entre as duas.
"Tivemos que procurar todas as pessoas envolvidas, ouvir, para entender bem. A gente precisava entender quem era a verdadeira pessoa do documento. Até para que um juiz, futuramente, pudesse entender também", conta Cássio Braga, gestor administrativo do escritório de advocacia contratado pela prefeitura.
A advogada responsável pelo caso, Sinara Oliveira, iniciou pesquisas antes de ingressar com um processo judicial para provar o erro do pai de Euracy. Então, um fato desconhecido surgiu. Desde 2018, Neuracy já tentava, por meio de uma ação comunitária movida pelo Centro de Referência de Assistência Social (Creas) de Cotegipe, resolver a confusão.
Nessa época, ela estava de volta à Bahia, e pleiteava a aposentadoria. Precisava, portanto, resolver a bagunça da certidão, independentemente de qual fosse. Procurada pela reportagem, diretamente, por meio de uma das filhas e do Creas, Neuracy não foi localizada. A ação movida por ela está parada, e Euracy nunca foi notificada.
Quando soube da ida da Defensoria Pública para Wanderley, a assistência jurídica local decidiu tirar o foco dos tribunais. Recomendou a Euracy ir até os defensores. "Judicialmente, esse caso poderia demorar anos. Também não queríamos um litígio entre irmãs. Desse jeito que propomos, o caso poderia ser resolvido extrajudicialmente, bem mais rápido", completa Braga.
No dia 19 de julho, Euracy colocou a pasta com os documentos debaixo do braço e pegou carona de moto, às 4h30, até o ponto de ônibus mais próximo. De lá, seguiu para a cidade. Seria o início de um renascimento.
A dona de casa chegou ao destino depois das 7h. Uma das pessoas que a recebeu foi a defensora pública Laís Sambüc, coordenadora da Defensoria em Barreiras, a 130 quilômetros de Wanderley. Na região Oeste, só há cinco sedes do único órgão público de assessoria jurídica para 975 mil pessoas.
"Percebemos que não existia a dimensão do problema, ela só sabia que o nome estava errado, como se o erro fosse só esse, não que a certidão de duas pessoas era a mesma", conta Sambüc sobre a conversa com Euracy, que durou mais de uma hora.
Sambüc conhecia histórias similares à dela, como a de um homem que depois de se separar da primeira esposa entregou à nova companheira, analfabeta, a certidão de nascimento da ex. A atual emitiu documentos com os dados de outra pessoa e correu o risco de ser presa por isso.
"Quanto mais distante, mais interior, mais a gente vê casos assim. Muitos cartórios também fizeram registros a mão, que se perderam, e muitos pais não registravam seus filhos, que só percebiam quando queriam se aposentar", perfila a defensora.
"Esse caso de Euracy”, continua ela, “revela primeiro a falta de informação das pessoas, o nível de analfabetismo no Brasil, ela nunca percebeu que o fato de seu nome estar 'Neuracy' na certidão significava que ela pertencia à irmã. O segundo ponto é: se ela tivesse tido acesso a órgãos judiciais gratuitos, isso poderia ter sido verificado antes".
A Defensoria solicitou aos cartórios de Wanderley e de Cotegipe, naquela manhã mesmo, a busca do registro de nascimento de Euracy Ramos da Cruz. Nada foi encontrado. O cartório pode, então, efetuar o registro de Euracy, o que está previsto para o dia 3 de setembro. O nome dela, até então, permanecerá esse.
Durante o atendimento, ela chegou a brincar que gostaria de mudar de nome. Quem sabe “Euza”, um apelido antigo. “Você pode se chamar até Madonna se quiser”, brincou um atendente da Defensoria.
Depois do registro, terá início uma nova fase de emissão de documentos, o que reverterá a suspensão do Bolsa Família recebido pela dona de casa. Filhos e netos dela ainda precisarão ter os registros retificados, o que será feito com intermediação da Defensoria. Também será necessário preservar a história material pregressa de Euracy, para evitar problemas futuros.
"Estou ansiosa, feliz que vou tirar meu documento, que vou voltar a ter meu dinheirinho. Para ver se as coisas melhoram para mim, para a culpa não ficar para mim, nem para a outra [irmã]", comemora Euracy. “Eu vou ser eu”.