A história de como a vagina passou de órgão sobrenatural a tabu

Médicas alertam que situação de vergonha ou desconhecimento afeta busca por atendimento

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 31 de agosto de 2024 às 05:00

Uma em cada quatro mulheres têm vergonha da palavra ‘vagina’; situação afeta busca por atendimento
Uma em cada quatro mulheres nordestinas - 26% delas - tem vergonha de falar ou ouvir a palavra ‘vagina’. Crédito: Shutterstock

O poder de uma vagina exposta chegava a ser sobrenatural: para algumas culturas da Antiguidade, exibir a vulva repelia inimigos e expulsava demônios. Até guerras tiveram seus finais afetados pela vagina: em meio a uma batalha entre persas e medos, no território onde hoje é o Irã, mulheres persas teriam levantado suas saias para confrontar os compatriotas que fugiam dos medos (os povos), chamando-os de covardes. Envergonhados, eles voltaram à batalha - e acabaram vencendo.

No Egito antigo, mulheres mostravam a vulva para as lavouras, tanto para afastar maus espíritos da terra quanto para aumentar a produção. Mesmo no século passado, nas lhas Marquesas, na Polinésia, a vagina era usada para performar exorcismos. Ela podia, ainda, ajudar na fertilidade - em algumas culturas ocidentais, camponesas exibiam vulvas em rituais para fazer crescer as plantações de linho.

Em meio a tantas visões de poder sobre a vagina no passado, cientistas têm questionado o que mudou - ou como o órgão genital passou a ser visto da forma mais oposta possível. Um dos livros que aborda a visão da vagina ao longo dos séculos é A história da V: Abrindo a caixa de Pandora, da autora britânica Catherine Blackledge, doutora em Química.

Dos primórdios para cá, a vagina não apenas deixou de ser exibida, como virou segredo obscuro. "Existe uma vergonha, um medo das mulheres de falar e tocar, mas também um desconhecimento profundo da própria anatomia. Uma das questões que abordo na minha pesquisa é que existe um tabu cultural e discursivo. Por ser tabu, a gente não fala e evita tocar no assunto", diz a pesquisadora Marcelle Silva, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com estudos sobre a autoestima vaginal.

A vagina representa, hoje, tantos tabus que até mesmo falar a palavra virou um problema. Praticamente uma em cada quatro mulheres nordestinas - 26% delas - tem vergonha de falar ou ouvir a palavra ‘vagina’. No caso de ‘pepeka’, um dos apelidos mais comuns inclusive nas redes sociais, o percentual é ainda maior - 40% das mulheres nordestinas têm vergonha da palavra.

Os dados fazem parte de uma pesquisa inédita do Ipec, encomendada pela marca Gino-Canesten, com mil mulheres da região Norte e Nordeste do país. As participantes tinham entre 16 e 60 anos e eram representantes das classes A, B e C. O estudo foi lançado em um evento na última quarta-feira (28), na Casa Rosa, no bairro do Rio Vermelho, em meio à campanha #PPKSemTabu.

Ao longo dos anos, foram definidos padrões para a vulva - de cheiro, cor e de pelos (ou da falta deles). O Brasil até se tornou um expoente nessa área. Primeiro, foi o responsável por disseminar, mundialmente, a chamada ‘Brazilian wax’, uma depilação de cera que implica na remoção total dos pelos na área genital. Além disso, o país ocupa o topo do ranking dos países que mais buscam a labioplastia - a cirurgia íntima que reduz o tamanho dos lábios internos. Só em 2023, foram 28.478 procedimentos no país, segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês).

Pesquisa foi lançada no evento PPK Sem Tabu, que teve gravação de videocast com influencers, a ginecologista Ludmila Andrade e apresentadora Rita Batista
Pesquisa foi lançada no evento PPK Sem Tabu, que teve gravação de videocast com influencers, a ginecologista Ludmila Andrade e apresentadora Rita Batista Crédito: Marina Silva/CORREIO

História

A imagem da vagina não mudou só no Brasil, mas em todo o mundo. De fato, nas sociedades matriarcais da Antiguidade, não havia o elemento da vergonha, como lembra a pesquisadora Gizelia Mendes Saliby, que desenvolveu uma pesquisa sobre o impacto do discurso patriarcal na vivência de mulheres durante o mestrado em Linguística na Universidade de São Paulo (USP). Já foram encontradas até pinturas rupestres que indicam uma certa adoração à vulva. "Havia rituais no século 5 antes de Cristo em que mulheres mostravam a vulva de uma para a outra quando estavam tristes. A genitália era associada ao sagrado", diz.

De acordo com ela, isso permanece assim até por volta do século 16, antes do Iluminismo. Até aquele período, acreditava-se que homens e mulheres tinham corpos semelhantes e os órgãos genitais estavam posicionados em lados opostos. Do movimento iluminista em diante, as coisas mudam de vez. "Tem uma série de teóricos que vão ficar obcecados por encontrar diferenças entre homens e mulheres. Eles começam a investigar e percebem que o orgasmo feminino não é importante para a gestação. Até ali, se imaginava que, para engravidar, a mulher precisava ter orgasmo".

É quando acontece uma mudança de paradigma e as genitálias masculina e feminina passam a ser vistas como complementares. Há, assim, o que Gizelia chama de apagamento da genitália feminina, que ocorre não apenas no aspecto linguístico, mas também imagético. Das propagandas às bonecas, é como se a vulva não existisse. A Barbie, maior ícone das bonecas infantis, não tem vulva. No filme homônimo de 2023, a personagem de Margot Robbie até fala que "não tem vagina".

"A gente começa a pensar: por que será que muitas mulheres se preocupam com o tamanho da vulva? Por que muitas procuram cirurgias para diminuir o tamanho dos pequenos lábios? Porque, na nossa sociedade, quando você pensa na ideia de que algo não é mostrado, você quer esconder. É uma espécie de violência simbólica", diz, citando a falta de conhecimento sobre a anatomia feminina.

O clitóris só foi descoberto em 1559, enquanto o tamanho total do órgão só foi melhor descrito no final dos anos 1990. "Se algo não é nomeado, deixa de existir socialmente. Quando tem esse apagamento linguístico da vulva, não se fala sobre isso e muitas mulheres vão ter esse estranhamento. Muitas nem sabem que existe o nome ‘vulva’. Nessa relação de complementariedade dos órgãos, o que interessa é a vagina porque é o que vai ser penetrado. O clitóris fica de fora, a vulva fica de fora", argumenta.

Cirurgia

Os padrões estéticos para a vagina estão diretamente ligados à posição do Brasil na procura por cirurgias na vulva. A mais buscada na Bahia é justamente a labioplastia - também chamada de ninfoplastia. Além disso, em Salvador, há uma procura muito grande - maior do que em outras regiões - pela redução de clitóris.

De acordo com a médica ginecologista Ana Cristina Batalha, referência em cirurgia íntima e presidente da Associação Brasileira de Cosmetologia, isso pode estar ligado ao pioneirismo baiano nos implantes hormonais. O médico Elsimar Coutinho, morto em 2020, foi precursor na chamada terapia hormonal. No entanto, com o tempo, quando as pessoas começaram a perceber a melhora no corpo de quem usava os implantes, pacientes que não tinham indicação passaram a usar de forma indiscriminada.

"Um dos efeitos colaterais é diminuir o lábio externo e aumentar o clitóris", diz a médica, que criou uma técnica para esse tipo de procedimento. De forma geral, contudo, ela acredita que a demanda das cirurgias é cada vez mais frequente porque a genitália feminina é colocada no lugar de inferioridade. "O fato de você esconder e proibir falar, tocar ou olhar subjuga mulheres no geral", avalia.

A labioplastia é um procedimento que envolve anestesia local e retirada do excesso de pele dos lábios internos. No entanto, não é incomum que ela receba pacientes que fizeram a retirada total os lábios no passado - o que não é indicado e pode levar até a infecções - para fazer reconstrução. O problema é que a maioria das mulheres acredita que a vulva deve ficar totalmente fechada.

"Isso é uma ideia totalmente errada. A gente só vê isso em bebês, em criança, quando a genitália não está toda desenvolvida. No corpo adulto, a maioria fica com algo aparente. Mas existe um estigma e elas buscam a vulva fechada. No momento em que você explica o desenvolvimento e mostra outras vulvas, muitas até desistem de fazer".

Por outro lado, há pacientes que sentem incômodo usando algumas roupas, como calcinha de renda, ou mesmo ao andar de bicicleta e a cavalo. Para algumas pessoas, atrapalha até a relação sexual, porque, com o fluxo sanguíneo, a genitália aumenta muito. Outras podem ter infecção recorrente por excesso de tecidos.

"Por isso, a gente tem um cuidado muito grande para indicar. A indicação é limitada. A gente não pode indicar um tratamento à paciente se ela não tem queixa, porque todo procedimento cirúrgico tem risco. Para pacientes que incomodam com aquilo, no momento em que fazem, melhora até para tomar banho".

A pesquisadora Marcelle Silva, da UFC, destaca que há correntes de estudos que associam esse ideal da vulva pequena - tal qual de uma criança - à pedofilia. "Esse não é o padrão de uma mulher adulta".

O Brasil também é campeão na busca por clareamentos íntimos. Ainda segundo Marcelle, esse padrão de cor remonta ao período colonial. "Vem muito dessa construção da mulher negra como hipersexualizada, enquanto a mulher branca seria mais delicada e civilizada".

A história de Saartjie Baartman, que ficou conhecida como Vênus de Hotentote no século 19, remonta a isso. Nascida na atual África do Sul, ela foi uma das mulheres exibidas na Europa por seu corpo diferente dos padrões eurocêntricos da época.

Atendimentos

No consultório, a médica ginecologista Márcia Machado, professora de ginecologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e da Escola Bahiana de Medicina, observa que até metade das pacientes se sentem constrangidas em falar sobre a própria vagina. Para ela, há tanto valores religiosos quanto familiares que podem influenciar isso. "A criação das famílias tem muitas variações e observo, por questões culturais mesmo, a diferença de filhos do sexo feminino e masculino", conta.

Assim, muitas doenças podem ficar sem assistência. Por isso, ela defende que ginecologistas ofereçam empatia e confiança para passar informações sobre a saúde. Na pesquisa do Ipec, quase um terço das participantes disse que só vai ao ginecologista se houver alguma necessidade pontual.

De acordo com ela, nas primeiras consultas, é comum mostrar um modelo anatômico às pacientes para esclarecer dúvidas. "O maior mito sobre a vagina é o de que não podemos falar sobre ela. Podemos e devemos", reforça.

A médica ginecologista Carla Kruschewsky Sarno, especialista em sexologia, nota que muitas confundem vagina e vulva - tudo vira a vagina. Mas ela defende que os médicos também precisam quebrar o tabu. Hoje, os estudantes de Medicina até costumam perguntar mais sobre sexualidade, mas, no passado, não era assim. Além disso, muitas pacientes ignoram as zonas de prazer do próprio corpo.

"Tem mais conhecimento na internet, tem mais informação, mas sabemos que, muitas vezes, são informações errôneas. Em vez de ajudar na sexualidade, atrapalham. Um exemplo é que tem pacientes que não sabem que têm orgasmo porque ouvem que é algo que a pessoa vê estrelas. Então, eu tenho que explicar que o orgasmo é algo muito individual", explica ela, que é professora da Bahiana de Medicina.

O desconhecimento sobre a própria vagina é tão grande que é comum que pacientes que estão há um tempo sem ter relações sexuais acreditem que a vagina vai ‘se fechar’. "Não existe isso. A vagina é um canal que sempre ficará aberto e é passível de colocação de espéculo de exame ginecológico e de penetração - ou por dois brinquedos, por vibrador e também pelo pênis e dedos. A vagina nunca fecha".

Ela acrescenta que, para que não haja mais tabus sobre a vagina e a vulva, é preciso ter autoconhecimento - e isso significa também tocar a si mesma na região. "Ela deve conhecer o corpo todo. O autoconhecimento é a coisa mais importante para ela e para a sexualidade, diz.

Foi inicialmente por pesquisas com consumidoras do principal produto de Gino-Canesten, que é um tratamento para candidíase, que a equipe responsável notou que muitas mulheres até deixavam de participar dos levantamentos quando descobriam qual era o tema. Segundo a gerente de marketing do produto, Jessica Canton, foi um alerta.

"Quando a gente perguntava, as pessoas nem tinham noção do nome da infecção, nem do que era. O primeiro ponto foi esse, da falta de informação. O segundo é que muitas achavam que era relacionado a uma infecção sexualmente transmissível. A gente não tem educação sobre isso e é algo que a gente vem tentando mudar".

Cheiro da vagina pode indicar que tem algo de errado; saiba como deve ser a higiene

Ao menos uma em cada dez mulheres não conhece bem o cheiro da própria vagina e não saberia identificar quando há algo de errado, inclusive um corrimento anormal. O dado faz parte do estudo do Ipec encomendado por Gino-Canesten e divulgado em um evento em Salvador na última quarta (28). No caso do corrimento, quando ele vem acompanhado de coceira, ardência e vermelhidão, pode ser sinal de que algo está errado.

"Outra coisa que chama atenção também é um cheiro desagradável. Muitas mulheres que têm a vaginose bacteriana reclamam de um odor que parece de peixe podre. Se esse cheiro está diferente e você conhece o seu corpo, se identifica que tem algo de errado, deve procurar um médico para avaliação", diz a ginecologista e terapeuta sexual Ludmila Andrade.

Cada fase do ciclo menstrual tem particularidades, como lembra a ginecologista Márcia Machado, da Ufba e da Bahiana. "A má higiene, o uso de produtos inadequados para limpeza da região íntima ou mesmo uso de roupas íntimas sintéticas e apertadas podem acarretar doenças infecciosas como a candidíase vaginal ou mesmo a vaginite bacteriana".

Segundo ela, a região íntima é composta por dois tipos de revestimentos - pele e mucosa. Assim, a limpeza deve ser feita de maneira delicada, com sabão líquido, de preferência infantil, sem cor ou cheiro. "Não recomendamos usar cremes hidratantes nem sabão em barra", diz.

A ginecologista Ludmila Andrade pondera que sabonetes líquidos com glitter ou com pedaços sólidos devem ser evitados. "Tudo isso acaba causando irritação. Então a gente tem que procurar os que são dermatologicamente testados para que não agrida a mucosa. Existem alguns que limpam sem tirar a gordura de proteção da nossa pele e ela fica hidratada".

Os pelos também têm função protetora e a recomendação de especialistas é de que a depilação seja feita apenas nas regiões laterais. Para a ginecologista Márcia Machado, um dos mitos é de que a higiene íntima é fácil. Ela recomenda a aplicação do sabonete de forma diluída e não indica que o sabonete íntimo seja usado no período menstrual.

Em outros momentos, devem ser restritos a duas vezes por semana. "A região possui dobras que necessitam ser higienizadas. Ela é formada por dois tipos de epitélio, por isso a escolha do produto para limpeza é importante", pontua.