A história da pesquisadora que coletou cérebros de baleia na Bahia e desenvolveu estudo pioneiro

Kamilla Souza já tinha estudado cérebros de golfinho durante o doutorado

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  • Thais Borges

Publicado em 2 de junho de 2024 às 05:00

AKamilla Souza
A pesquisadora Kamilla Souza coletou cérebros de baleia na Bahia Crédito: Kamilla Souza/Acervo pessoal

A pesquisadora Kamilla Souza tinha acabado de sentar para tomar café da manhã com os colegas no Instituto Baleia Jubarte (IBJ), em Caravelas, no Extremo Sul baiano, quando o celular de um deles tocou. Do outro lado da linha, um pescador que tinha avistado uma baleia boiando. Era o início de uma jornada que levaria a um estudo pioneiro sobre cérebros de baleias no país.

Referência na pesquisa sobre cérebros de cetáceos (baleias, botos e golfinhos), Kamilla aportou em Caravelas em agosto do ano passado com uma missão: coletar o primeiro cérebro de baleia para estudo no Brasil. Esse feito havia acontecido alguns dias antes, ali mesmo em Caravelas, quando uma jubarte encalhou na areia. Três dias depois, veio a ligação avisando sobre a morte do segundo animal.

"Quanto mais a gente entende sobre a diversidade de cérebros, mais a gente consegue entender sobre cérebros de mamíferos como um todo, inclusive de humanos. Para entender o quão diverso é o cérebro, tem que entender do máximo de animais. A fatia que conquistou meu interesse foram os cetáceos", explica ela, que é bióloga e doutora em Ciências Morfológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Kamilla Souza coletou cérebros de baleia
Kamilla Souza coletou cérebros de baleia Crédito: Kamilla Souza/Acervo pessoal

Naquele segundo dia, os profissionais receberam vídeos que mostravam o estado da baleia. Pelas imagens, era difícil saber sua localização exata, já que estava sendo levada pela correnteza. Além disso, o mais provável é que o animal tivesse morrido há mais de 24 horas - o que inviabilizaria especificamente a coleta do cérebro. "Ele é um dos primeiros órgãos a se desfazer, então o tempo é algo bem sensível. O ideal é que seja até 24 horas", diz.

A sequência de ações pareceu roteiro de filme: o IBJ, que é parceiro de Kamilla, alugou um barco e o grupo saiu em busca da baleia. O mamífero foi encontrado em uma ilha da região, já na areia - onde a embarcação não conseguia chegar. "A gente desceu e foi nadando até a areia".

Em pouco mais de duas semanas, Kamilla saiu da Bahia com o saldo de três cérebros de baleia coletados com a ajuda do IBJ. No próximo semestre, em agosto, ela deve retornar ao estado para ampliar as coletas e as pesquisas, agora com apoio do Instituto Serrapilheira, entidade privada sem fins lucrativos que financia projetos de pesquisa no país, e como pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Física da UFRJ.

Com o aporte do Serrapilheira, ela conseguiu tornar oficial a Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, que investiga aspectos da morfologia cerebral ainda de outros 50 cérebros de golfinhos. Os órgãos foram reunidos durante o doutorado de Kamilla e estão em uma geladeira na UFRJ.

"Caravelas foi o último lugar que eu cheguei, mas era o primeiro lugar que eu gostaria de ter ido. Nessa época do ano, o Sul da Bahia fica cheio de baleias, pelo período reprodutivo. Eu nunca tinha visto tanta baleia em minha vida".

Cérebro de baleia
Cérebro de baleia Crédito: Kamilla Souza/Acervo pessoal

Local

Desde que entrou na faculdade, a atenção de Kamilla se voltou para a neurobiologia. Na graduação, trabalhou com elefantes africanos, mas a partir do mestrado seguiu para os cetáceos - naquele momento, golfinhos. Até ali, contudo, todos os cérebros analisados por ela eram de animais doados por pesquisadores do exterior.

No doutorado, ela quis mudar isso. Era tão inédito quanto inóspito. Em geral, estuda-se mais primatas e roedores. "Eu teria que começar uma área de pesquisa do zero. Mas se a gente tem tanta diversidade de espécies aqui, por que pegar material de fora?", pondera.

Golfinhos e baleias tinham um aspecto curioso: em geral, todo mundo gosta deles. Para a neurociência, são animais com aspectos comportamentais considerados interessantes - têm estrutura social e se adaptam aos ambientes em que estão.

A ideia no doutorado, então, era coletar cérebros de quatro espécies de golfinhos de águas doce e salgada no Brasil para compará-los. Na seleção, quase foi reprovada porque a banca achava que o projeto era pouco factível, já que se tratava de animais de vida livre que estão submersos. Ao fim dos quatro anos, contudo, ela conseguiu reunir 50 cérebros de golfinhos, fruto de colaboração com 14 instituições diferentes. Mesmo assim, nada de baleias até então.

"Uma coisa era coletar golfinhos. É difícil, porque são animais ainda pequenos, se comparados com baleias. Outra coisa é coletar cérebros de baleia", exemplifica. Quando a possibilidade de fazer uma parceria com o Instituto Baleia Jubarte entrou no radar, o cenário mudou - especialmente pela experiência da entidade no trabalho com conservação.

Além disso, o trabalho de Kamilla é também guiado pelo acaso: ainda que as baleias passem pela costa baiana - especialmente, entre julho e setembro -, não tem como prever a morte de um animal, nem qual será esse bicho. A logística envolvida é difícil. "Coletar animais de grande porte envolve ter licenças e expertise necessária. A gente só conseguiu aqui porque uniu pesquisadores", acrescenta a neurocientista.

Sulcos

Kamilla aprendeu a coletar cérebros no Japão, durante um período de intercâmbio no doutorado. No entanto, o processo era bem diferente da realidade daqui. "No Japão, você saía, colocava o animal na picape e levava para abrir o cérebro na universidade, no ar-condicionado. Aqui no Brasil, não é assim. Eu tive que nadar até lá e depois voltar nadando com o cérebro em um pote", compara.

Se o cérebro humano é muito ‘girificado’ - ou seja, tem muitos sulcos e giros, que são nomes pelos quais aquelas voltinhas são conhecidas -, o cérebro de uma baleia tem ainda mais giros. Também é um órgão grande. Em uma baleia jubarte adulta, ele pesa em média seis quilos. Os que Kamilla coletou na Bahia eram todos de filhotes e tinham, em média, quatro quilos. O de humano, por sua vez, fica em torno de 1,5 quilo.

Para chegar até ele, é preciso escolher um plano de corte no crânio do animal. Em Caravelas, Kamilla até pediu ao IBJ para disponibilizar alguns crânios de baleia para que ela pudesse estudar a anatomia e, assim, decidisse a forma mais indicada de fazer, considerando que estaria em uma praia.

O plano de corte tem que ser o mais próximo dessa anatomia e ainda tirar o máximo de ossos para acessar a região do cérebro. Primeiro, vem a descamação para chegar ao crânio. Depois, é preciso serrar a parte óssea. Além da serra, ela já usou facas, martelinho, espátula e até uma colher (no caso de golfinhos).

"Em volta do cérebro, existem camadas de vascularização chamadas meninges. Você tem que ir com a mão sentindo o cérebro, descolando do osso. A hora de tirar é um momento bem sensível".

No caso dos filhotes, na primeira vez, Kamilla demorou cerca de três horas para conseguir retirar o órgão. Na ocasião seguinte, fez a coleta em duas horas. Em um animal adulto, porém, ela não descarta levar até o dobro desse tempo. "Esse na ilha teve que ser rápido, porque a maré estava subindo muito rápido e ia levar tudo. Foi caótico".

Equipamentos para coleta de cérebros de cetáceos
Equipamentos para coleta de cérebros de cetáceos Crédito: Kamilla Souza/Acervo pessoal

Doenças

Com a Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, conseguiu publicar a primeira descrição do cérebro do boto-cinza, espécie que ocorre em todo o litoral brasileiro. Além dos estudos sobre cérebros saudáveis, Kamilla pretende expandir as colaborações com outros cientistas para analisar as neuropatologias. Dos três cérebros coletados em Caravelas, por exemplo, um deles tinha um tumor.

Uma área em alta na neuroanatomia é o estudo sobre Alzheimer. Algumas pesquisas pelo mundo já mostraram que os marcadores da doença no cérebro humano também existem no cérebro dos cetáceos. Outras doenças comuns em humanos, como meningite e encefalomielite, também podem acometer baleias. "É importante saber dizer como é o cérebro do animal saudável para poder dizer o que não é o cérebro saudável", diz a pesquisadora.

Agora, ela pretende também analisar os cérebros com as técnicas que aprendeu em uma especialização em neuroimagem na Universidade de Oxford, na Inglaterra, com a qual ainda tem parceria. Com esse intercâmbio, será possível usar os protocolos de ressonância magnética desenvolvidos lá para analisar os cérebros dos animais aqui.

Os próximos passos incluem trabalhar aspectos como as diferenças entre cérebros de cetáceos e outros mamíferos, como os humanos, a conectividade entre as áreas do órgão e a análise da composição celular. "Quantos neurônios uma jubarte tem? A gente ainda não sabe. Meu plano também é recrutar mais alunos que queiram estudar isso", completa.

Baleia jubarte encalhada na praia em Caravelas
Baleia jubarte encalhada na praia em Caravelas Crédito: Kamilla Souza/Acervo pessoal

Para o médico veterinário Milton Marcondes, coordenador de pesquisa do Instituto Baleia Jubarte, os estudos sobre o cérebro são importantes porque podem ajudar a entender, inclusive, os problemas que levam baleias a encalhar. Esse é o caso de algumas que são afetadas por vírus como o mobilivírus, que causa desorientação em cetáceos.

Além disso, ele destaca a possibilidade de a pesquisa sobre o cérebro contribuir com os estudos sobre a linguagem dos cetáceos. "Tem muitos estudos recentes sobre a comunicação de baleias. Tem um pessoal que publicou um trabalho sobre as cachalotes, mostrando que elas têm estrutura de linguagem semelhante ao ser humano. É difícil falar em inteligência, porque esse é um conceito que varia muito. Mas baleias são animais diferenciados".

Kamilla Souza fez a primeira coleta de cérebros de baleia no país
Kamilla Souza fez a primeira coleta de cérebros de baleia no país Crédito: Kamilla Souza/Acervo pessoal

Plano é implementar geladeira de cérebros de baleia na Bahia

Por enquanto, os cérebros de baleia coletados em Caravelas, no Sul da Bahia, continuam lá, na sede do Instituto Baleia Jubarte (IBJ). Eles estão armazenados em recipientes com formol, mas isso deve mudar em breve. A ideia da pesquisadora Kamilla Souza é implantar uma segunda geladeira de cérebros para pesquisa. Além do refrigerador que tem 50 cérebros de golfinhos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o plano é ter um novo equipamento na Bahia, no IBJ.

Segundo ela, a proposta é para a próxima temporada reprodutiva, que começa no início do próximo semestre. "Nessas próximas coletas, quero fazer algo um pouco mais sofisticado e não usar uma coisa tão tóxica quanto o formol. Quero usar uma solução tampão, que é para manter as células vivas no material e, para isso, (a solução) tem que ficar na geladeira", explica.

Tendo outro ponto de apoio e estudo além do que fica no Rio de Janeiro, Kamilla acredita que pode contribuir para desenvolver pesquisas com outras instituições não apenas da Bahia, mas de outros estados da região Nordeste. "Minha ideia principal é estabelecer esse ramo da pesquisa no Brasil. Não quero ter uma coisa centralizada e não quero fazer isso sozinha. Se tem baleia na Bahia, por que não pode ter uma geladeira de cérebros de baleia na Bahia?", argumenta a neurocientista.

Procurados pela reportagem, os representantes do IBJ confirmaram a intenção de implementar essa geladeira para pesquisa para os próximos ciclos reprodutivos. "Estamos trabalhando para viabilizar essa geladeira", afirma o coordenador de desenvolvimento institucional da entidade, José Truda.

Em meio 40 anos dedicados ao trabalho de conservação do IBJ, Truda acredita que a principal função da instituição nesse trabalho é dar suporte a um estudo como o que tem sido conduzido por Kamilla. "É um trabalho pioneiro e nossa expectativa é de poder continuar colaborando. São cérebros de animais que morrem ou que chegam na praia mas não há possibilidade de salvá-los", reforça.

O médico veterinário e coordenador de pesquisa do IBJ, Milton Marcondes, falou sobre o diferencial do uso da ressonância magnética para entender os cérebros das baleias. "É uma coisa inédita usar aparelhos com uma possibilidade de resolução muito alta para mapear o cérebro do animal e entender as diferenças", avalia.

Óleo de baleia era usado como petróleo no Brasil colonial; animais foram caçados até proibição em 1985

A inteligência das baleias pode explicar como elas conseguiram resistir à caça predatória e garantir a continuidade de sua existência. Essa é a avaliação do historiador Wellington Castellucci Junior, doutor em História Social e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que tem pesquisas sobre a caça às baleias no Brasil.

Caçar baleias era algo permitido no Brasil até 1985, quando o país assinou um acordo internacional que proíbe essa atividade. Mas, antes disso, a pesca existiu por séculos no país. Segundo Castellucci Junior, essa atividade começou no país em 1602, em Itaparica. Naquele contexto, a caça emergiu de forma diferente - com um caráter mais comercial.

"A própria dinâmica da época demandava a produção de matriz energética. A caça às baleias é fruto dessa necessidade, uma vez que o petróleo só é descoberto em 1859", explica.

O óleo de baleia, assim, cumpria todas as finalidades de uma matriz energética: era usado para iluminação, para as engrenagens dos engenhos e até para lubrificar máquinas após a Revolução Industrial, na Inglaterra. A ideia muito difundida de que casas e igrejas eram construídas com esse óleo, porém, não está confirmada em registros históricos.

"Do ponto de vista documental, não há comprovação. A afirmativa que se dizia no passado era que muitas vezes a pessoa ganhou tanto dinheiro com o negócio do óleo de baleia que pode ter construído uma mansão. Mas o óleo tinha um custo elevado, então dispensá-lo para a construção civil é questionável".

Até 1801, a Coroa portuguesa instituiu o monopólio da caça às baleias no Brasil. No entanto, ao contrário da prática de países como Estados Unidos e Inglaterra, que desepenhavam a atividade em mares profundos, aqui era apenas em áreas costeiras. Em alguns anos, entre maio e outubro, mais de 220 baleias eram capturadas apenas na Bahia.

No estado, eram predominantemente baleias jubartes. Há relatos de que baleias francas também estariam incluídas, mas não há registro da espécie em documentos, como ocorre em estados como Rio de Janeiro e São Paulo.

A caça começou a declinar ainda no final do século 18, no Brasil, devido à pesca em grande escala praticada pelos Estados Unidos. Enquanto por aqui a atividade era feita com o uso de pequenos botes a remo, sem tecnologia que permitisse nem mesmo a saída da Baía de Todos os Santos, os Estados Unidos desenvolveram navios que permitiam viagens de até quatro anos nos oceanos.

"Na segunda metade do século 18, eles já tinham o domínio das rotas migratórias no Atlântico. Interceptavam as baleias e matavam elas em alto mar, processando o óleo. Em 1840, o Atlântico já era um deserto de baleias", afirma.

Ainda assim, até o final dos anos 1960, quem morava em Salvador ainda podia avistar pequenas embarcações caçando baleias no mar, de acordo com o professor.

"As baleias percebiam que, ao chegar aqui, eram mortas. Começaram a buscar outros refúgios de sobrevivência, por isso ocorre a redução signitivativa da presença na BTS. O que temos agora é fruto de mais de 30 anos de proibição de caça. As baleias estão voltando à BTS porque são suficientemente inteligentes para saber que, agora, elas podem voltar aos seus antigos locais de reprodução".