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A festa de Iemanjá ficou 'instagramável'? Entenda o impacto das redes sociais no aspecto religioso do Dois de Fevereiro

Crescimento do público nos festejos tradicionais foi acompanhado pela divulgação nas plataformas digitais, mas opiniões se dividem

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 1 de fevereiro de 2025 às 05:00

Nas areias, não é incomum que os presentes na festa registrem imagens em seus celulares, como neste registro de 2024
Nas areias, não é incomum que os presentes na festa registrem imagens em seus celulares, como neste registro de 2024 Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Diante do mar do Rio Vermelho, uma mão segura um punhado de flores brancas e azuladas. Na foto, os dizeres: ‘Odoyá, Iemanjá’. Um clique e, no instante seguinte, a imagem estará nos stories do Instagram de alguém. Até domingo (2), quando se comemora a festa de Iemanjá, provavelmente o seu feed em redes sociais - até a nichada BeReal, com sua proposta de fotos do momento - estará dominado por posts sobre o Dois de Fevereiro.

Não é novidade que a festa de Iemanjá cresceu exponencialmente. Em 2024, havia um milhão de pessoas na região - mais do que o dobro de uma década antes, em 2014, quando 400 mil compareceram. Este ano, a expectativa é que seja maior. Mas, ao mesmo tempo que o aumento dialoga com o turismo, está ligado a um novo olhar sobre a celebração: o ‘instagramável’, bem como tudo de positivo ou negativo envolvido.

Enquanto uma das mais importantes festas populares do Brasil atrai o foco de lentes de celulares, adeptos de religiões de matriz africana e frequentadores tradicionais debatem um dilema: ao mesmo tempo em que celebram que mais pessoas cultuem e difundam Iemanjá, se preocupam com o fato de que nem todo mundo parece estar lá com essa intenção. Com a Iemanjá ‘pop’, vêm também aqueles que se importam mais com o registro do presente do que com o sentimento da oferenda.

Na organização do presente principal, ainda a cargo dos pescadores da Colônia Z1, pouco mudou. Eles começaram em 1923 e, agora, sabem que haverá muito trabalho, mas o cronograma é o mesmo. “A festa cresceu demais”, admite o presidente da entidade, Nilo Garrido, integrante da Z1 há 38 anos.

“Não começa mais no dia 2. Começa no dia 1. Esse ano, por ser domingo, acredito que vai ser desde sexta (31). Muitos religiosos vêm, mas também têm muitos que nem sabem para que vieram. Vêm só para o profano”, acrescenta Garrido.

A expectativa deste ano é quebrar os recordes, segundo o presidente da Empresa Salvador Turismo (Saltur), Isaac Edington. Isso significa também recordes digitais. "É uma festa muito bonita, que tem a devoção das pessoas que ocupam as praias. Eu diria que é emocionante. Tudo aquilo que as pessoas sentem prazer em participar, elas levam para a rede social", pondera.

Registros com celulares se tornaram comuns na festa de Iemanjá
Registros com celulares se tornaram comuns na festa de Iemanjá Crédito: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO

Presença

Os primeiros registros da festa de Iemanjá são da década de 1920 - em 2023, inclusive, órgãos oficiais celebraram os 100 anos do evento. Mas historiadores apontam que foi só no fim dos anos 1950 que os festejos de Iemanjá não apenas ganharam uma data fixa - antes, era móvel - como foram oficialmente batizados para a Rainha do Mar.

À medida que o tempo passava, a manifestação popular só crescia. "Hoje, temos meios eficazes de informação e divulgação, então (o Dois de Fevereiro) alcançou dimensões incalculáveis. São pessoas adeptas, simpatizantes, não adeptas e curiosas que tentam entender o que é a festa. Mas acho que a tendência é melhorar, para acolher todos que querem conhecer", analisa Pai Pretinho de Iroko, babalorixá do Ilê Axé Iroko Sun.

Apesar do aspecto religioso, a festa do 2 de Fevereiro não é exatamente uma obrigação para terreiros de umbanda e candomblé. Muitos membros das casas participam no dia, mas, em geral, cada espaço tem festas de Iemanjá em seu calendário. "Sempre tem alguém daquele terreiro que gosta e vai lá levar sua flor e seu perfume. Agora, as datas festivas são de acordo com cada casa. No meu terreiro, eu faço um pequeno presente para Iemanjá e Oxum no fim do ano. Tem que ser para as duas, porque são irmãs", explica Pai Pretinho de Iroko.

A divulgação da festa de Iemanjá pela imprensa nacional e internacional também pode ter ajudado a difundi-la, como aponta o dirigente do Terreiro de Umbanda Cumoa, Pai Rai. "São muitas pessoas, muitos bares, querendo aparecer para rede social". Os assaltos, cujos relatos por vezes aparecem em redes sociais, são monitorados por um grande contingente policial. "Sempre teve assalto. Mas, com celular, todo mundo quer filmar, quer tirar foto, e fica exposto na rua", opina Pai Rai.

Para ele, a festa ainda vai crescer mais. "A cada ano, vai ser maior e mais bonita. Mas também vai ser pior", pondera, citando que os aspectos negativos da exposição. "Você desce ali na areia e vê coisas que fala ‘meu Deus, não estou vendo isso’. No ano passado, vi uma moça se depilando na água, dizendo que era para Iemanjá trazer força. O pessoal bêbado, drogado, jogado na areia. Muitos não têm respeito pelas nossas tradições".

A bebida alcoólica, inclusive, é um ponto delicado. Ao mesmo tempo em que é natural para o lado profano, o aspecto religioso não a contempla. "Quem vai fazer sua oferenda ou participar com seu terreiro, leva tudo, menos bebida alcoólica. Para a entidade se manifestar, a pessoa tem que estar totalmente lúcida, sóbria. Geralmente as pessoas vão cedo, fazem sua homenagem, depois tomam uma cerveja, comem seu petisco. É natural, a bebida faz parte da festa. Mas no contexto religioso, sou contra", diz Pai Pretinho de Iroko.

Para o presidente da Colônia de Pescadores Z1, Nilo Garrido, algumas situações passam do limite. "Ontem (segunda-feira) mesmo, passaram uns cinco caras com uma camisa com Iemanjá desenhada com dois copos de cerveja na mão. É complicado, porque Iemanjá não é para ter a ver com cerveja", afirma.

Em 2024, um milhão de pessoas estiveram nas ruas do Rio Vermelho
Em 2024, um milhão de pessoas estiveram nas ruas do Rio Vermelho Crédito: Ana Albuquerque/CORREIO

Outro dia

Esse crescimento fez com que a artista multimídia e produtora cultural Ana Dumas, 61 anos, mudasse o dia o cortejo do balaio que organiza há 26 anos. Desde o ano passado, o presente organizado por ela e que reúne cerca de 500 pessoas é entregue no dia 1 - saindo nas últimas horas do dia 31. "A gente não estava mais a fim de ficar brigando por meio metro de espaço. A gente desperdiçava uma vibe na competição que poderia estar sendo canalizada para agradecer, reverenciar. Na madrugada do dia 1, a gente pôde se concentrar na oferenda. Isso conta muito mais do que ter likes", diz ela.

No ano passado, ela chegou a fazer um exercício: foi sem celular e sem fotografar nada. Queria apenas se conectar com Iemanjá. Para Ana, tanto o Dois de Fevereiro quanto o Bonfim são ocasiões que geram imagens bonitas. No caso de Iemanjá, a diversidade de cores e o mar dão o toque especial.

"O Instagram, já é uma rede que nasce em função da imagem. Acho que essa conjuntura deu esse boom. E, nessa explosão, produzir essas imagens, compartilhar e conseguir os likes é mais importante do que qualquer coisa. É mais importante, para alguns, do que parar e botar uma flor para Iemanjá".

A analista de relações internacionais Fayga Cabral, 47, também faz sua homenagem antes do dia 2 - geralmente, nos dias 31 ou 1. Filha de Iemanjá na umbanda, contudo, ela deixa a oferenda para o altar que tem em casa e prefere levar apenas alfazema e uma rosa no dia. Carioca, frequenta o Dois de Fevereiro no Rio Vermelho desde 2014 sem falta, mas já tinha passagens pela festa desde 2006.

"Tem o lado louvável (do crescimento) e o lado da hipocrisia, das pessoas que vão lá só para tirar foto. Pagam R$ 10 para jogar uma flor e não sabem nem o motivo. Jogam o vidro, sabonete com tudo dentro. É uma festa instagramável, sim, como todas as festas de largo. Mas Iemanjá é popular. Muita gente diz que é louca para ser filha de Iemanjá, sendo que a gente não escolhe orixá". Ela não vê problema em gostar de Iemanjá, mesmo sem ser de religião de matriz africana - pelo contrário. "O que sou contra é sujarem a casa dela e essa necessidade de tirar foto de tudo.

Turismo

Ainda que tenha sido iniciada no século passado, a festa no Rio Vermelho ganhou novo fôlego quando entrou no calendário municipal de eventos, em 2013. Na época, a plataforma incorporou festas tradicionais e lançou novos formatos.

Por isso, Isaac Edginton, da Saltur, avalia que, para a cidade, a divulgação do Dois de Fevereiro em redes sociais é positiva. É uma forma de mais pessoas conhecerem o dia tradicional. "As pessoas têm a oportunidade de vir para Salvador, mas circulam em outros pontos. Diferente do Bonfim, que é uma procissão, a festa de Iemanjá é muito concentrada no Rio Vermelho".

Por isso, ele descarta a possibilidade de, um dia, dividir a festa em diferentes localidades. Segundo Edington, trata-se de um evento que fortalece o Rio Vermelho enquanto bairro da boemia. "Tem uma ressonância e um efeito econômico. As pessoas participam de forma harmônica e é muito positivo para diversidade cultural e religiosa. Ao mesmo tempo, o resto da cidade funciona normalmente".

Na última década, a procura por pacotes para o período aumentou cerca de 10%, segundo a Associação Brasileira de Agências de Viagens na Bahia (Abav-BA). "A festa de Iemanjá tem uma procura especial para nosso turista nacional, que já se programa, e tem aumentado ano a ano, fortalecendo o destino Salvador. Os turistas estrangeiros que são adeptos do tropicalismo e que estão em Salvador irão participar", acrescenta o diretor da entidade Jorge Pinto.

Entenda a cronologia da Festa de Iemanjá no Rio Vermelho

Nos idos de 1800, o Rio Vermelho era o palco da festa de Sant’Ana, que começou acontecer em 1823, ano da Independência do Brasil na Bahia. As lendas diziam que uma idosa tinha salvado os moradores de um bombardeio português.

  • 1923-1924 - O primeiro presente

A pesca andava em baixa e os pescadores do Rio Vermelho, que decidiram oferecer um presente a Iemanjá. A primeira tentativa não deu certo, mas a segunda foi orientada por uma ialorixá.

  • 1930 - A separação das festas

Um padre disse que não queria mais presentes para a ‘mulher com rabo de peixe’ na festa de Sant’Ana. Os pescadores se recusaram a parar. A Igreja de Sant’Ana passou a fechar no dia.

  • 1959 - Data fixa

A data foi móvel até, provavelmente, 1959, segundo a historiadora Edilece Couto, em sua tese de doutorado. Foi só no fim dos anos 1950 que o presente virou ‘ Festa de Iemanjá’.

  • 2020 - Patrimônio imaterial

Há cinco anos, a festa de Iemanjá é reconhecida pela Fundação Gregório de Matos como patrimônio imaterial de Salvador. Um ato solene fez o registro, na última edição antes da covid-19.

  • 2024 - Um milhão de pessoas

A segunda edição após o retorno em 2023, depois da pandemia da covid-19, teve o maior registro de público até então. Com um milhão de pessoas na rua, foi mais que o dobro de uma década antes.