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Da Redação
Publicado em 15 de fevereiro de 2022 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Filmando numa aldeiazinha em Portugal, perguntei aos seus moradores o que fariam se alguém erguesse o capô de um carro e detonasse música da pior qualidade a todo volume, sem se preocupar se os demais estavam dispostos a ouvir. Garantiram-me que as senhoras acorreriam às suas janelas, a dirigir-se ao fulano em calão e a arrojar o conteúdo de seus penicos, tudo que fosse lixo que estivesse ao seu alcance e até mesmo algum eventual objeto contundente, capaz de causar dano à fuselagem do veículo e à caixa craniana do seu condutor. Ao mesmo tempo, homens e rapazes iriam tomar satisfações ao infrator, acossá-lo, ameaçá-lo, e a polícia não tardaria a tomar as medidas cabíveis.
Filmei também numa pequena cidade do interior da Bahia que era um encanto, um primor, um mimo. Limpíssima, bem urbanizada, acolhedora, agradável, com um clima ameno. As pessoas cujo depoimentos fui recolher relataram-me que a paz ali acabava por volta do entardecer de sexta e permanecia banida da cidade até a noite de domingo, quando não até a manhã de segunda. O holocausto era desencadeado por quatro motoristas que se reuniam na praça principal e mandavam ver nos seus respectivos paredões. E aí era um tal de paredes a tremer, de bebês que berravam a noite inteira, de casais que não conseguiam se concentrar pra fazer amor...
As vítimas da balbúrdia receavam prestar queixa pois os perpetradores eram capazes de os emboscar em algum ermo. E os policiais a bordo das viaturas, ao invés de coibir as ações abusivas, simplesmente saudavam os infratores, como a compactuar com eles.
Fiquei igualmente encantado com a atmosfera nostálgica de outra cidadezinha baiana, incrustada num vale verdejante, onde filmei um documentário. Infelizmente, os vândalos batiam ponto na pracinha e o som de seus carros era tão incomensuravelmente alto que, mais do que não poderem dormir, rezar, ler, ver a novela, as pessoas não conseguiam sequer conversar entre si, ainda que no refúgio de seus lares. Certo dia, os hunos detonaram a mesma música ao mesmo tempo, no máximo volume que puderam. Casas racharam, gestantes deram à luz prematuramente ou sofreram abortos e idosos foram levados às pressas ao hospital, com tremores, vomitando e na eminência de um AVC ou enfarte, quando não os dois ao mesmo tempo. Os decibéis chegaram a causar incômodo em cidades a cerca de trinta quilômetros!
Mistério o que pode haver de divertido e gratificante numa ação tão completamente imbecil. Que motivo leva alguém a deliberada, calculada e gratuitamente, promover semelhante orgia de barulho? Que necessidade doentia é essa de perturbar a tranquilidade pública e encher o saco da humanidade? De onde vem esse prazer mórbido, sádico e patético de impor aos outros a música que se quer ouvir, no volume em que se quer ouvir, no momento em que se quer ouvir, pelo tempo que se quer ouvir, sem se importar se nas cercanias há cancerosos, anciãos, crianças de colo?
Será crassa cafajestada, capadoçagem, molequeira? Exibicionismo do mais primário, necessidade inconsciente de superar um trauma de infância, cretinice em estado puro? Ou, como sugere um estudo da OMS que causou furor há alguns anos atrás, uma forma de compensar a impotência sexual?
Gabriel Lopes Pontes é cineasta, romancista e tradutor