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A construção do novo coronavírus

  • D
  • Da Redação

Publicado em 14 de março de 2020 às 05:37

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Artigo recente de Nick Fox (www.bit.ly/SociologyLens) aponta, acertadamente, para a necessidade de pensarmos a atual epidemia de COVID19, causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-19), como um agenciamento múltiplo, que ele propõe chamar de epidemic assemblage. Sugiro nomear esse fenômeno de virus assemblage (“vírus-rede"), pois a epidemia é, ao mesmo tempo, sua causa e consequência.

O atual agenciamento epidêmico, explica Fox, não existiria sem o fluxo de pessoas e commodities, por um lado, e sem relação cada vez mais próxima entre humanos e animais não humanos (www.bit.ly/newcoronavirus). Para ele, “a disseminação efetiva do Covid-19 pelas populações humanas e fronteiras locais, regionais e nacionais deriva da natureza dessas interações comercializadas entre humanos e não humanos. Desde a mudança inicial do vírus do animal para o hospedeiro humano, até sua rápida disseminação nas comunidades e dentro de entidades físicas, como prisões e navios de cruzeiro, os negócios e comércio globalizados (e movimentos associados de mercadorias e seres humanos através das fronteiras) aumentaram a capacidade do Covid-19 de infectar em larga escala”. Não há como negar esse aspecto.

Entretanto, o texto de Fox deixa de fora questões centrais para a compreensão da gênese do vírus e da epidemia: a sua construção científica, política e comunicacional. A partir de uma análise neomaterialista, podemos dizer que o vírus está longe de ser apenas uma entidade biológica isolada, provocando doenças nos humanos e se difundindo na velocidade das trocas mundiais. Antes de ser um objeto natural, ele é resultado de entrelaçamentos de múltiplas instâncias e agências. Ele é “natureculture” (Haraway). O vírus e sua epidemia formam um “dispositivo” (Foucault), um “fenômeno” (arranjos agenciais que geram as entidades - Barad), um virus assemblage. Como seria possível isolar o vírus do humano, ou da cultura?

Para começar, o vírus e a doença a ele atribuída são identificados como SARS-COV-2 e COVID19, respectivamente. O seu mapa genético é construído nos laboratórios de pesquisa - assim como foi, por exemplo, o “bóson de Higgs” (primeiro como entidade matemática e depois visualizado no acelerador de partículas no CERN). Como constructo científico, as definições do vírus e de sua doença estão sujeitas sempre a reformulações pela quebra de paradigmas, pela invenção de equipamentos ou pela criação de métodos mais eficazes. Não há nada de errado nessa dinâmica, pois o que importa é a boa produção do fenômeno (aceito como verdadeiro pelo reconhecimento do pares). Recentemente, a COVID19 mudou de status de epidemia para pandemia, a partir de protocolos, também constructos epidemiológicos, da Organização Mundial de Saúde (OMS) (www.bit.ly/PandemiaOMS).

Há disputas de posições sobre a periculosidade do vírus e o debate está longe do fim. Vejam, por exemplo, esses posicionamentos divergentes de dois médicos infectologistas: um sustenta a gravidade da situação  (www.bit.ly/MédicoDesabafa), enquanto o outro afirma não haver motivos para pânico (www.bit.ly/MédicoSemPânico).

Sob o ponto de vista comunicacional, o virus assemblage se faz na circulação da informação jornalística massiva, nas redes sociais dentro e fora da internet, nos grupos privados... As mídias produzem o fenômeno pela força das narrativas construídas em torno de sua origem, dos perigos da doença, das formas de tratamento, da busca por vacinas e das comparações com outras epidemias, como a gripe espanhola ou a peste bubônica.Pela primeira vez na história, estamos acompanhando esse agenciamento em tempo real.

Há hoje uma avalanche de informações e de fake news que vão constituir esse virus assemblage. Como a ciência, mas em outro modo, a mídia é um dos elementos centrais na construção do fenômeno. A diferença entre notícia séria e fake news está justamente na forma como se produz a relação com as cadeias de referência. Uma boa informação é aquela auditável, transparente, explicitando as referências às quais se liga (fontes confiáveis, dados fidedignos...). Notícias falsas não têm boas cadeias de referências e são opacas.

Junto à ação médico-científica e à ação comunicacional, a dimensão política também é um elemento central na produção do agenciamento. O reconhecimento da doença e das condições médico-hospitalares compõem uma parte considerável desse virus assemblage, pois vão balizar as ações concretas. A Itália demorou para agir e hoje sofre os castigos da epidemia. Aqui, recentemente, o presidente Bolsonaro negou a importância da crise e do vírus. Esse discurso bate de frente com as informações científicas, médicas e midiáticas. Agora, depois da ameaça de contágio chegar bem perto do Planalto, há uma mudança no entendimento, produzindo novas ações.

As políticas públicas tomadas (ou não) expressam a constituição local do virus assemblage (mobilização de recursos, melhoria de infraestrutura hospitalar, mudança na ação dos planos de saúde privados, campanhas de informação, bloqueio de fronteiras, toque de recolher, fechamento de instituições e espaços públicos, cancelamento de eventos políticos, esportivos, culturais...). Como toda controvérsia social, o virus assemblage revela as condições de infraestrutura e de organização política nos países afetados.

Portanto, a rede apontada por Fox precisa sem ampliada: o virus assemblage é produzido nos fluxos da globalização e na interrelação entre humanos e animais, mas também nos laboratórios de pesquisa que dão nome e instituem a sua ontologia, nas políticas públicas que produzem ações concretas, na guerra das imagens e discursos escolhidos e veiculados nas mídias, na escolha por  formas de prevenção e tratamento médico, na definição epidemiológica sobre a situação...

Mais do que um objeto a ser isolado, para usar um termo dos laboratórios científicos, o fenômeno precisa ser montado, reagregado e descrito em toda a sua rede de ação para que ações políticas efetivas sejam desenvolvidas. Todo objeto é social. O isolamento é apenas uma ferramenta de simplificação grosseira da realidade. É isso que faz o laboratório para ler o seu genoma e lhe dar um nome: retira o vírus do contexto e o manipula em condições especiais. Mas ele não existe no laboratório científico. Ele só existe associado, sendo, portando, fruto de um amplo agenciamento. Os exemplos tidos como “colaterais” são inúmeros: diminuição da poluição ambiental na China pela redução da atividade industrial, briga de gangs de macacos na Tailândia pela ausência de humanos em locais turísticos que os alimentavam, queda das bolsas pelo mundo, cancelamento de eventos culturais, esportivos ou científicos, redução do preço do petróleo, esvaziamento de cidades por toque de recolher....

Consequentemente, o virus assemblage deve ser identificado não pelo isolamento, mas pela revelação de seus entrelaçamentos que o constituem como um fenômeno coletivo (não há efeito colateral). Ele deve ser desempacotado de forma extensiva, permitindo ações efetivas e conscientes de sua construção.

*André Lemos  é professor Titular da Facom/UFBA, Pesquisador 1A do CNPq