'Perdi para o tráfico', diz professor sobre violência no entorno de colégio estadual

Unidade é cercada por bairros conflagrados e guarda 'arquivo morto' com pastas de 116 estudantes assassinados

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  • Bruno Wendel

Publicado em 24 de agosto de 2024 às 05:00

Professor já perdeu quatro alunos na "guerra do tráfico" Crédito: Arisson Marinho/ CORREIO

Em mais um dia letivo, Eduardo Marques aguardava um dos seus alunos para uma avaliação no segundo semestre do ano passado. “Esperei para fazer o teste. Ele ia fazer numa quarta, mas morreu na terça. Eu já perdi uns quatro para o tráfico”, lamenta o professor de História do Colégio Estadual Rubén Dario, na Avenida San Martin, em Salvador. Como mostrou o CORREIO na edição dos dias 10 e 11 de agosto, essa unidade tem um “arquivo morto” de 116 estudantes, entre 14 e 20 anos, vítimas da violência urbana em Salvador nos últimos dez anos.

“Na escola, era uma pessoa comum, magrinho, tranquilo, calmo, sereno. Morreu dando um tiro em polícia. Ninguém sabia que ele era envolvido. Eu, por exemplo, sempre fui um professor próximo, nunca soube que esse jovem tinha envolvimento com tráfico. Então, para nós, era um rapaz bom. É difícil você fazer essa relação entre escola e aluno. Às vezes a pessoa tem envolvimento lá, mas na escola não tem nada”, declara Eduardo, que há cinco anos leciona no Colégio Estadual Rubén Dario. Ele é um dos professores que participam de um vídeo institucional, feito por estudantes em 2023, por meio de um projeto da Secretaria Estadual do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre), onde a realidade é abordada e ao qual o CORREIO teve acesso. 

O colégio, onde estudam jovens do Ensino Fundamental II, etapa da Educação Básica que compreende do 6º ao 9º ano (antigamente 5ª a 8ª série), está na Avenida San Martin, uma das mais movimentadas de Salvador. A via corta os bairros de São Caetano, Fazenda Grande, Fazenda Grande do Retiro, Santa Mônica e Curuzu – todos territórios conflagrados, disputados pelas duas maiores organizações criminosas em atuação na Bahia: o Bonde do Maluco (BDM) e o Comando Vermelho (CV).  Com o somatório das ocorrências dessas cinco regiões, foram registrados entre o 1º dia deste ano até 21 de agosto, 68 tiroteios, 48 mortos e 14 feridos, de acordo com os dados do Instituto Fogo Cruzado (IFC). 

Segundo o professor de História, essa violência que atinge os estudantes tem a ver com o entorno do colégio. “Nós estamos cercados por comunidades violentas. Temos a Rua da Alegria, no Curuzu, que fica aqui atrás da escola, temos o Alto do Peru, Fazenda Grande, Lobato. Todos (estudantes mortos) foram, de alguma forma, influenciados nas suas próprias ruas. Muitos vêm de longe, poucos alunos moram aqui próximo”, explica o professor.  

De acordo com o professor, a escola na totalidade é também vítima de violência. Além dos alunos, ele destaca o reflexo no corpo docente. “Quando professores novos chegam, eles sentem impacto (no que diz respeito às comunidades conflagradas). Mas depois, com o dia a dia, se acostumam, porque não têm para onde correr. Essa violência está em todos os bairros. Já na questão educacional, eu acredito que não tem impacto. Os alunos conseguem chegar na escola, conseguem receber o conhecimento e voltar para os seus lares”, diz ele.    

Para minimizar os efeitos, o Rubén Dario vem trabalhando o problema na sala de aula, discutindo com os estudantes e seus pais. “Nós já estamos fazendo a nossa parte, mas os pais precisam zelar pelos filhos em casa. Esses alunos que vêm pra cá, influenciados com essas coisas, não é na escola que ele aprende isso. É na rua dele que já se tornou normal o tráfico de drogas”, declara Eduardo.  

O professor de História diz que lidar com este cenário é uma “tarefa árdua”. “ Então, é difícil você lidar com um aluno que você repreende na escola aquilo errado, mas na rua dele é comum. É esse reflexo que nós temos aqui. Você dobra a esquina, você tem um tráfico. Você sobe a rua, você tem outro. E isso não é só aqui, é em vários bairros de Salvador. Então, tem que lidar com esses alunos, que para eles a coisa ilícita é algo normal e a escola tem que combater isso”, declara.   

Eduardo Marques participou do vídeo que expõe as pastas do
Eduardo Marques participou de vídeo que expõe as pastas do "Arquivo Morto" Crédito: Divulgação/Arisson Marinho/CORREIO

Além do Colégio Rubén Dario, Eduardo dá aula em outras duas localidades de Salvador. “A segurança pública na capital baiana é de forma, como eu posso falar... vergonhosa. Eu ensino também em duas escolas fora daqui: em Pau da Lima e Sussuarana. Lá, em Sussuarana, fica três dias sem aula porque os meninos ficam na rua com metralhadora”, denuncia.   

Ao ser questionado sobre o que poderia minimizar o problema, o professor declara: “Eu acredito que o Estado deveria ter um aparato mais aguçado na questão da segurança com as escolas, até porque todos nós sabemos que os jovens que estão alistados no tráfico são estudantes que deixaram de estudar. São pessoas que têm uma idade de estar na escola e não estão. E quando chegam na escola, já chegam corrompidos com essa facilidade do tráfico de drogas. Isso é uma realidade”.  

Políticas públicas  

O CORREIO procurou alguns órgãos para discutir a questão da violência urbana no entorno das escolas e colégios públicos de Salvador. A Comissão Especial de Direito Educacional da OAB/BA disse que informou que “está empenhada em apoiar e acompanhar os entes estatais para elaboração de políticas públicas na área educacional”. “Colocando como parceira para a busca de alternativas e soluções possíveis para um maior engajamento dos jovens nos programas educacionais, em especial as que objetivem prevenir e combater a criminalidade aos quais eles se encontrem expostos”, declara por meio de nota, a advogada Taís Dórea, presidente da comissão.  

A comissão disse que tomou conhecimento do problema entorno dos alunos do Rubén Dario através da reportagem do CORREIO e que “solidariza com toda comunidade acadêmica escolar desses jovens estudantes que tiveram suas vidas precocemente ceifadas pela violência urbana”. “Este é um problema de segurança pública, em que pese afete toda comunidade escolar. É de conhecimento público que a desigualdade social e econômica influencia o acesso à educação e a permanência dos jovens de baixa renda no ambiente escolar, e, enquanto sociedade civil, falhamos ao não proteger esses jovens para além dos muros das escolas”, declara.  

Para a comissão, “o número de estudantes mortos, sem considerar os que não estão matriculados em instituições de ensino, apenas expõe a violência urbana enfrentada, especialmente nos bairros periféricos de Salvador”. “O Estado, como garantidor de direitos, tem a obrigação de buscar soluções e fomentar políticas públicas inclusivas, que perpassam, induvidosamente, pela educação”, diz Taís.  

Ela pontua que “se nossa sociedade tem problemas estruturais, a violência é um deles, o investimento em educação é uma das formas mudança social, em um ambiente que seja estimulante, acolhedor, empático e inclusivo, entendendo a desigualdade e a diversidade, devendo ser priorizado como fomentador das mudanças sociais necessárias ao pleno desenvolvimento de todos, em especial, crianças e adolescentes que tem proteção especial do Estado”.  

A reportagem mais uma vez tentou ouvir a Secretaria de Segurança Pública (SSP), Secretaria de Educação do Estado (SEC) e a Polícia Militar do Estado (PMBA), através de e-mails enviados entre os dias 20 e 22 deste mês, mas novamente não houve resposta.  

"Arquivo Morto": Colégio Rubén Dario guarda 116 passtas de alunos mortos na guerra urbana de Salvador Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Pastas  

O vídeo chamado Sonhos Roubados faz parte do projeto Força Jovem, do Programa Juventude Produtiva da Setre, disponível no YouTube (https://youtu.be/DjgvhWw7TW8?si=PE04LJ_H3yfxuLl8). A gravação foi realizada no segundo semestre do ano passado, postada na plataforma de compartilhamento no dia 19 de dezembro e contava pouco mais de 400 visualizações até o dia 09 de agosto. Após a matéria, foram 1,4 mil acessos até o dia 21 de agosto. A produção tem quase 15 minutos e traz o olhar da comunidade do Rubén Dario diante dos conflitos armados em seu entorno. 

O CORREIO sabia da existência do “arquivo morto” há cerca de dois anos. Desde então, a reportagem buscava o acervo. Há dois meses, a reportagem tomou conhecimento do vídeo institucional, por meio de um dos alunos. O “arquivo morto” é mostrado a partir da participação do então diretor da unidade, o professor Antônio Pimenta, que aparece ao lado de 20 pastas empilhadas. À medida que mostra parte do acervo, ele lamenta: “Muitos vieram aqui na sala conversar, brincar, outros que já tinham um comportamento mais acuado, mas que infelizmente tiveram o mesmo destino: foram mortos. Mortos por um sistema que exclui principalmente a juventude negra da possibilidade de sonhar”, diz o professor na gravação. As 116 pastas estão numa sala do arquivo (geral) da escola, distribuídas em gavetas com outros documentos. 

A produção, exibida em outras secretarias no segundo semestre de 2023, teve o apoio da Secretaria de Educação (SEC), do Centro Juvenil de Ciência e Cultura (CJCC), do Centro de Educação Especial da Bahia (CEEBA), da Associação Baiana Estudantil Secundarista (ABES) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). O objetivo foi coletar depoimentos de professores e estudantes para elaboração de projetos pedagógicos em mais 120 unidades de ensino do estado. Um dos temas foi a violência no ambiente escolar.