Assine

Percussionista mostra que é possível fazer música com qualquer objeto


 

Alexandre Borges, guia da imersão, em música, transforma tampinhas de garrafa em chuva e latas em trovão

  • Gabriel Moura

Publicado em 29/03/2024 às 11:00:00
Músico teve o talento descoberto pelo irmão, quando ainda era criança. Crédito: Marina Silva

Fundamental para a leitura deste texto, a visão não é o sentido protagonista desta história a ser cantada. Para compreendê-la, o ideal seria repetir o ritual das oficinas de percussão na Cidade da Música da Bahia: olhos fechados, ouvidos atentos. Pálpebras cerradas, entra em jogo a audição que transforma tampinhas de garrafa em chuva, latas em trovão e Alexandre Borges, guia da imersão, em música.

Só os “assobios do zap” desfalcaram a orquestra. Celulares no bolso até para usuários que mal ficam cinco minutos offline. “Estes são o rum, rumpi e o lê”, aponta Preto Xandy, como gosta de ser chamado, expondo os tambores base da percussão tradicional, antes de desviar os olhares da sala lotada para uma série de instrumentos feitos de materiais recicláveis, explicando que é possível fazer música com qualquer objeto.

Coisa que pareceria óbvia até para a criança que, aos quatro anos, batucava panelas e baldes no Nordeste de Amaralina, em Salvador. “Meu irmão colocava Ara Ketu para tocar aos sábados e eu acompanhava na percussão. Nisso ele percebeu que eu tinha uma certa noção, uma espécie de talento natural”, narra o músico, hoje com 29 anos.

Instrumentos improvisados que acompanharam a infância reclusa de Xandinho. O medo de ver o filho entrar para o crime fez a mãe controlar as saídas dele para a rua. Mas a tentação fez questão de bater na porta do rapaz. Primeiro com um colega exibindo R$ 300 que angariou numa atividade criminosa. “Muito mais do que minha mãe ganhava em um mês”, pontua. Depois, com uma proposta indecorosa: trabalhar como ‘olheiro’ em um assalto. “Fiquei tentado”, revela o instrutor.

O corpo estremeceu, mas as pernas obedeceram o chamado da irmã, que passou mal e necessitou ajuda, impedindo a ida de Alexandre ao local combinado. “É o destino. Meus guias atuaram, pois esse não era o meu caminho”, crava o candomblecista.

Caminho que foi trilhado quando, já maior de idade, ingressou no Quabales, projeto social que ensina percussão aos jovens do Nordeste de Amaralina. Noção e talento já detectados antes pelo irmão fã de Ara Ketu se aprimoraram com a técnica ensinada por Marivaldo dos Santos, músico criador da iniciativa.

Serenata ao professor

Até houve uma parada pelo curso de Bacharelado Interdisciplinar de Humanidades, mas a música insistia em convocá-lo, desta vez via uma oportunidade de estágio no museu. Alexandre chegou na Cidade da Música antes mesmo da abertura. “Quando tudo era tapume”, brinca aquele que hoje é o instrutor mais antigo do local.

Já a mãe que outrora o preservava em casa, hoje sai para prestigiar sua aula. Memória que conta com olhos embargados, reação que teve de controlar durante a presença materna na oficina. “Eu não estava esperando. Abri a porta do estúdio e, entre o público, a avistei. Mas tive que me manter profissional, né?”, lembra.

“Neste dia, o público era composto por senhoras. Eu sempre tento fazer uma dinâmica, uma didática diferente a depender do público. E minha mãe viu, super emocionada. É uma lembrança que me toca bastante, não só por ela, mas porque a cada aula que dou vejo que a música acessa as pessoas de maneira diferente”, diz o instrumentista.

Diferente também é a forma como julga o tratamento recebido na infância. Se antes sentia-se preso, hoje avalia a escolha de sua mãe como a melhor possível. “A gente sabe o caminho para alguns da onde a gente vem, das periferias. Infelizmente, estamos sujeitos a passar por situações, como ser abordado pela polícia. Minha mãe não queria me ver passando por qualquer tipo de constrangimento. Era uma forma de proteger”, analisa. “Se hoje tivesse um filho, agiria da mesma forma”, completa o ainda morador do Nordeste.

Imutável é o amor pela quarta arte daquele que, hoje, sonha em mostrar o talento ao mundo e, mais importante, à cidade da música através da banda de samba que montou ao lado dos colegas da Cidade da Música.

“Eu acredito que a música é um antidestino. Você casa ouvindo música; chega ao mundo fazendo música; na formatura, escolhe uma música para te acompanhar; celebra o aniversário cantando música… Até o nosso corpo é música, um grande instrumento percussivo, com o coração batendo a todo momento”, filosofa.

O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.