Do ‘clandestino’ ao choro: rodas de sambas se reinventam e atraem público diverso em Salvador
Confira as histórias de alguns sambas mais famosos da cidade
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Maysa Polcri
maysa.polcri@redebahia.com.br
Antes que os ouvidos possam distinguir com clareza os sons dos instrumentos da roda de samba, o cheiro de fritura exala e é facilmente reconhecido pelo visitante que desce do carro ou da moto. Alguns passos à frente, a visão do templo religioso branco e amarelo ganha nitidez. Sob ele, uma multidão se reúne em meio a food trucks, bares, barraquinhas e muitas caixas de isopor. Com copos de cerveja em mãos, o público arrisca passos de dança sem medo de errar. Já passou das 22 horas de uma sexta-feira, mas a noite só está começando em São Lázaro, em Salvador.
Os três bares localizados ao final da Rua Aristides Novis, na Federação, e vizinhos da Igreja de São Lázaro e São Roque, não são novidade. Há anos, eles são frequentados por moradores da região e estudantes da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (Ufba), localizada ali perto. Desde a pandemia, no entanto, São Lázaro se fortaleceu como reduto do samba na capital baiana e recebe cada vez mais visitantes, especialmente, jovens e turistas.
A roda, comandada pelo grupo Samba Criolo Show, no Bar da Dilma, acontece todas as sextas-feiras, a partir das 22 horas. O horário em si já é um diferencial em uma cidade onde moradores reclamam que as programações acabam cedo. Não é difícil entender porque a localidade virou queridinha dos afters daqueles que têm pique para virar a noite na rua. Durante a pandemia, o samba chegou a ser conhecido como “clandestino” por desrespeitar as restrições sanitárias. A entrada custa entre R$8 e R$10.
Passada a pandemia, a apresentação que acontece no barracão apertado e caloroso, dentro do bar, não é a única atração. Agora, além do Samba Criolo Show, outras bandas fazem apresentações. Elas acontecem no Largo de São Lázaro, na rua mesmo, e são de graça para os visitantes. Quem paga a conta são os comerciantes dos isopores de bebida, que contratam as atrações que, por sua vez, atraem os clientes. Afinal, quem é que resiste a um bom samba sem dar uns goles?
Herman Barbosa é o vocalista do Samba Criolo Show e garante que não há disputa entre os músicos do bar e os que se apresentam na rua. “A gente evita qualquer tipo de disputa porque somos do mesmo segmento. Todos ganham com o movimento”, diz. O grupo musical foi criado há mais de 40 anos por Raimundo Rasta, compositor e dono do Bar da Dilma. A ideia do sambista foi contratar músicos da nova geração para renovar os ares de São Lázaro. A proposta deu certo. Mas ainda há espaço para toques tradicionais.
“Há nove anos, começamos a fazer um sambinha de fundo de quintal e começou a atrair muitos estudantes da região. Nosso samba é aberto, qualquer músico que agregar é bem-vindo. O samba é liberdade, não pode ser fechado. Cantamos todos os tipos de música e esse é o segredo do nosso sucesso”, explica Raimundo Rasta.
Uma parte importante da renovação das rodas de samba de Salvador é composta pelas referências do pagode de outros estados. O cantor Herman Barbosa detalha o mix do repertório que inclui samba romântico, partido alto e até samba de roda. “A gente continua fazendo o samba de roda, que tem a percussão mais aflorada. Mesclamos o samba com o pagode romântico, com influência de bandas do Rio de Janeiro e São Paulo”. A diversidade de ritmos é a tônica de boa parte das rodas de samba da capital baiana.
Pela cidade
No Pelourinho, o Clube do Samba se tornou point dos jovens soteropolitanos com a mistura do samba tradicional e o pagode de cantores como Péricles, Belo e Dilsinho. Nas sextas-feiras e sábados à noite, a entrada estreita do espaço, localizada em frente ao Terreiro de Jesus, fica lotada de visitantes que fazem fila para curtir o samba. No início da noite, o clima ainda é tranquilo, com as pessoas sentadas na mesa e conversando.
Conforme as horas passam, as cadeiras são deixadas de lado e o público se amontoa em frente ao palco pequeno. É difícil encontrar quem fique parado. Difícil também é não escutar o pot-pourri (sequência de músicas) dos clássicos Melhor Eu Ir, Ligando os Fatos, Sonho de Amor e Deixa Eu Te Querer. A junção das composições ganhou fama na versão da banda brasiliense Menos é Mais. O hino do pagode da nova geração é uníssono e ecoa dentro do sobrado colorido em um dos pontos turísticos mais visitados da cidade.
O mesmo tipo de show acontece em outros pontos de Salvador. Nos sábados à tarde, é certo que o bairro da Saúde vai estar cheio de visitantes curtindo uma boa música. A partir das 16 horas, o samba rola solto na Casa Di Rosa Feijoada e Afins. O prato que dá nome ao local não é por acaso. O espaço surgiu há 14 anos, quando Dona Rosa começou a servir a feijoada para amigos próximos. O carro chefe da cozinheira de mão cheia ganhou fama e um toque musical: as rodas de samba atraem ainda mais pessoas para o estabelecimento.
Já na Feira de São Joaquim, duas rodas de samba explicam o movimento de pessoas até depois do pôr do sol: o Samba da Feira, que acontece no píer, e o Samba do Quiabo, na praça homônima. Nilton Ávila, o Gago da Feira, é um dos organizadores do primeiro.
“Começou bem pequeno, mas o público aderiu e o Samba da Feira virou um grande projeto que acontece todos domingos. Ficamos muito felizes porque a feira funcionava até o meio-dia e hoje temos clientes até às 20 horas. Vem muita gente de outros bairros e de outros estados’, diz Gago, que é dono de um dos restaurantes da Feira de São Joaquim que tem vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos.
É impossível negar que o repertório eclético caiu no gosto dos baianos que batem ponto e lotam as apresentações em diversos bairros de Salvador. Ao mesmo tempo, um bar localizado na Ladeira dos Aflitos, faz sucesso ao rememorar a tradição das rodas de choro, ritmo musical que surgiu em meados do século XIX, no Rio de Janeiro.
O Batatinha Bar resgata o movimento que a casa do compositor baiano, que dá nome ao espaço, tinha na década de 80. As rodas de choro acontecem todas às quartas-feiras e surgiram como um experimento de jovens músicos no bar comandado pela cantora Patrícia Ribeiro, há cerca de um ano.
“Consideramos o bar uma transformação que enriqueceu o samba na cidade. Você pode encontrar bares que tocam samba em Salvador, mas a nossa casa é a única específica para samba e choro”, diz Patrícia, categórica ao explicar a dinâmica do local.
Origens
A Bahia é o berço do samba no Brasil. O ritmo surgiu pela influência dos negros que vinham escravizados da África e demorou a ser reconhecido como patrimônio nacional. No final dos anos 1800, mesmo após a abolição da escravidão, quem fosse pego tocando samba poderia ficar até 30 dias preso. Apesar de ter nascido em território baiano, o samba logo se espalhou para outras regiões do país. Uma mulher negra, nascida no Recôncavo baiano, tem tudo a ver com essa história.
Filha de Oxum e uma das fundadoras da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, a baiana Hilária Batista de Almeida (1854-1824) foi uma das responsáveis pela sedimentação do samba carioca. Tia Ciata, como até hoje é conhecida, ganhou fama pelos festejos aos orixás.
Nessas ocasiões, suas habilidades musicais se destacavam nas rodas de partido alto. A sambista fez escola e ensinou o neto Bucy Moreira (1909-1982) os segredos do samba “miudinho” - aquele dançado com os pés juntos. O menino cresceu e se tornou instrumentista famoso.
Apesar de as figuras femininas e as religiões de matriz africana serem parte essencial para a construção do samba no Brasil, quem é atravessado pelas duas características enfrenta dificuldades para transitar por Salvador. Caso da cantora e compositora baiana Mariene de Castro, que tem o culto aos orixás como um dos pilares dos seus shows. A apresentação Santo de Casa lotou o Museu de Arte Moderna (MAM), em um domingo no início de março deste ano.
E "lotou" não é modo de dizer. Os portões do museu, localizado na Avenida Contorno, precisaram ser fechados devido a quantidade de gente que se aglomerou para acompanhar o show. Mesmo assim, Mariene não recebeu patrocínio para realizar a apresentação. “O samba ainda precisa ser reconhecido, valorizado e honrado. Eu continuo dizendo isso e só vou sossegar quando o samba for visto como eu vejo o Santo de Casa”, disse em entrevista ao CORREIO na ocasião.
Antes disso, no Carnaval do ano passado, Mariene fez um desabafo sobre a falta de convites para cantar durante a folia em Salvador. “Eu nasci e me criei nessa cidade que nunca deu espaço e dignidade à música que eu faço”, falou na época. Atualmente, a cantora mora com a família no Rio de Janeiro. De olho nessas dificuldades, um grupo de mulheres de Itapuã se uniu para fazer sua própria roda de samba.
Exclusivamente feminina, a Roda de Samba Mulheres de Itapuã é atrai multidões por onde passa e homenageia grandes sambistas brasileiras, como Gal do Beco e Tia Ciata.
“A nossa roda de samba nasce como um projeto de resistência ao machismo que nós, mulheres, sofremos na sociedade e no samba. A roda muda a lógica da maioria das rodas de samba, onde os homens tocam e as mulheres apenas dançam”, explica Amanda Quadros, uma das fundadoras do coletivo.
Em Itapuã ou na Feira de São Joaquim, passando por diversos bairros da cidade, é certo que haverá gente se juntando para fazer samba em Salvador.
O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.