Assine

O país rude e vil dos feminicídios


 

Sim, este sempre foi um país bruto, rude, vil. Mas a podridão do feminicídio parece ter se alastrado de maneira descontrolada

  • Paulo Sales

Publicado em 11/12/2023 às 05:00:00

Tem dias que minha filha retorna emocionalmente arrasada do seu estágio na Defensoria Pública, onde atua na vara de violência doméstica contra a mulher. Lá, ela se vê quase diariamente diante de casos devastadores: mulheres que foram espancadas ou ameaçadas de morte, mulheres que não têm onde morar ou temem voltar para casa com os filhos, mulheres aterrorizadas, em sua maioria de origem modesta e com poucos recursos financeiros, muitas delas incapazes de compreender o que estão passando.

Algumas surtam, outras se desesperam. Há ainda as que se resignam e pedem para retirar a queixa a mando do companheiro. Para minha filha, que começa a descobrir na prática os horrores do mundo, é impossível não se envolver com a tragédia cotidiana das suas assistidas. O mais duro é constatar que essas mulheres que buscam atendimento na Defensoria representam apenas um microcosmo do que é ser mulher no Brasil, de forma cada vez mais generalizada. Da senhora desempregada e cheia de filhos numa periferia do Amazonas à apresentadora rica e famosa em São Paulo.

Relacionamentos abusivos possuem muitas nuances, com agressões que se manifestam numa zona nebulosa e fugidia. Vão desde um comentário depreciativo, passam por xingamentos e humilhações até se consumarem de forma mais evidente em empurrões, socos, chutes e atos de gravidade ainda maior. Uma amiga me confessou outro dia que viveu uma relação assim e por algum tempo não se deu conta do quanto estava aprisionada. É como entrar num poço sem perceber a ausência de luz e a proximidade do fundo.

Este sempre foi um país bruto, rude, vil. Onde o machismo arraigado entra em combustão quando acionado pelo consumo excessivo de álcool. Onde a dependência financeira faz com que mulheres sem renda se submetam a hostilidades rotineiras. Onde a violência é minimizada por amigos e muitas vezes camuflada por óculos escuros ou blusas de manga comprida. “A vergonha do espelho naquelas marcas”, como diz uma velha canção da banda Nenhum de Nós.

Sim, este sempre foi um país bruto, rude, vil. Mas a podridão do feminicídio parece ter se alastrado de maneira descontrolada nos últimos tempos. Há alguns dias, um vídeo circulou amplamente na tevê e nas redes sociais: um homem sai do carro, dá socos na sua esposa e em seguida desfere três tiros à queima-roupa nela. Simples assim, como quem abre uma cerveja. O corpo da mulher ficou estendido na rua. Sabemos que um cretino será sempre um cretino. Mas um cretino armado é um homicida em potencial. E o que não faltam no Brasil são cretinos armados.

É uma gangrena que corre o risco de virar uma septicemia social. Ou pior: já virou. Ela exibe as suas entranhas diariamente nos telejornais e portais de notícias. Nas mais diversas cidades e em todas as regiões, mulheres são assassinadas por seus maridos e companheiros. Execuções motivadas por ciúmes, intolerância ou até razão nenhuma, que costumam ser definidas como “crimes passionais” pela polícia e também pela mídia sensacionalista e parte da população – numa inversão de valores que torna o algoz um justiceiro a lavar sua honra com sangue.

Atos como esses revelam acima de tudo um profundo egoísmo. Os motivos alegados pelos assassinos são invariavelmente os mesmos: matam a mulher que em tese amam por causa de uma suposta traição ou, pasmem, pela impossibilidade de viverem sem ela. Suicidar-se em seguida não melhora a situação, antes a agrava. Mas, numa sociedade patriarcal e arcaica, o morto sobrevive forjando o arquétipo do herói.

Não esqueço de uma entrevista com o goleiro Bruno – aquele que matou a mãe do seu filho e mandou jogar seus restos aos cães – na qual ele indagava aos jornalistas: “Quem nunca saiu na mão com uma mulher durante uma discussão?”. Na mente abjeta de Bruno, “sair na mão com uma mulher” era algo tão banal quanto uma troca de carícias no cinema. A julgar pelas agressões que presenciamos no nosso cotidiano, seja num shopping ou num bar, essa deformação moral não é exclusividade dele.

Nesse cenário desolador, somos incapazes de encarar um mundo no qual pessoas de gêneros, etnias e orientações sexuais diferentes possam conviver entre si. Esse puritanismo hipócrita é propagado de forma leviana por quadrilhas neopentecostais e levado às últimas consequências por tipos fortões com cérebros do tamanho de ervilhas e olhos injetados de testosterona. Um comportamento que guarda incômoda semelhança com o fundamentalismo islâmico, aquele que condena mulheres a uma vida de desterro por trás de panos invioláveis, sob pena de pedradas e chicotadas.