Meu pequeno aristocrata
Com minha filha já criada, Pudim se tornou uma espécie de bebê da casa, vulnerável e dependente, que demanda atenção, carinho e cuidados diários
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Paulo Sales
paulo.sales@bol.com.br
Tem dias que a realidade me asfixia. Acompanho com a respiração suspensa o declínio das democracias liberais e a ressurreição de delinquentes que julgava sepultados. Contemplo atemorizado os efeitos do aquecimento global sobre as cidades e as florestas ardendo. Observo incrédulo o recrudescimento dos conflitos armados lá fora e dos confrontos entre facções na terra que é minha e na qual vivo. São cenas que se sucedem nos telejornais e nas redes sociais como instantâneos de um pesadelo, comprovando que o mundo vai mal.
Sinto vontade de correr para as montanhas – não sei se num sentido metafórico ou literal. Uns dias na Chapada Diamantina, quem sabe, sem sinal de internet, percorrendo trilhas e me entregando ao descarrego nos rios e cachoeiras. Um escapismo necessário em tempos ásperos. Mas talvez o que precise seja de algumas semanas desconectado do mundo lá fora. Dar um tempo nas notícias a respeito de tipos como Trump, Putin ou Netanyahu. Apesar dessa gente rude e vil que atravanca o caminho do mundo, amanhã há de ser outro dia. Ou não. Eu, que odeio fatalismos, por vezes me rendo a eles.
Melhor, portanto, me voltar para o meu próprio mundo, como um caracol ensimesmado: o afeto da minha família, os livros da minha biblioteca, os solos de Miles, os vinhos na varanda, os jogos do Flamengo. E, claro, os passeios no parque com Pudim. Meu pequeno aristocrata do Condado de Yorkshire completou esta semana cinco anos. Sua chegada transformou o meu modo de enxergar o mundo. É um alento tê-lo ao meu lado e acordar com seus “lambeijos”, que conclamam ao perambular diário pelo pequeno oásis de mata, pássaros e lagoa, onde todos sabem seu nome. A imensa ternura que sinto por ele me faz mais sereno.
Com minha filha já criada, Pudim se tornou uma espécie de bebê da casa, vulnerável e dependente, que demanda atenção, carinho e cuidados diários. Ele, por outro lado, nos devolve tudo isso em alegria, cumplicidade e companheirismo. Gosto de sentir o calor do seu corpinho ao meu lado, quando estou dormindo, lendo ou assistindo à tevê. Gosto da sua agitação ao ouvir os latidos de algum cachorro na vizinhança e do seu destemor ao enfrentar cães bem maiores. Gosto de carregá-lo no colo para olharmos a rua, observando sua cabecinha loira sempre atenta ao movimento. Gosto até de levá-lo a restaurantes que aceitam animais, para que não fique só em casa.
Convivi com bichos menos do que gostaria ao longo da vida. Os passarinhos na infância, terrivelmente tristes em suas masmorras de arame, algo de que hoje me arrependo. Um pequinês chamado Lulinha, que passou apenas um dia lá em casa, antes que minha mãe o devolvesse. Um casal de cágados, também com estadia breve, ao qual demos os nomes de dois primos. E foi só. Já adulto, ao voltar de São Paulo, onde morei por cinco anos, fiz amizade com um gato a quem dei o nome de Téo, em homenagem ao personagem de um romance de Amós Oz que lia na época. Um gato adulto, branco com manchas amarelas. Tenho até hoje uma foto com ele no meu mural.
Téo foi um companheiro e tanto, mesmo sendo apenas um dos muitos gatos da vizinhança, e não necessariamente meu animal de estimação. Recém-casado, eu morava no village de veraneio de meus pais no Litoral Norte e estava desempregado. Foi um período duro e triste de readaptação à Bahia, e ele esteve lá comigo até eu ir morar novamente em Salvador. Enquanto colocava as coisas da mudança no carro, ele me olhava profundamente e não saiu de perto até irmos embora. Tempos depois, soube que Téo foi morto pelo pitbull de um vizinho imbecil. Essa dor doeu mais forte. Senti remorso por não tê-lo levado comigo, apesar de entender que seria uma adaptação difícil.
Depois, quando minha filha tinha por volta de seis anos, demos a ela uma cachorrinha chamada Lile. Mistura inusitada de Schnauzer com Dachshund, era carinhosa e brincalhona, mas agitadíssima. Em poucos meses promoveu uma destruição maciça no apartamento, pequeno demais para a sua energia. Acabamos por doá-la à cuidadora de uma tia minha. Não soube mais dela. Hoje sinto remorso (novamente esse sentimento penoso) por não ter ficado com Lile, mesmo com toda a destruição. Talvez o amor incondicional que dedico hoje a Pudim seja em parte uma compensação pelo meu fracasso em cuidar dos que vieram antes dele, o que torna as coisas ainda piores.
Hoje, qualquer cão que vejo na rua me faz lembrar do meu pequeno. Às vezes, até pequenos leões, cordeiros ou leitões em vídeos de internet me fazem lembrar dele. Quase não me alimento mais da carne de mamíferos, movido por uma compaixão que, creio, tem origem na convivência com Pudim. Quem sabe eu, indivíduo repleto de defeitos como qualquer outro, não esteja me convertendo enfim numa pessoa melhor. Caso seja verdade (o que não acredito), devo mais essa a ele.